Um esquema bilionário que se perpetua por mais de duas décadas - segundo investigações de diferentes forças de segurança - coloca o crime organizado na linha de frente do comando em empresas e cooperativas do transporte público na cidade de São Paulo. Juntas, as empresas na mira das investigações respondem por cerca de um quarto do transporte diário de passageiros paulistano. O suposto esquema criminoso segue em apuração, agora com um novo capítulo.
A prefeitura de São Paulo abriu duas sindicâncias e disse colaborar com informações necessárias à polícia na apuração sobre a destinação de recursos dos cofres públicos a empresas sob suspeita de envolvimento direto com o Primeiro Comando da Capital (PCC). "A Setram (Secretaria Executiva de Transporte e Mobilidade Urbana) e a SPTrans (São Paulo transporte S.A.) informam que acompanham e colaboram com a polícia em tudo que é solicitado e é de seu total interesse que todos os esclarecimentos legais sejam feitos perante as autoridades policiais e à Justiça", informou em nota.
Um levantamento feito pelo Estadão revelou repasses de mais de R$ 800 milhões feitos no ano passado a pelo menos três empresas sob suspeita de serem comandadas ou terem em suas linhas de comando "laranjas", testas de ferro ou membros do alto escalão da maior facção criminosa brasileira, que figura como uma das maiores da América do Sul e com operação criminosa em diversos cantos do planeta.
As empresas sob investigação - em processos que seguem sob segredo de justiça - são a Transcap, a Transunião e a UPBus. O advogado que representa a Transcap afirmou que um dos acionistas apontados pelo esquema foi absolvido pela justiça. A reportagem da Gazeta do Povo não obteve retorno de representantes das outras duas empresas.
Todas têm contratos com a prefeitura e membros das respectivas diretorias são investigados, há anos, por supostas ligações com criminosos.
Investigações que culminaram em operações no ano de 2022 revelaram que o esquema vem se estruturando desde o início dos anos 2000. Das apurações em andamento pela prefeitura paulistana, uma está sob o comando da Controladoria do município.
A principal suspeita reafirmada há anos é a utilização direta do transporte público na lavagem de dinheiro do tráfico bilionário de drogas e de armas.
PCC: uma máfia em consolidação
O promotor que dedicou as últimas décadas de vida profissional à investigação do grupo criminoso PCC, Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) tem reiterado que a facção vem se consolidando como uma máfia, infiltrando-se em serviços públicos para alavancar, entre outros crimes, prioritariamente a lavagem de dinheiro.
O PCC é considerado pelas autoridades em segurança pública como um dos maiores fornecedores de cocaína a países da Europa.
A facção atua de um modo que se assemelha a de núcleos terroristas. Entre as evidências está uma parceria consolidada há quase duas décadas com o Hezbollah.
Operações revelaram esquema criminoso com envolvimento do PCC em São Paulo
O esquema fraudulento envolvendo o PCC no transporte público de São Paulo, segundo a polícia, ficou publicamente evidenciado após a deflagração de operações do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), há dois anos. O principal foco de uma das ações deflagradas foi a UPBus. Na ocasião, a justiça autorizou o sequestro de bens na ordem de R$ 40 milhões. As apurações apontaram que o capital inicial da empresa saltou, em poucos anos, de R$ 1 milhão para R$ 20 milhões.
Quando o assunto é o transporte público paulistano, os atos ilegais, segundo investigações do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), vão além. A cúpula criminosa envolvida com as empresas do ramo é suspeita de uma série de ilegalidades que se perpetuam para manter o comando do transporte coletivo.
Segundo apuração feita pelo Estadão, a empresa UPBus assinou, mesmo após a operação, dois contratos com a prefeitura de São Paulo a partir da Secretaria de Transportes.
Em meio ao crescimento exponencial do capital social e do enriquecimento de acionistas supostamente ligados ao crime organizado havia um rastro de mortes, ameaças e extorsões.
Morte aos que falham com a facção
Foi também em 2022 que o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) ligado à Polícia Civil fez outra operação que mirou a empresa Transunião. A apuração policial teve origem no assassinato de um ex-diretor da empresa no ano de 2020. Ele operaria como uma espécie de "testa de ferro" de um vereador que estava na direção da empresa.
O vereador era suspeito de lavar dinheiro do PCC no sistema de transporte público de São Paulo. A morte do ex-diretor teria sido motivada, de acordo com a polícia, pela falta de repasse de valores acordados com a facção criminosa. Ele foi assassinado, segundo as investigações policiais, pelo homem que na sequência assumiria a função de diretor da empresa.
