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O grande debate: Burke x Paine. Ou: Como surgiu a disputa moderna entre “progressistas” e conservadores?

Leio bastante e escrevo muitas resenhas. Por conta disso, essa pode se perder como apenas “mais uma”, o que seria uma pena. Reforço, portanto, logo na largada, que se trata de um dos melhores livros que li nos últimos anos. E como são centenas de livros, isso quer dizer que se trata realmente de leitura imperdível, obrigatória até, eu diria, para quem quer compreender melhor as disputas no campo das ideias no mundo atual.

Falo de The Great Debate, de Yuval Levin, que a editora Record (sempre ela) irá disponibilizar aos leitores brasileiros em breve. Que livro! O autor, que não esconde seu viés mais conservador, trabalha há anos com política, e percebeu a falta de embasamento quanto às origens dos principais valores e bandeiras dos dois grandes partidos americanos. Que tipo de visão de mundo está por trás das bandeiras “progressistas” do Partido Democrata? E qual explica a postura dos conservadores do Partido Republicano?

Levin foi buscar no grande debate travado por dois gigantes no final do século XIX, durante os incríveis anos das revoluções Americana e Francesa que moldaram o mundo moderno, a fonte dessas distinções fundamentais de como perceber o mesmo fenômeno. De um lado, Edmund Burke, liberal Whig que acabou se tornando o “pai do conservadorismo”, ao perceber os riscos da mensagem dos jacobinos. Do outro, Thomas Paine, um dos “pais fundadores” mais radicais, que incendiou a opinião pública com Common Sense, ajudando de forma decisiva na independência americana.

De certa forma, ambos marcam o começo do que se entende, hoje, por direita e esquerda, ao menos nos Estados Unidos. E foi no confronto de ideias entre eles que os conceitos “progressistas” e conservadores foram tomando corpo com maior clareza. Os dois chegaram a conviver por um tempo, e trocaram mensagens. Mas o embate mesmo ocorreria de forma indireta, cada um escrevendo em livros o que via como refutação ao outro.

Um breve resumo da vida de cada um ajuda a compreender suas diferentes visões de mundo. Paine foi um autodidata que chegou a desdenhar de autores passados, alegando que pensava por conta própria, enquanto Burke tirou de sua experiência irlandesa lições importantes sobre tolerância e humildade, já que sua própria família misturava as religiões que se chocavam publicamente. Acomodação e moderação viraram conceitos importantes para Burke, enquanto Paine tinha um viés bem mais afoito e revolucionário.

Cada capítulo do livro vai traçando as principais diferenças nos mais relevantes temas, especialmente no que diz respeito à abordagem de cada um. O que vai ficando claro é como as diferentes premissas, principalmente sobre a natureza humana e a epistemologia, levam a conclusões diametralmente opostas muitas vezes. Partindo de concepções bem distintas do que é o homem e como ele adquire conhecimento, cada um desenhou um modelo político próprio, que entra em conflito com o outro nos mais importantes assuntos.

Enquanto Burke dá mais peso ao emocional do que ao racional, lembrando que o ser humano não é movido apenas pela razão, Paine é um típico iluminista de seu tempo, racionalista, desdenhando de tudo aquilo que não passa pelo crivo da razão. Assim, Burke vai respeitar muito mais as tradições e o estoque de conhecimento acumulado no processo social, por tentativa e erro ao longo dos séculos, enquanto Paine vai encarar a sociedade como tábula rasa, pronta para ser redesenhada do zero com base somente na razão.

Se Burke vai, por conta disso, pregar mudanças graduais com cuidado e prudência, sobre o arcabouço já herdado por cada geração, Paine vai propor uma espécie de revolução contínua, até que a liberdade plena seja alcançada com base nos conceitos de direitos naturais. Burke vai enxergar os partidos como peças fundamentais na política, já que ninguém concentra sozinho uma visão absoluta e correta da sociedade. Paine vai ver com desprezo os partidos, como se fossem facções brigando por interesses próprios, o que se tornaria desnecessário quando todos entenderem a única forma certa de se organizar.

Para Burke, o governo de seres humanos não pode ser fruto de cálculo frio ou fórmulas abstratas, exigindo um conhecimento e uma humildade que os verdadeiros estadistas possuem. Já Paine parte do pressuposto de que tecnocratas racionais poderiam simplesmente aplicar as regras com base nos princípios imutáveis da liberdade e da natureza humana.

