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A pretensão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de expandir o território americano, reafirmada em seu discurso de posse, não deveria reacender, entre militares e nacionalistas brasileiros, o temor de uma ameaça imediata à Amazônia.
Para analistas de relações internacionais consultados pela reportagem, as razões de Trump para retomar o Canal do Panamá, anexar o Canadá e a Groenlândia não se estendem à floresta brasileira, embora líderes americanos e europeus já tenham manifestado, há tempos, o desejo de dominarem recursos naturais da região sob o pretexto da preservação ambiental.
Nesta segunda-feira (20), ao tomar posse, Trump voltou a falar sobre sua ambição de expandir as fronteiras. “Os Estados Unidos voltarão a considerar-se uma nação em crescimento, que aumenta a nossa riqueza, expande o nosso território, constrói as nossas cidades, aumenta as nossas expectativas e transporta a nossa bandeira para novos e belos horizontes”, disse.
Dessa vez, mencionou apenas o desejo de retomar o controle do Canal do Panamá, construído pelos EUA no início do século 20, mas entregue ao país em 1999. “A China está operando o Canal do Panamá. E não o demos à China. Demos ao Panamá e estamos tomando de volta”, disse Trump em seu discurso de posse.
Nas últimas semanas, ele já havia apresentado publicamente a pretensão de anexar o Canadá e a Groenlândia. Desde então, muitos analistas viram nessas declarações uma jogada de negociação: apresentar uma proposta alta para conseguir o que é necessário. No caso, aumentar a presença dos EUA nesses locais para conter o avanço chinês, seja nas novas rotas a serem abertas com o degelo no Oceano Ártico, seja na passagem pelo Canal do Panamá.
Esse interesse não tem qualquer relação com a Amazônia, segundo especialistas. Ainda assim, é preocupante, por abrir um mau precedente mesmo que apenas na retórica, especialmente num momento em que líderes autoritários no mundo agem na mesma direção. Seria um aval ou mais um estímulo para o ditador da Rússia, Vladimir Putin, manter domínio sobre a Crimeia e anexar parte da Ucrânia, e para o presidente da China, Xi Jinping, tomar Taiwan e outros territórios na Ásia.
Cobiça pela Amazônia sempre existiu
Ex-comandante da 12ª Região Militar (que abrange Roraima, Amazonas, Acre e Rondônia), o general da reserva Marco Aurélio Vieira, do think tank Iniciativa Dex, lembra que a cobiça internacional sobre a Amazônia sempre existiu. “Existem motivos aparentes, de sustentabilidade ambiental, preservação do planeta. Mas os objetivos são puramente econômicos: grandes conglomerados veem na região uma grande fonte de riqueza, em minerais, petróleo, bioeconomia, biomedicina, mais de 23 mil quilômetros de rios, espécies não descobertas, madeira, fora a água doce”, observa o militar.
O que mudou, nas últimas décadas, foi a emergência de uma nova ordem mundial, multipolar, em que a expansão territorial voltou à pauta de várias superpotências. Para Marco Aurélio Vieira, a Amazônia, hoje, não é uma pretensão imediata dos EUA, mas, nesse novo momento da geopolítica internacional, pode sim despertar o interesse dos americanos ou outros estrangeiros no futuro.
“O que acontece é que a polarização não está na mão de democracias. Esse rearranjo pode se valer do autoritarismo para ganho de território. Começa com pressão econômica, depois política, e enfim militar. Não acontece de um dia para outro. É um balão de ensaio, em que você administra a reação, e gradativamente vai comendo pelas beiradas. Não se descarta em nenhuma hipótese a possibilidade de a Amazônia entrar nesse jogo”, diz o general.
O analista do think tank Dex diz que o Brasil terá mais condições de defender a Amazônia se o governo federal passar a dar atenção para a região, que hoje, segundo ele, é dominada por ONGs e pelo narcotráfico. “Apenas as Forças Armadas e os governos locais se preocupam. Desde o tempo da colônia, o governo federal não tem preocupação com a Amazônia. É um descaso total. Há uma ausência do poder institucional, de polícia, de juiz. É um velho oeste. Para a Amazônia permanecer nossa, temos que aperfeiçoar nossa defesa, aumentar nosso conhecimento sobre a região, principalmente suas vulnerabilidades, e não voltar as costas, fazer com que ela se sinta mais brasileira.”
Professor de Relações Internacionais na ESPM, Gunther Rudzit concorda que, hoje, não há interesse de Trump e dos Estados Unidos de tomar a Amazônia. “Ele não tem essa agenda ambiental, muito pelo contrário, ignora o aquecimento global. Essa preocupação ambiental não passa nem de longe pelas preocupações dele”, diz. “E os americanos são autossustentáveis em petróleo e recursos naturais”, acrescenta.
Em seu discurso, Trump exaltou a produção de petróleo nos EUA: “seremos uma nação rica novamente, e é esse ouro líquido sob nossos pés. É ele que vai nos ajudar a fazer isso.” Na noite de sua posse (20), em entrevista à imprensa, Trump disse que os EUA não precisam do Brasil e da América Latina. “Eles precisam de nós muito mais que nós precisamos deles. Nós não precisamos deles.”
Para Rudzit, o único país na América do Sul que preocupa o presidente americano é a Venezuela, rica em petróleo e atualmente sob forte influência da China e da Rússia. “Único caso de possibilidade de uso da força é na Venezuela”, diz o professor da ESPM.
Analista de relações internacionais e colunista da Gazeta do Povo, Paulo Filho também não vê interesse imediato dos EUA, sob Trump, na Amazônia. “Mas que o mundo está vivendo um momento esquisito, é inegável. Qual a diferença do discurso do Putin em relação à Crimeia do discurso de Trump em relação à Groenlândia? Putin fala que o Mar Negro é vital para interesses estratégicos. O Trump fala o mesmo da Groenlândia e o Canal do Panamá”, compara. “O ruim desse discurso é o precedente que se forma”, explica Paulo Filho.
Ele observa que, no caso da Groenlândia, a ameaça se dá sobre um país aliado, a Dinamarca, que também é membro da Otan, a aliança militar de proteção mútua entre Estados Unidos e Europa. “É o ‘Make America Great Again’ [Fazer a América Grande Novamente, slogan de Trump] sendo levado às últimas consequências, não importa se é amigo ou inimigo. Se precisar fazer algo em prol do interesse americano em primeiro em lugar, vai fazer, custe o que custar”.
“Digamos que, num futuro próximo, por ocasião do aquecimento global, diga-se que a Amazônia está sendo mal administrada, e que para que o bem maior, outro país ou organização precise tomar conta... Como detentor de recursos importantes, não podemos achar isso bom. Não acho que a Amazônia esteja na pauta, mas, por questão de princípios, não podemos estar de acordo, porque temos com o que nos preocupar”, conclui Paulo Filho.