Mesmo após a operação, a prefeitura assinou quatro novos contratos com a empresa.
No mesmo ano, a terceira empresa - a Transcap - foi alvo de operação da polícia paulista. Segundo o Deic, no momento das apurações, um dos sócios era investigado por extorsão e ameaças vindas da organização criminosa. O advogado que o representa disse que ele foi absolvido das acusações.
As investigações também apontaram para alianças comerciais com outras empresas ou cooperativas do segmento, que ampliavam a atuação da facção no grupo econômico. Após a operação, a Transcap assinou dois novos contratos com o município paulistano.
Ao Estadão, a prefeitura disse que estes contratos “tratam de temas como a eletrificação da frota [substituição de veículos convencionais pelos elétricos], a retomada do cumprimento de prazos contratuais após o término da pandemia, atualização no Serviço Atende+, e atualização da remuneração” e considerou que outros contratos similares foram assinados com todos os concessionários do sistema de transporte.
À reportagem da Gazeta do Povo, a prefeitura considerou que “as empresas são remuneradas de acordo com o serviço realizado, seguindo os termos dos contratos de concessão assinados por meio de licitação pública, conforme determina a legislação”.
Ainda segundo a prefeitura de São Paulo, os contratos são firmados entre o poder concedente e as concessionárias do serviço de transporte coletivo público de passageiros, que são pessoas jurídicas de direito privado.
As mesmas empresas também conseguiram, mesmo após as investigações, bloqueios de bens e uma série de prisões, acesso a financiamentos milionários aprovados junto a bancos públicos.
PCC se ramifica e alcança transporte público de Campinas
O Gaeco também identificou, a partir da análise pericial em conversas telefônicas em aparelhos apreendidos com autorização da justiça, a suspeita de envolvimento do PCC em trechos do transporte público em Campinas, a terceira maior cidade de São Paulo.
Os aparelhos foram apreendidos durante operação que investigava a utilização de galerias pluviais pelo crime organizado para o tráfico. As conversas comprovariam, segundo a investigação, como o grupo criminoso lava dinheiro a partir de parte de perueiros ligados a uma cooperativa que atesta ser apenas prestadora de serviços aos proprietários dos veículos. Ano passado, a cooperativa foi alvo de busca e apreensão e, em setembro, a justiça acolheu denúncia contra 31 suspeitos de envolvimento no esquema.
A Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (Emdec), alegou, no mês passado, que o termo de permissão é assinado com cada veículo e que não tem contrato com a cooperativa. Uma sindicância realizada no ano passado, que durou mais de dois meses, não teria identificado indícios de irregularidades ou favorecimentos à cooperativa por profissionais públicos.
O órgão do município alegou que fornece informações para a investigação do Ministério Público. Considerou ainda que suspendeu as permissões dos investigados que, juntos, correspondem a seis veículos. O órgão defende que a investigação se dá em três linhas de uma das cooperativas que atendem o transporte alternativo de Campinas e que o sistema, como um todo, é formado por cooperativas e empresas que somam uma frota de mais de 900 veículos. Também considerou que o suposto envolvimento em três linhas “está longe de configurar domínio do sistema” e reiterou que não há indícios de envolvimento de seus colaboradores com o PCC.
Crime organizado: PCC e o faturamento de R$ 4,9 bi por ano
O PCC nasceu em 31 de agosto de 1993 dentro da Penitenciária de Taubaté sob o pretexto de reivindicar melhores condições no sistema prisional.
A facção cresceu além dos muros da penitenciária e, do lado de fora, se voltou a práticas como roubo a bancos, tráfico de drogas e de armas, contrabando de cigarros e parcerias com máfias e núcleos terroristas para ampliar participação no mercado ilícito mundial.
Uma estimativa feita pelo Ministério Público de São Paulo no ano de 2021 indicava a existência de mais de 112 mil membros filiados à facção. Em 2023, o Gaeco de São Paulo estimou que a movimentação financeira da fação criminosa chegue aos R$ 4,9 bilhões por ano (US$ 1 bilhão). Segundo o MP-SP, cerca de dois terços desse total correspondem do tráfico internacional de drogas, com o envio de mais de uma tonelada de cocaína ao ano a outros países.
O restante se dividiria entre o tráfico doméstico e outros crimes. "Não há um caixa único do PCC no país. Os integrantes de São Paulo mandam dinheiro para os estados que têm interesse", afirmou o promotor Lincoln Gakiya, na época do levantamento.
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