O Brasil tem visto um aumento no número de doses de imunizantes contra a Covid-19 aplicadas na população. Isso traz otimismo sobre uma possível aceleração na vacinação e que o país, em breve, possa controlar a pandemia e começar a voltar à normalidade — como ocorre atualmente na Europa e nos EUA.
Entretanto, exemplos de países vizinhos próximos, como Chile e Uruguai, mostram que nem uma imunização ampla garante o controle efetivo das mortes e contaminações causadas pela Covid-19.
Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil tem cerca de 70 milhões de pessoas vacinadas com a primeira dose da vacina contra a Covid-19 — o que dá em torno de um terço da população. Cerca de 25 milhões de pessoas já tomaram também a segunda dose, pouco mais de 11% dos brasileiros. Isso é muito distante de EUA, Europa, Chile e Uruguai.
Para o médico infectologista Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), a vacinação já se mostrou eficaz contra a Covid-19 em várias partes do mundo, mas no Brasil essa proporção ainda não garante uma proteção adequada contra a doença. “A vacinação se mostrou efetiva, capaz de reduzir os desfechos, principalmente mais graves de mortalidade e hospitalizações por um tempo sustentável com duas doses. Uma dose só, sem dúvida, não nos dá a sustentação da proteção prometida pelos estudos”, diz.
Ele lembra que no primeiro semestre o país recebeu poucas doses dos imunizantes, o que prejudicou o andamento do processo de imunização da população. Já o segundo semestre promete uma aceleração na velocidade de vacinação, com uma quantidade maior de doses distribuídas.
Com relação à porcentagem da população brasileira que precisaria ser vacinada para garantir uma proteção mínima adequada contra a Covid-19, Kfouri evita fazer projeções e mesmo qualquer tipo de comparação com outros países que já imunizaram grandes parcelas de seus cidadãos.
“Não há um número mágico. Esse número depende da vacina utilizada, da velocidade com que você atinge essas coberturas vacinais. Depende também do surgimento de variantes ou não que possam escapar da eficácia dessas vacinas. Então aquele que arrisca um número está fadado a muitas subjetividades e erros, porque é imprevisível”, diz. “É esse conjunto que forma um cenário mais otimista ou não”.
Apesar disso, vários outros especialistas estimam que, para que a pandemia acabe, é preciso que pelo menos 70% da população esteja vacina. E o Brasil está muito longo desse porcentual.
Exemplos do Chile e do Uruguai mostram que é importante ter cautela
Chilenos e Uruguaios enfrentam uma nova onda de casos da doença, mesmo depois de atingirem níveis de imunização em massa da população comparáveis aos de nações da Europa e dos EUA quando começaram a relaxar as medidas restritivas.
De acordo com dados do Ministério da Saúde do Chile, até o dia 22 de junho, 64% da população já havia tomado as duas doses da vacina contra a Covid-19. Por lá, o imunizante mais utilizado é a Coronavac, responsável por mais de três quartos das doses aplicadas. A Coronavac tem uma eficácia geral mais baixa do que a de outras vacinas usadas na Europa e nos EUA.
Mesmo com o alto percentual de imunizados, o Chile viu um aumento das infecções nas últimas semanas, o que provocou um colapso no sistema de saúde e fez com que a capital, Santiago, tivesse de entrar em lockdown, no último dia 10 deste mês, para tentar frear as contaminações.
Na última terça-feira (22), o presidente chileno Sebastián Piñera anunciou que especialistas de saúde locais avaliam a possibilidade de distribuir uma terceira dose da vacina para tentar controlar a pandemia, ao mesmo tempo em que os adolescentes começaram a ser vacinados.
O Uruguai é outro exemplo de país com uma grande parcela da população totalmente vacinada, mas que ainda não conseguiu controlar a pandemia de maneira eficaz. Por lá, aproximadamente 42% da população de 3,5 milhões de pessoas já tomou as duas doses do imunizante contra a Covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde uruguaio. O país foi o primeiro da América Latina a vacinar crianças e adolescentes entre 12 e 17 anos. O imunizante mais utilizado no Uruguai também é a Coronavac.
