Por que tantos intelectuais apoiaram e de certa forma viabilizaram regimes totalitários terríveis como o nazismo e o comunismo? O que leva um pensador a defender movimentos de “libertação nacional” que imediatamente se transformam em tiranias opressoras, levando miséria e sangue a seus povos? Por que esses mesmos intelectuais desprezam as democracias liberais, apresentadas como a verdadeira tirania – a tirania do capital, do imperialismo, do consumismo burguês?
O professor Mark Lilla procura responder a essas questões em A mente imprudente: Os intelectuais na atividade política. Ele faz uma análise com base em seis intelectuais de coloração ideológica distinta, da esquerda à direita, gente como Heidegger e Carl Schmitt, que emprestaram sua inteligência ao regime nazista, ou Walter Benjamin, Foucault e Derrida, que contribuíram com a ascensão marxista e teceram elogios a ditadores assassinos.
O grande denominador comum entre eles é a paixão pelas Ideias, uma erotização mal calibrada por abstrações. A relação entre filosofia e política nunca foi trivial. Se a paixão filosófica se transforma em paixão política, o risco é incontrolável. Uma é pelo conhecimento, a outra é pelo poder, para “mudar o mundo”. O verdadeiro filósofo precisa ser um tanto desinteressado de questões práticas políticas, mas, quando ele deixa suas fantasias dominarem sua razão, o anseio por alterar o curso da história pode ser irresistível.
O pensador deixa de ser pensador e passa a ser profeta. Suas reflexões não permanecem afastadas das questões políticas mundanas, que deveriam dizer respeito aos outros: cidadãos, estadistas, homens de ação. Ele não se contenta mais em entender o mundo, pois deseja recriá-lo, à sua imagem e semelhança. É quando o intelectual pensa ser Deus que a coisa sai de controle.
Quando Heidegger voltou a ensinar depois de sua aventura como reitor nazista, um colega fez o gracejo que ficaria famoso: “De volta de Siracusa?” Uma referência às três expedições que Platão fez à Sicília, na esperança de converter o jovem governante Dionísio à filosofia e à justiça. Lilla explica: “O projeto educativo fracassou, Dionísio continuou um tirano e Platão mal conseguiu escapar com vida. O paralelo tem sido mencionado não poucas vezes em debates sobre Heidegger, dando a entender que seu erro tragicômico foi ter acreditado momentaneamente que a filosofia poderia orientar a política, especialmente a política suja do nacional-socialismo”.
Platão fala dos “reis-filósofos” em A República, mas muitos interpretam como um alerta para os perigos dessa união, não como a defesa de tal regime. Como lembra Lilla, uma lição prática extraída do livro clássico é que, quando os filósofos tentam tornar-se reis, ou bem sua filosofia será corrompida, ou então a política será corrompida, ou ambas serão. Lilla acrescenta: “A lição de Platão aparentemente é que, para ser completa, a filosofia deve complementar seu conhecimento das Ideias com o conhecimento do reino da sombra da vida pública, no qual as paixões e a ignorância dos seres humanos obscurecem as Ideias. E, para que a filosofia possa iluminar essa escuridão, em vez de agravá-la, deve começar domando suas próprias paixões”.
Mas filósofos são também seres humanos e, portanto, movidos por paixões, não só pela razão. Quando eles não se dão conta disso, costumam se apaixonar pelas suas Ideias e achar que elas são viáveis no mundo real, que podem, eles mesmos, ajudar a implementá-las. Se ao menos algum tirano estiver disposto a adotá-los como seus gurus…
O mundo real das democracias liberais costuma ser entediante demais, banal demais e imperfeito demais para aquele que se encantou com alguma Ideia abstrata, alguma utopia qualquer. A alienação de seus vizinhos se torna insuportável, as fugas mundanas para a angústia existencial, como o consumismo burguês, a religião, as novelas e o esporte, acabam se mostrando revoltantes.
O intelectual sente desprezo pelo próximo de carne e osso, e por isso idealiza o “povo”, a “raça”, a “nação”, a “classe”, qualquer coletivo abstrato parido em sua imaginação. Tampouco o intelectual tem paciência para esperar pelo lento processo de erros e acertos de uma democracia liberal. Ele flerta com o “dicisionismo”, como dizia Schmitt, ou seja, ele quer ação, e já, não importa que determinada por um tirano. O mundo real é profano demais para esses intelectuais messiânicos, que romantizam um futuro – ou um passado, no caso dos reacionários – perfeito. Os revolucionários querem o paraíso terrestre ali na frente, e os reacionários querem resgatar o Éden perdido. Ambos não toleram os defeitos da realidade.
Se o intelectual aceita um papel mais modesto na sociedade – o de ser um espectador independente com um senso modesto de formador de opinião –, ele poderá contribuir com o debate de forma responsável, na eterna tensão entre filosofia e política. Mas, quando ele abandona esse tipo de responsabilidade e abraça com fervor religioso alguma Ideia redentora, ele se torna um perigo maior que qualquer político comum.
O amor quer o bem, mas também pode involuntariamente servir ao mal, explica Sócrates. Ele pode induzir à loucura, um delicioso tipo de loucura que temos dificuldade de controlar. Quando esse amor é por uma Ideia, o perigo pode ser ainda maior. “É fácil amar a Humanidade; difícil é amar o próximo”, disse Nelson Rodrigues. A vida filosófica pretende fornecer esse autocontrole, não por meio de uma renúncia budista, mas uma vida erótica controlada que espera alcançar a sabedoria, a beleza, a justiça.
Quando o intelectual abandona isso e segue seus impulsos, essa paixão expulsa qualquer moderação e assume o controle como um governante tirano. Quando essas almas chegam ao poder, o resultado é a desgraça de seus povos. Lilla conclui: “As ideologias do século 20 apelavam para a vaidade e a pura e simples ambição de certos intelectuais, mas também apelavam, de maneira maliciosa e desonesta, para o senso de justiça e ódio ao despotismo que o próprio ato de pensar parece inculcar em nós, e que, não sendo devidamente controlado, pode literalmente nos possuir”.
Originalmente publicado pela Gazeta impressa