O embate declarado entre a prefeitura de São Paulo e os serviços de moto por aplicativo oferecidos pelas empresas Uber e 99, neste início de ano, evidenciam entraves da mobilidade urbana na maior cidade do país e jogam holofotes sobre a oferta do transporte público. Tempo de espera e superlotação estão entre as principais reclamações.
“Nas periferias da metrópole paulistana a cobertura espacial e temporal do transporte público coletivo é péssima. A principal reclamação é o tempo de espera para pegar o ônibus no ponto de parada. A lotação excessiva também é objeto de reclamação. Para fugir desse suplício diário que consome o tempo e a vida dos usuários, surge o mototáxi. A demanda existe, impulsionada pelo péssimo serviço público de transporte”, avalia o mestre em engenharia de transportes pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) Sergio Ejzenberg.
Como forma de popularizar o serviço de moto, Uber e 99 têm investido no conhecimento popular e em promoções, o que inclui corridas gratuitas. Isso significa que as companhias estão investindo recursos próprios para incentivar o uso da plataforma. A 99 afirma que 200 mil corridas foram feitas com o aplicativo na cidade, em uma semana.
“As empresas 99 e Uber não criaram a demanda (do serviço com moto), apenas perceberam a oportunidade de negócio”, constata o professor. “Se ele não for gerido pela prefeitura - há como fazer isso com segurança relativa - será provavelmente gerido pelo crime organizado, de forma selvagem e insegura. Gerindo o serviço, a prefeitura através das empresas poderá controlar obediência ao tempo de percurso (velocidade controlada), limitar o serviço as periferias e receber impostos.”
Sobre o impasse, Ejzenberg é taxativo: “A prefeitura já perdeu a guerra, apenas não descobriu isso. Como perdeu a guerra com as vans (clandestinas) nos idos da década de 1990. Os clandestinos viraram cooperativas e foram legalizados. Se a prefeitura não teve sucesso caçando as lentas e grandes vans, não vai agora ter sucesso caçando milhares de ágeis motocicletas”.
Motociclistas infratores contam ponto negativo para operação do serviço
O gerente de Monitoramento e Avaliação do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), Leonardo Veiga, é mais cauteloso. “É preciso muito estudo que sustente a tomada de decisão com base em evidências. É fundamental lembrar que, em 2023, o próprio prefeito Ricardo Nunes (MDB) proibiu o serviço, alegando questões relacionadas à segurança”, salienta ele.
Para Ivan Whately, vice-presidente de atividades técnicas do Instituto de Engenharia e especialista em transportes, o público está pendendo a questão para o lado político, e não para o técnico. “É uma coisa muito perigosa. As pessoas podem ficar excluídas na periferia, gerando mais exclusão social. Se as autoridades não tomarem uma ação, vão admitir que a vida dos pobres não vale nada”, afirma. “Nós precisamos de transporte na periferia e não temos. Há uma rede de baixa capilaridade na rede de transportes lá”, acrescenta ele.
Por outro lado, Whately evidencia a desobediência das leis de trânsito. “Os motociclistas não respeitam as leis e são indisciplinados, na maioria. Tem um número altíssimo de mortes no trânsito e tem quem queira aumentar isso”, diz.
Sobre a atuação de 99 e Uber na oferta do serviço com motos, ele concorda com a gestão municipal: “É uma gente que só está visando o lucro. Se o prefeito disse que não pode, está em lei, acabou. O que acontece é uma radicalização política que não deveria acontecer”, defende.
Para o advogado Felipe Fonte, especialista em direito do trânsito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Rio, o argumento da gestão Nunes em São Paulo é considerado paternalista. "O argumento público que ele [Nunes] usa é de que as motos causam muitos acidentes, [de que] vai estimular o uso maior de motos, as vias já estão saturadas com os motoboys que fazem entregas, e que esse é um risco público para a coletividade. Acho que é um argumento público do perigo intrínseco dessa atividade, mas é um argumento paternalista. Cada um sabe do risco que toma", diz.
99 diz que segue normas vigentes e prefeitura obtém decisão judicial que suspende o serviço
A 99 responde às críticas afirmando que atua “conforme a legislação federal e respeita as normas vigentes”. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a proibição de transporte privado por aplicativo é inconstitucional. Após o imbróglio desse início de ano entre a prefeitura e as empresas, o juiz Eduardo Gouvêa, da 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), determinou nesta segunda-feira (27) a suspensão imediata dos serviços de transporte com motos das plataformas 99 e Uber na capital paulista. A decisão vale até o julgamento definitivo da ação.
O aplicativo alega que pretende resistir às investidas jurídicas da prefeitura e afirma que vai exaurir todas as opções para defender os direitos constitucionais dos usuários e da empresa. “A 99Moto está em conformidade com a legislação federal, que permite o transporte individual privado mediado por aplicativos tanto em carros quanto em motos em todo o Brasil”, diz Rossini.