Mesmo com a ampla cobertura vacinal, os uruguaios presenciaram nas últimas semanas um aumento no número de mortes causadas pela doença, e passaram a figurar entre os dez países do mundo com maior média móvel de óbitos num intervalo de sete dias.
Coronavac, variante P1 e abertura mais acelerada podem ser as causas
O uso da Coronavac, menos eficaz que outras vacinas, é uma hipótese levantada para explicar o caso do Chile e Uruguai — mas não a única.
Biólogo e PhD em biologia celular e molecular, Fernando Reinach afirmou, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo que abordava o caso específico do Chile, que a vacina usada pode ser uma das razões: "Talvez [a] Coronavac seja capaz de reduzir internações e mortes, mas não consiga impedir completamente a propagação do vírus".
Apesar disso, Reinach também levanta outras hipóteses. "Possíveis explicações incluem diferenças climáticas, novas cepas e o relaxamento prematuro do distanciamento social."
O Chile, por exemplo, se abriu mais rapidamente que nações europeias ao mesmo tempo em que uma cepa mais infecciosa do coronavírus se espalhava pelo país: a P1, também conhecida como variante gama, amazônica ou brasileira (essa cepa também é dominante hoje no Uruguai). Nesse aspecto, a situação do Brasil se assemelha mais à dos chilenos do que a dos europeus, que passaram por lockdowns rigorosos.
Em depoimento à CPI da Covid na quinta-feira (24), o epidemiologista Pedro Hallal, pesquisador da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), disse entender que a situação do Chile se explica pela não adoção de medidas mais restritivas ao mesmo tempo em que começava a vacinação em massa, diferentemente de outros países que controlaram a pandemia. “Se o Chile tivesse feito como os outros países, que quando começaram a vacinação, adotaram medidas restritivas, talvez não tivesse chegado à necessidade de fazer lockdown”, disse.
Ou seja, a razão do sucesso de outras nações teria sido a adoção de medidas complementares: restrições fortes à circulação associadas à vacinação em massa. O Uruguai, assim como o Chile, também tem vacinação em massa acelerada, mas não adotou medidas mais restritivas de circulação das pessoas.
Hallal ponderou, contudo, que há indicadores de que a vacinação em massa impediu uma situação pior para os chilenos: “O que acontece no Chile, e a gente tem olhado os dados, é um aumento de casos, felizmente, não acompanhado de um aumento na mesma proporção de mortes”.
O epidemiologista da UFPel lembrou que estudos comprovaram que, especificamente no caso da Coronavac, a vacina é bastante eficaz na redução de mortes e hospitalizações provocadas pela Covid-19, mas não tanto em impedir a circulação do coronavírus. “Como os estudos já tinham mostrado as vacinas, especialmente a Coronavac, é muito mais eficaz para prevenir óbitos e hospitalizações do que para prevenir casos. Então essa é a explicação do Chile”, disse Hallal.
O epidemiologista disse ainda ser necessária uma cobertura maior do imunizante para que o Chile chegue à imunidade coletiva. “A imunidade coletiva, para ser atingida, precisa de 70% da população imunizada”, disse. Ou seja, com 64% da população vacinada, os chilenos ainda precisam de um pouco mais para atingir a imunidade de coletiva (ou de rebanho).
Velocidade da vacinação também é fator a ser considerado
O médico infectologista Renato Kfouri destaca que a vacinação é sim um dos pilares para o controle efetivo das contaminações, mas não é a única medida possível para garantir o sucesso do combate a uma pandemia.
Segundo ele, tão importante quanto a parcela da população vacinada é a velocidade com a qual os imunizantes são aplicados. Essa aceleração é fundamental para inibir o surgimento de novas variantes da Covid-19.
Um estudo realizado no município de Serrana, no interior de São Paulo, mostra que a velocidade da vacinação aliada a uma ampla cobertura faz a diferença no controle efetivo da pandemia — e que isso pode ser obtido mesmo com a Coronavac.
O município de 45 mil habitantes teve 95% de sua população imunizada com as duas doses da Coronavac em pouco mais de dois meses, entre fevereiro e abril deste ano. Após esse período os pesquisadores viram as mortes pela Covid-19 caírem em 95%. Já as internações foram reduzidas em 85%.