Burke fala mais de deveres, Paine de direitos. Para Burke, cada um de nós deve gratidão ao que herdou, e tem a obrigação moral de entregar uma sociedade melhor, preservando aquilo que nela funciona. Paine encara cada geração como a única que realmente importa, e sua visão leva a um individualismo exacerbado, além de um hedonismo que pode ser irresponsável ao ignorar as próximas gerações.

Se Paine está preocupado basicamente com a ideia de Justiça, Burke parece mais atento ao aspecto da estabilidade da sociedade. Burke demonstrava raiva dos reformadores radicais de seu tempo que deixavam suas ideias abstratas dominarem completamente suas ações, sem levar em conta a questão prática da vida em sociedade. Filósofos numa Torre de Marfim com suas abstrações metafísicas tiravam Burke do sério. Paine era um deles, obviamente, ao imaginar um futuro utópico para todas as sociedades uma vez que a ignorância e as superstições fossem abandonadas, dando lugar à razão universal.

Curiosamente, ambos foram defensores da Revolução Americana, mas por motivos diferentes. Se Paine a via como um marco contra o passado de ignorância e escravidão, que serviria como exemplo para o mundo todo, Burke sequer a via como uma revolução, e sim como um resgate dos valores britânicos que a própria Coroa havia ignorado, abusando de seu poder sobre as colônias. Para Burke, os americanos evitaram uma revolução nos moldes jacobinos.

E foi justamente com a Revolução Francesa que as abordagens demonstraram seu maior contraste. Paine foi um entusiasta dos jacobinos, que queriam demolir todas as instituições herdadas e adotar em seu lugar o “templo da razão”, enquanto Burke ficou alarmado com o radicalismo dessas seitas. O tempo mostrou quem estava certo. O Terror foi instaurado, os jacobinos agiram como uma massa descontrolada e violenta, e a ditadura de Napoleão foi o resultado concreto daquele sonho utópico. Paine chegou a ser preso na França por aqueles que defendera antes, sem perceber aonde aquele radicalismo todo levaria.

Há muito mais o que ser dito entre as diferenças de pensamento de Burke e Paine, mas o leitor já pode inferir o básico. Se um é um reformador que preza a cautela e a prudência acima de tudo, o outro é um revolucionário que pretende abolir os alicerces fundadores da sociedade herdada. Se um acha que as emoções pesam bastante nas decisões políticas, o outro acha que é possível fazer escolhas apenas racionais. Se um quer mudanças graduais sem cortar totalmente o elo com as tradições, o outro quer ruptura total com tudo aquilo que já existiu. Se um entende a sociedade como um acordo entre os que vivem, já viveram e ainda viverão, o outro adota um individualismo hedonista onde o eterno é apenas o agora.

Aí estão, de forma resumida, as distinções básicas entre a esquerda e a direita americana, entre os liberais “progressistas” e os liberais conservadores. Claro, existem várias complexidades que podem ser acrescentadas à análise, e Levin não foge delas. Mas o “big picture” é esse. Como alguém que já foi um liberal ateu e radical no passado, chamado inclusive de “Paine tupiniquim”, só posso dizer que hoje estou muito mais próximo de Burke, com sua prudência e moderação necessárias para a evolução da sociedade. Desconfio de revoluções utópicas calcadas em abstrações metafísicas, apesar de reconhecer seu papel de tempos em tempos, para conter os excessos e o abuso de poder dos modelos estabelecidos.

Burke nunca foi um defensor do status quo ou da imobilidade. Ao contrário: foi um dos grandes reformadores no Parlamento britânico. Mas queria mudar com base no que existia, em cima dos valores herdados, com o cuidado para não desmontar completamente a estrutura que permitiu que chegássemos até aqui, e que muitas vezes sequer compreendemos direito, já que nossa razão é limitada.

Se Paine olhava o copo meio vazio, enxergando apenas os defeitos de tudo que existira até então, Burke via o copo meio cheio, com gratidão pelo legado civilizacional que herdamos, e temia que os revolucionários colocassem tudo a perder com sua arrogância racionalista. Acho que a história deu razão a Burke, apesar de ser Paine quem se colocava como o único racional no embate dos dois, acusando o adversário de místico.

Rodrigo Constantino

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