Ele argumenta que a "companhia está alinhada ao entendimento de 20 decisões judiciais em todo o Brasil: a de que cabe ao município regulamentar a atividade com regras específicas para a localidade, mas não proibir um serviço que é permitido por legislação federal e opera em mais de 3.300 cidades. Seguimos abertos ao diálogo com a prefeitura para colaborar com uma futura regulamentação, como sempre estivemos.
Número de passageiros do transporte coletivo está em queda
Dados da SPTrans - empresa responsável pela gestão do transporte público de São Paulo - mostram que o número de passageiros transportados nos ônibus municipais não se recuperou em relação ao patamar pré-pandemia de Covid-19. Em 2019, o sistema da cidade de São Paulo transportava mais de 2,6 milhões de usuários. No último ano, esse valor não chegou a 2,2 milhões no ano, uma diferença de 15%.
“Esse passageiro que não acessa mais os ônibus municipais está em outros lugares. Quando possível, ele opta por metrô, mas também, quando conveniente, passa a preferir soluções individuais motorizadas, como carros e motos”, diz Veiga.
Somente 17% da população do município mora próxima a estações de média e alta capacidade, segundo a plataforma Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento. “Se considerarmos a população que ganha até meio salário mínimo, somente 12% mora próxima a estações de média e alta capacidade. Junta-se a falta de ônibus disponíveis em zonas de menor acesso com a escassa infraestrutura de estações de média e alta capacidade, formando um cenário que favorece a procura por motos, carros e outras soluções motorizadas individuais”, ressalta o gerente de monitoramento do instituto.
No âmbito nacional, dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT) mostram que a migração de passageiros do transporte público no Brasil para os serviços de aplicativo passou de 1% em 2017 para 11,1% em 2024. Dentre as pessoas que migraram, 56,6% pertencem à classe C e 20,1% às classes D e E. “Não temos motivos para acreditar que o cenário de São Paulo seja diferente”, responde Veiga.
Empresa 99 comemora adesão ao serviço
Segundo a 99, o crescimento da adesão de usuários foi verificado ao longo da primeira semana de serviço em São Paulo. A média diária foi de cerca de 30 mil corridas. Os três bairros com maior deslocamento nesse período inicial foram Capão Redondo, Itaquera e Tucuruvi. Completam o top 10: Jabaquara, Tatuapé, Itaim Paulista, Santana, Santo Amaro, Vila Sônia e Grajaú. Todas as corridas ocorreram fora do centro expandido.
“As milhares de pessoas que escolheram a 99Moto como forma de transporte só nos primeiros sete dias de funcionamento mostram que o serviço já se consolidou como uma solução acessível e segura para conectar pessoas ao transporte público e facilitar a mobilidade, principalmente nas periferias de São Paulo e com integração ao transporte público”, diz Fabrício Ribeiro, diretor de Operações da 99. As viagens de 99Moto na capital paulista tiveram percurso médio de 6 quilômetros e duração de 13 minutos, em média.
Para Veiga, a 99 - assim como a Uber em 2015 - busca explorar essa insatisfação para expandir seus serviços, mas a estratégia junto à prefeitura é incerta. "A regulamentação do transporte por motocicletas é essencial diante do aumento de 16% nas mortes em acidentes em 2024. Para enfrentar essa crise, são necessárias políticas que melhorem a frequência, qualidade e segurança do transporte público, além da expansão das redes de alta capacidade e infraestrutura cicloviária”, opina.
Ganhos de motociclistas x pagamento de tributos
A nova modalidade de transporte em São Paulo beneficiou mais de 15 mil motociclistas parceiros, que tiveram um ganho total de R$ 2,5 milhões só na capital, segundo a empresa. O valor médio por viagem na primeira semana ficou acima de R$ 12.
O advogado Felipe Fonte, especialista em direito do trânsito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Rio, pontua que a falta de previsão legal para o pagamento de tributos por parte das empresas que prestam essa modalidade de serviço está relacionada à decisão em São Paulo. "Os prefeitos frequentemente se ressentem do fato de que as atividades realizadas por empresas de transporte por aplicativo ocorrem sem o pagamento de tributos ou taxas específicas para isso".
Fonte lembra que, na capital paulista, a prefeitura tentou implementar uma cobrança denominada "preço público das vias públicas". No entanto, no ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo declarou a inconstitucionalidade da medida.
"Segundo o ordenamento jurídico vigente, essa cobrança não é permitida. Além disso, o Imposto Sobre Serviços (ISS), que incide sobre a atividade, só pode ser recolhido no município onde a empresa prestadora de serviços está sediada. Dessa forma, empresas que não possuem sede em São Paulo não têm obrigação de pagar ISS na cidade", explica ele.
Fonte levanta um contraponto: "Muitas empresas com sede em São Paulo prestam serviços em outras cidades do país, e a capital paulista sempre se beneficiou da regra que determina o recolhimento do ISS na sede do prestador de serviços. Por isso, na minha opinião, a tentativa de arrecadar mais dessas empresas, apesar de compreensível, não é justa, já que São Paulo historicamente foi favorecida por essa mesma legislação", pondera.