O infectologista Renato Kfouri diz que esse cenário, infelizmente, é irreproduzível em um curto ou médio prazo no Brasil. Ainda assim, o estudo comprova que a velocidade da vacinação aliada a uma grande parcela da população imunizada pode, de fato, controlar a pandemia. “Isso demonstra que a velocidade é uma variável importante. Qualquer vacina, com altas coberturas, em poucos meses, terá um resultado mais efetivo. Infelizmente não é o que teremos por aqui.”
Kfouri ainda diz ser muito difícil estabelecer uma comparação entre países para traçar cenários para o Brasil. Ele lembra que cada nação adotou medidas diferentes de controle da pandemia que vão além da vacina, como distanciamento social, lockdown, uso obrigatório de máscaras, etc.
“O Chile não tem uma cobertura igual aos Estados Unidos, de 70%. A velocidade com que esses países vacinaram também é bem diferente. O tempo de cobertura também é muito distinto. Existe ainda a questão das variantes que surgem no local de maior transmissibilidade e as medidas de distanciamento que foram adotadas ou não. Esse é outro fator que impacta os resultados”, diz.
Kfouri cita outro país que controlou a pandemia: Israel. “Quando você olha para Israel, que fez três lockdowns, junto com vacinação, os resultados foram espetaculares. É uma somatória de ações. As vacinas não são as únicas a controlar a pandemia.”
Apesar do sucesso de Israel, uma nova variante que começou a se espalhar pelo país (a indiana ou delta) acaba de forçar o governo local a dar um passo atrás na abertura do país: em ambientes fechados o uso da máscara voltou a ser obrigatório para os israelenses.
Segundo Kfouri, como a campanha de vacinação no Brasil não atingiu ainda os porcentuais mínimos para controlar a disseminação do coronavírus, é necessário reforçar outras medidas de prevenção. “Enquanto não se avança de uma maneira mais ostensiva no número de vacinados por aqui, as medidas de distanciamento, do uso de máscara, continuam sendo as ferramentas que vão auxiliar no controle da pandemia”, diz o diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
O infectologista Renato Kfouri ressalta que nenhuma das vacinas disponíveis atualmente é 100% eficaz, mas reforça que o número de pessoas beneficiadas pela imunização será sempre imensamente maior do que aqueles indivíduos que, mesmo vacinados, venham a evoluir para casos graves e eventuais óbitos causados pela Covid-19.
“Chama a nossa atenção, claro, aqueles indivíduos que foram vacinados e acabaram adoecendo, e tendo casos graves da doença. Enquanto mantivermos taxas de infecções tão altas, vamos continuar vendo casos, infelizmente, de falhas vacinais, que corresponderão a uma pequena minoria daqueles vacinados”, diz o médico.
Coronavac ainda é a mais utilizada na vacinação de brasileiros
A Coronavac, produzida no Brasil pelo Instituto Butantan numa parceria com o laboratório chinês Sinovac, ainda é a vacina mais utilizada no Brasil.
Segundo dados do Ministério da Saúde, ela já foi aplicada em 41,1 milhões de pessoas, ou 47,6% da população imunizada. Em seguida, o imunizante da Astrazeneca, produzido pela Fiocruz, aparece com 40,1 milhões de doses aplicadas, ou 46,5% da população.
Por último, com baixo percentual de uso, está a vacina da Pfizer/Biontech, com 5,07 milhões de doses aplicadas — ou 5,9% da população. A vacina da Janssen começou a ser aplicada na última sexta-feira (25) e não foi contabilizada no levantamento desta reportagem — ainda assim, a participação é muito baixa.
Outros dois imunizantes estão aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso no país, mas em caráter muito mais limitado do que o das demais vacinas: Covaxin e Sputnik V. Ainda não foram aplicadas doses dessas vacinas no Brasil.
A tendência para o segundo semestre, levando em conta a previsão de entrega de doses, é que o porcentual da Coronavac em relação à população vacinada caia e que as demais vacinas (a maioria delas usadas na Europa e nos EUA) aumentem a proporção. Nesse aspecto, a situação no Brasil vai ficar mais parecida com a de europeus e americanos do que com a dos chilenos e uruguaios.
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