Em 2018, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) estava abarrotado de investigações contra políticos enrolados na Lava Jato, os ministros tomaram uma decisão de grande apoio popular: restringir o foro privilegiado, de modo que ficassem na Corte só os casos em que o suposto crime de um deputado ou senador tivesse ocorrido durante o mandato e fosse ligado à função parlamentar. Isso fez com que uma grande leva de procedimentos penais fosse transferido para a primeira instância, onde, no caso da operação, as sentenças saíam rapidamente.
Na época, tramitavam no tribunal cerca de 540 inquéritos e ações penais. O objetivo era não só desafogar os gabinetes dos ministros, por onde tramitam outros milhares de processos. Havia também o intuito de mitigar manobras que acabavam arrastando a duração dos procedimentos, pois a cada vez que o político mudava de cargo (de prefeito para deputado, e depois para secretário estadual, por exemplo), o processo migrava de tribunal. Assim, sucessivos adiamentos do julgamento final muitas vezes levavam os casos à prescrição.
O número de investigações e processos criminais caiu abruptamente. Em junho de 2022, levantamento do STF contabilizava 89 inquéritos e ações penais, uma queda de mais de 80% em quatro anos. De um ano para cá, contudo, a tendência se inverteu, principalmente pela decisão do ministro Alexandre de Moraes de concentrar na Corte as mais de 1,2 mil ações penais contra os acusados de incitar as Forças Armadas contra as instituições e depredar as sedes dos Poderes no dia 8 de janeiro deste ano.
Agora, alguns ministros cogitam rever a mudança de 2018, não só para poder condenar esses manifestantes, mas também para validar a manutenção, no STF, de inquéritos contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), os quais, a rigor, poderiam ter descido para a primeira instância, uma vez que ele já não tem mandato e foro privilegiado. A jurisprudência do STF diz que quando acaba o mandato, finda o foro por prerrogativa de função, instituído justamente para proteger o cargo. Esse, aliás, é um dos principais argumentos da defesa do ex-presidente, que busca retirar o caso das joias das mãos de Moraes e transferi-lo para um juiz federal.
A tendência de rever a restrição ao foro privilegiado já vem sendo sinalizada no últimos anos. Vários ministros têm driblado a regra de 2018 para manter sob sua alçada alguns casos de maior relevância política.
Investigações contra Moro, Pazuello e Bolsonaro
Em abril, por exemplo, antes de se aposentar, o ministro Ricardo Lewandowski decidiu manter no STF uma investigação contra o senador Sergio Moro (União-PR) baseada em acusações do advogado Rodrigo Tacla Duran, relativas à época em que ele era juiz da Lava Jato. Para driblar a regra de 2018, Lewandowski afirmou que, segundo a Procuradoria-Geral da República, Moro teria tentado interferir em decisões da 13ª Vara de Curitiba no atual mandato de senador.
A decisão não explicita que interferência seria essa. O inquérito passou a ser sigiloso e agora é conduzido pelo ministro Dias Toffoli que, seguindo Lewandowski, passou a se opor à Lava Jato.
Naquele mesmo mês, a PGR denunciou Moro diretamente ao STF por suposta calúnia contra Gilmar Mendes, por causa de um vídeo antigo, que circulou nas redes sociais, em que ele, falou de brincadeira em “comprar um habeas corpus” do ministro. A declaração foi feita numa festa junina, provavelmente em anos anteriores, quando ele ainda não exercia o mandato de senador. A PGR também não justifica que relação isso teria com o atual mandato e reconhece que a fala se deu “durante um evento realizado em dia, hora e local não sabidos”.
Em julho, Gilmar Mendes anulou uma decisão da primeira instância da Justiça Federal que havia arquivado uma investigação contra Bolsonaro por supostas irregularidades na pandemia e mandou o caso para nova avaliação da PGR. O inquérito também mirava o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que só neste ano assumiu o mandato de deputado federal. Como a decisão foi tomada sob sigilo, não se sabe o motivo para levar o caso ao STF.
Inquéritos do 8 de janeiro
Os inquéritos do 8 de janeiro também acabaram ficando no STF porque Moraes viu nos atos de vandalismo conexão com investigações mais antigas, derivadas do inquérito das fake news, contra o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e os deputados federais Otoni de Paula (MDB-RJ), Cabo Júnio do Amaral (PL-MG), Carla Zambelli (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Filipe Barros (PL-PR), Luiz Phillipe Orleans e Bragança (PL-SP) e Eliéser Girão (PL-RN).
Não fica claro nas decisões, porém, qual a relação direta de cada um com os ataques ao STF, Congresso e Palácio do Planalto e nenhum deles foi denunciado no caso.
Outros deputados investigados por terem repercutido a manifestação em suas redes sociais sequer exerciam o mandato na época. Clarissa Tércio (PP-PE), André Fernandes (PL-CE), Silvia Waiãpi (PL-AP), Coronel Fernanda (PL-MT) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB) só tomaram posse em fevereiro, quase um mês depois. Mesmo assim, respondem perante o STF.
Na análise das denúncias apresentadas contra os manifestantes, apenas André Mendonça e Kassio Nunes Marques contestaram a opção de Moraes e dos outros ministros de deixar os processos no STF. Ambos citaram uma série de decisões recentes do STF, proferidas desde 2018, que reafirmam a tese de que o “foro por prerrogativa de função” é um instituto excepcional e deve ser restrito somente aos casos que afetam o mandato parlamentar.
Essas decisões dizem que, nos casos em que pessoas comuns cometem crimes junto com políticos com foro, o ideal, se possível, é fatiar o inquérito e enviar as partes não relacionadas ao parlamentar para a primeira instância – o que não foi seguido no caso dos manifestantes do 8 de janeiro.
“A atração da competência originária desta Corte é absolutamente excepcional, que mesmo em caso de possível conexão, a regra tem sido o desmembramento e a remessa dos processos dos não detentores de foro por prerrogativa de função para a primeira instância; e a excepcionalíssima manutenção do processo no STF deve ter a demonstração de prejuízo concreto e real na cisão do feito”, afirmou Mendonça em seu voto.
Ele ainda ressaltou que os deputados, que não foram denunciados pelo 8 de janeiro, não terão qualquer participação nos processos dos manifestantes, sejam os invasores ou os que estavam acampados no QG do Exército. Uma das consequências da manutenção do foro de pessoas comuns no STF é de que elas terão suprimida a possibilidade de recorrerem de eventual condenação a instâncias superiores, uma vez que o STF está no topo do Poder Judiciário.
Fernando Capez, doutor e professor em Direito Penal, questiona se isso não suprime um direito fundamental dos investigados. Falando especificamente sobre o caso de Bolsonaro, ele indaga “se não é inconstitucional suprimir todas as instâncias recursais, quando a jurisprudência do STF diz que cessada função, cessa a competência originária. Se você mantém a competência originária depois de cessada a função, você está suprimindo uma garantia constitucional de ampla defesa, que é o duplo grau de jurisdição. Para você suprimir uma garantia constitucional, tem que haver um motivo”, afirma.
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