Contatado pela reportagem da Gazeta do Povo, o SindimotoSP se diz a favor da preservação de vidas e concorda com o posicionamento da prefeitura em relação a proibição do serviço com motos operado pelas empresas 99 e Uber, “por hora, para que seja feita uma regulamentação ou fiscalização específica nas empresas que desejarem oferecer o serviço, pois, até aqui, só querem explorar o serviço e não ter nenhuma responsabilidade social com trabalhadores ou passageiros”.
O sindicato da categoria informa que está aguardando parecer jurídico sobre o assunto e que está formulando uma proposta de regulamentação que seja debatida na Câmara do Vereadores de São Paulo para que haja, então, uma lei municipal sobre o assunto. “É preciso que as empresas cumpram as regras da Lei Federal 12.009, a Resolução Contran nº 930 e respeitem o Decreto Municipal 62.144 do prefeito Ricardo Nunes - que suspende a utilização de motocicletas para a prestação do serviço de transporte individual remunerado de passageiros por meio de aplicativos. Devem ser responsabilizadas em caso de acidentes, tanto em relação ao motociclista condutor quanto passageiros. Hoje, a responsabilidade fica toda para o motociclista.”
A Lei Federal 12.009 regulamenta o exercício das atividades dos profissionais em transportes de passageiros, “moto taxista”, em entrega de mercadorias e em serviço comunitário de rua, e “motoboy”, com o uso de motocicleta, dispõe sobre regras de segurança dos serviços de transporte remunerado de mercadorias em motocicletas e motonetas - moto-frete.
“Os motociclistas devem ter o curso de qualificação de 30 horas obrigatório do Contran para que entendam a importância de obedecer às regras, normas de trânsito, cuidados com os passageiros, etc.”, defende o SindimotosSP. Procurada pela reportagem da Gazeta do Povo, a Uber não respondeu às perguntas enviadas até a publicação deste texto. O espaço segue aberto para a manifestação da empresa.
Prefeitura rebate Uber e 99Moto com ações judiciais e números
A Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana e Transporte reforçou que todas as regiões da cidade são cobertas pelo transporte público, que atende 4,7 mil quilômetros de vias, tem uma frota de 12 mil veículos e percorre 2,3 milhões de quilômetros por dia, chegando aos locais mais distantes e com integração entre o transporte sobre trilhos. Acrescentou que o sistema teve mais de 3,3 mil veículos novos incluídos na frota entre 2021 e 2024 e, desde 2020, a capacidade de transporte de passageiros por ônibus foi ampliada em 11,4%, passando de 907 mil para 1,01 milhão de lugares.
A secretaria ressaltou que o transporte de passageiros remunerado por motos via aplicativo é proibido por decreto municipal de 2023. A prefeitura apresentou, na última quarta-feira (22), uma notícia-crime contra a empresa 99 por descumprir o decreto municipal e pediu que todas as medidas sejam estendidas ao serviço de moto da Uber. Em meio às fiscalizações deste início de ano, a prefeitura apreendeu cerca de 300 motocicletas que estavam operando o serviço.
Para estabelecer a proibição desse tipo de transporte na capital, o prefeito Ricardo Nunes atesta que se baseou em dados concretos sobre o aumento de sinistros, mortes e lesões com o uso de motocicletas na cidade. O crescimento de sinistros e mortes é proporcional ao da frota, que teve um salto de 35% nos últimos dez anos (833 mil em 2014 para 1,3 milhão em 2024). O número de mortes cresceu 20% de 2023 (403 óbitos) para 2024 (483 óbitos), mesmo com a Faixa Azul - sinalização para deliminar o tráfego prioritário de motociclistas - e outras medidas de segurança adotadas pela prefeitura.
Governo estadual destaca obras
Em resposta à reportagem, o governo do estado de São Paulo declara ter um sistema metro ferroviário que atende 123 estações, com mais de 267 quilômetros de trilhos passando por 18 municípios do estado. Em relação à ampliação do sistema, a Secretaria dos Transportes Metropolitanos salienta que possui, simultaneamente, quatro linhas de metrô e trem em obras (linha 2-verde, linha 15-prata, linha 17-ouro e linha 9-esmeralda), que vão propiciar 20 novas estações e mais 24,7 quilômetros de trilhos. O órgão não forneceu detalhes sobre datas de entrega previstas.
“O Metrô investe em projetos para as futuras linhas 19-celeste e 20-rosa, que conectarão Guarulhos ao centro de São Paulo e a Lapa ao ABC. Já a CPTM trabalha na expansão de serviços, como o Terminal Varginha, que será integrado à estação Varginha, e a extensão da Linha 11-Coral, que desde dezembro opera até a estação Palmeiras-Barra Funda”, finaliza a secretaria.
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