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No balcão ou na mesinha, o café faz companhia ao bate-papo ou às reflexões solitárias, | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
No balcão ou na mesinha, o café faz companhia ao bate-papo ou às reflexões solitárias,| Foto:

Entre floriculturas e bancas de jornais, homens e mulheres consternados de sono desviam das poças que se formaram no calçadão da Rua XV de Novembro após a última chuva. São 7h30 e o Café Avenida está lotado. Senhores leem os impressos do dia e refletem sobre a situação econômica do país. Na televisão, o canal de notícias 24 horas informa a queda da Bolsa de Valores no outro lado do mundo. Um homem comenta: “A China ainda irá nos fazer de império colonial”.

O balconista Alex Lecheta aproveita um instante de folga e folheia um livro chamado “Sinopse de Tecnologia Química”, bem afetado pelo tempo, edição de 1977. “Leio de curioso.” Segundo ele, das 7h às 21h passam por ali estudantes, bancários, advogados, aposentados, políticos e artistas plásticos. “Alguns clientes deixam seus livros por aqui e nunca mais buscam”, afirma. Um rapaz de São Paulo, um pouco esbaforido, pergunta onde é a Boca Maldita. “É a mesma coisa que Boca do Brilho?”

Café da Boca, na Rua XVMarcelo Andrade/Gazeta do Povo

No Café da Boca, às 8h, um homem de calça jeans surrada e ares de quem talvez não tenha dormido em casa, pergunta se tem crédito para celular. Não tem. Dois velhinhos e um rapaz se despedem da atendente com um “bom dia”, no que uma cliente, amiga da atendente, sorri e diz baixinho: “Volte sempre”. Descobre-se em pouco tempo que a cliente acabou de terminar com o namorado. “Ele não me merecia”. Dois cafés depois, ela quase se exalta: “Já excluí a criatura do Facebook, apaguei o número no celular, pedi para ele não me ligar mais. Mas ele continua no meu pé”. Ao lado, um engraxate grita a um conhecido: “Mas esse seu sapato está pior que a sua cara!”.

No Edifício Tijucas, inaugurado em 1958, a galeria que dá acesso aos mais de 400 apartamentos também abriga, entre lotéricas, relojoarias e memórias dos tempos dourados da alta alfaiataria curitibana, o Kibe da Boca. O cafezinho sai por R$ 1,90 e três unidades de cueca virada – aquele doce à base de massa de farinha de trigo, ovos e açúcar, conhecido em algumas regiões como orelha de gato – saem por R$ 1,30. Uma morena de longo vestido azul espera alguém no corredor. Seu olhar delimita preocupação, mas logo ela é chamada ao cotidiano pelo filho André, de três anos, que está comendo uma coxinha de modo peculiar. “Filho… Não é para separar a carne da massa…”

Kibe da Boca, no Edifício TijucasMarcelo Andrade/Gazeta do Povo

Alguns metros à frente, a filial da Kopenhagen na rua XV, rede criada em 1928 pelo casal de imigrantes letões Anna e David Kopenhagen, serve um café canelinha, acompanhado de um docinho chamado petit wafer. São agora 9h e o espaço vai fascinar adultos e crianças até às 18h. Uma mulher chega com um carrinho de bebê, vazio, e começa a olhar as prateleiras. Dez segundos depois chega o pai com o bebê no colo. O menino é colocado na mesinha e logo se entretém com os pacotinhos de chocolate, tentando pegá-los mais de uma vez. O atendente Márcio Pereira diz que há clientes que só chegam para um café. “Mas sempre tem aquele que não resiste e sai com algum chocolate”, diz, com um sorriso indisfarçado.

Em frente à chocolateria, às 10h, o Bar e Restaurante Triângulo acaba de abrir. Vende o que é autointitulado o melhor pernil da cidade. Desde 1939, o local estica suas cadeiras na calçada e recebe turistas do mundo todo – agora, dois norte-americanos tentam entender o que vem num dos sanduíches. A carne de pernil é a marca registrada da casa e já recebeu inúmeros prêmios da “crítica especializada”. O prato acompanha um pão, cheiro verde e mostarda escura. O garçom Sidnei Machado trabalha por lá há 17 anos. “A turma do cafezinho surge com o almoço. Antes de voltar ao trabalho, pegam um pingado para evitar aquela preguiça…”, reconhece.

Na Panificadora Dois Corações, um pouco antes das 11h, um casal chega e solicita um calzone. Está assando. “Coitados… Todo dia eles chegam aqui e está assando”, lamenta uma das atendentes. E como se uma força surgisse da rua, uma vendedora de paçocas entra e começa a oferecer o seu produto aos clientes, com pouca discrição. Ela é orientada por outra funcionária a se retirar, mas não parece muito disposta a ceder ao conselho, o que gera uma inesperada desinteligência dentro da panificadora. Após a discussão, a vendedora sai, praguejando. Os 14 clientes voltam aos seus habitats emocionais. Uma menininha de fita vermelha na cabeça, sozinha, entrega cinco reais no caixa e pede um pedaço de bolo de morango. Ela fita o bolo, senta e come com uma paciência tibetana incomum à idade. A controladora de estoque está preocupada. “Como tá saindo calabresa hoje.” Dois estudantes do Colégio Estadual do Paraná não se fazem de rogados e definem a coxinha de catupiry do estabelecimento como a melhor da cidade.

Cacau Show, na Rua XV de NovembroMarcelo Andrade/Gazeta do Povo

Enquanto os transeuntes do calçadão tentam vencer o frio que se enterra nos ossos e o vento de meio-dia, na Cacau Show, um amigo paga o café dos quatro amigos. Seu Joaquim espera pacientemente um espresso puro, sem leite. Homens engravatados discutem planilhas e a beleza de uma das secretárias do departamento. Toca Jack Johnson e uma frequentadora de academia derruba dez centavos. Ela come um docinho trufado com certa volúpia, o que distrai um pouco dois clientes. A balconista Letícia está curiosa e pergunta se pode ler o conteúdo das minhas anotações. Diante do sorriso comovente e um olhar cândido, a reportagem não teve forças para dizer não.

Um pouco antes das 13h , a Galeria Ritz segue com seu visual de saguão de aeroporto, embora ainda guarde algo de mágico dos velhos tempos da Cinelândia curitibana. No Athena Cyber Café, muitas pessoas folheiam os jornais do dia, comentam as capas das revistas da semana ou utilizam um dos três computadores com acesso à internet. Alguns também almoçam. Eloir José dos Santos Prohmann, o folclórico “Mala”, acaba de chegar. Ele é uma das mais conhecidas figuras da Suburbana curitibana. O torcedor do Urano, clube amador do bairro Xaxim, veste uma não tão nova camiseta do Figueirense e repassa alguns hábitos. “Venho aqui toda quinta-feira e sábado. Tomo três cafés, cumprimento os amigos e comento o futebol.”

Em torno das 14h, em frente ao Mister XV, na esquina com a Marechal Floriano Peixoto, passa um homem com uma imensa tartaruga de pelúcia na cabeça. Um menino tenta pegar uma pomba, no que é repreendido pelo pai. Mendigos dormem embaixo de lojas. Pichações demarcam estabelecimento sim, estabelecimento não. Um painel de Sandoval Tiburcio decora a fachada da loja de José Romero. “Ao menos, a prefeitura passou a lavar periodicamente a rua”, alega. Segundo ele, muitos comércios da região andavam com problemas em relação às baratas. Após uma reclamação da Associação Comercial, as coisas melhoraram. “Nós precisamos ocupar os espaços, impedir a depredação física e moral das coisas, encher as praças e ruas de flores, bancos e locais de recreação. Atualmente, muita gente tem medo de andar pelo Centro de Curitiba por medo de ser assaltado”, reclama.

No Sukinho da XV, o relógio marca 15h e oito cadeiras se enfileiram por detrás de um balcão e uma vidraça. Os clientes sentam de costas para as atendentes e observam o fluxo. Um homem vende DVDs a R$1. Um ciclista quase tromba com uma senhora. Um carro buzina para um pedestre que passou no sinal vermelho. Outro carro fura o sinal verde para pedestres. Um cliente pede um chocolate cremoso.

Café Senadinho, na Rua XV, esquina com a Mosenhor CelsoMarcelo Andrade/Gazeta do Povo

Andando um pouco mais de 50 metros, chega-se ao Café Senadinho. Uma placa diz: “O melhor dos melhores cafés”. Numa das paredes internas, o cientista Alexander King insere: “A necessidade básica do coração humano durante uma grande crise é uma boa xícara de café quente”. O nome do estabelecimento presta homenagem à região entre a XV e a Monsenhor Celso, que, de 1920 a 1950, tinha uma intensa atividade comercial-cultural e agitava a vida social da incipiente metrópole. A aposentada Carmen Bigatto toma um cafezinho simples, com açúcar, e dispara diante de um programa policial da televisão aberta. “Está todo mundo louco, principalmente o Jornalismo”. Duas atendentes da loja em frente compram dois cigarros soltos.

Próximo das 16h, a Confeitaria das Famílias é uma opção para quem almoçou bem e pretende tomar um café da tarde leve. São mais de 80 doces, todos a R$ 6,50. Fundada em 20 de outubro de 1945 por Jesus Alvares Terzado, um espanhol da Galícia que já tinha vencido concursos na Europa com suas receitas de doces, abriga um balcão simples e um sistema bem peculiar de distribuição de mesas, quase como se fossem pequenas quadras. O doce de chocolate com creme atravessa gerações – uma senhora informa à netinha que frequenta o local há mais de trinta anos. “Trinta é mais que quatro, vó?”

São 17h no Café Haití. Um casal passa reclamando do frio intenso. Um senhor lê o Lance! no balcão e se mostra pouco satisfeito com o rendimento do Flamengo. A garçonete Alessandra defende o cliente curitibano. “São poucos os que incomodam. A maior parte das pessoas é simpática e comunicativa”. Pôsteres de academias clássicas do Palmeiras decoram o estabelecimento. Começa a chover de mansinho.

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