O Supremo Tribunal Federal (STF) trabalhou muito em 2023, inclusive ao assumir indevidamente os papéis dos poderes Executivo e Legislativo.
Enquanto o STF passava das competências estabelecidas pela Constituição, parlamentares se esforçavam para proteger a competência do Legislativo. Pautas como descriminalização do aborto e do uso da maconha tiveram avanços na Corte, mesmo que os assuntos coubessem apenas ao Congresso Nacional. O tribunal também definiu uma tese que responsabiliza os jornalistas pelas declarações de entrevistados e, em breve, deve discutir sobre a penalização de plataformas de redes sociais por manifestações de usuários, todos temas que fogem da alçada dos ministros.
Para avançar sobre o poder Executivo, o STF adotou a tese de “estado de coisas inconstitucional”, entendimento inexistente na legislação brasileira, que obrigaria a Corte a agir diante da suposta omissão do governo federal, estados e municípios em relação a direitos garantidos na Constituição. Após provocado por partidos de esquerda, ministros do STF assumiram o “governo” das unidades da federação em relação ao sistema carcerário e à situação de moradores de rua, impondo políticas públicas questionáveis. Além de violar a separação de poderes, essa atuação fere o princípio jurídico da “reserva do possível”, quando um agente público exige medidas impossíveis.
Veja abaixo algumas decisões da Suprema Corte em 2023 que extrapolaram as competências do Judiciário.
1) Descriminalização do aborto
O STF começou o julgamento da ADPF 442, ação apresentada pelo PSOL que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Antes da aposentadoria, a ex-presidente Rosa Weber pautou a ação em sessão virtual para declarar seu voto favorável à prática.
De acordo com Lília Nunes, advogada e mestre em Direitos Humanos, o STF deveria reconhecer a competência Legislativa sobre o assunto, ao invés de assumir uma decisão para o qual não foi eleito. “A competência legislativa é uma competência privativa do Parlamento brasileiro, em especial quando se trata de questões referentes a práticas criminosas”, afirmou Lília Nunes.
A Corte alegou omissão do Congresso Nacional sobre o tema, o que não é verdade: houve a apresentação de projetos de lei que procuravam descriminalizar o aborto, mas foram rechaçados pelos parlamentares, o que reflete o desejo da maioria da população sobre o tema.
Tanto a petição do PSOL quanto o voto de Rosa Weber abrem brechas para que o aborto seja praticado até o nono mês de gestação. Isso porque ambos adotaram o entendimento que o nascituro não deve ser considerado “pessoa constitucional”, o que implica que não deve ter acesso aos direitos fundamentais, sequer à vida. Cabe ao atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, decidir quando o tema deve voltar a pauta.
2) Descriminalização da maconha
Uma ação que pode descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal no Brasil também está sendo julgada pelo Supremo. Juristas, inclusive favoráveis à liberação das drogas, apontam a inconstitucionalidade do tema estar sendo apreciado pelo STF.
“Pessoalmente, sou favorável à descriminalização do porte de drogas, mas não cabe ao Supremo decidir sobre isso. Só que, infelizmente, o Supremo tem tomado decisões sobre todo tipo de assunto nos últimos tempos”, disse o doutor em Direito do Estado e professor de Direito Processual Penal, Rodrigo Chemim, em entrevista para a Gazeta do Povo em maio.
O placar está em 5 votos a 1 a favor da descriminalização e alguns dos ministros chegaram a considerar a ampliação da descriminalização para outras drogas além da maconha. Além de definir fora da própria competência, os ministros negam as evidências sobre os impactos negativos das drogas na saúde pública.
Como resposta, o Senado Federal apresentou a PEC 45/2023, que acrescenta dispositivos na Constituição Federal relacionados à criminalização da posse e porte de entorpecentes. O presidente da Casa e propositor da PEC, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), criticou o andamento do processo pelo STF e disse que há uma “invasão de competência do Poder Legislativo”. Apesar disso, a PEC não teve um considerável avanço no Senado.
3) Marco temporal de terras indígenas
Em setembro, o STF derrubou a tese que define um marco temporal para apropriação de terras indígenas, o que também deveria ser decidido por deputados federais e senadores. Até então, a cessão de áreas em favor dos indígenas só valeria para terras que estivessem habitadas por tribos antes de 1988, ano que foi promulgada a Constituição Federal.
A falta de limites temporais para considerar uma terra indígena (podendo remeter a 1500) traz insegurança jurídica aos produtores rurais. Organizações indígenas podem exigir a desapropriação de áreas rurais, a qualquer momento, alegando que aquelas terras teriam sido ocupadas por indígenas no passado. Além de onerar a União, responsável por possíveis indenizações.
Frentes parlamentares e partidos formaram um blocão para agir contra as interferências do STF em pautas do Congresso Nacional. No fim de setembro, um projeto de lei que estabelecia o marco temporal para demarcação de terras indígenas foi aprovado. O presidente Lula sancionou a lei, vetando alguns trechos do texto. Mas os vetos foram derrubados pelo Congresso Nacional.
4) Tese que responsabiliza jornalistas
Outra decisão da Corte que caberia ao Legislativo foi a tese que responsabiliza jornalistas por declarações dadas por entrevistados. Com o uso de termos vagos como “indícios concretos”, especialistas acreditam que a tese do STF pode gerar autocensura em veículos de imprensa. Por medo de divulgar conteúdos que possam prejudicá-los, há mais chances de jornais evitarem a publicação de informações.
A decisão prejudica a liberdade de imprensa, que é garantida pela Constituição Federal. A penalização não se restringe aos jornalistas, mas a toda a sociedade que pode ter menos acesso a notícias relevantes. Como a Gazeta do Povo mostrou, as leis do país já permitem que qualquer pessoa que se sentir agredida por alguma entrevista possa abrir um processo por injúria, calúnia e difamação.
5) Retirada de conteúdo das redes sociais sem ordem judicial
Os ministros do STF já indicaram que consideram necessário regulamentar as redes sociais, seja por meio do Legislativo ou do próprio Judiciário. As ameaças de votação do PL das Fake News rondaram as últimas sessões da Câmara dos Deputados de 2023, mas não se confirmaram. Ainda assim, o STF pode julgar ações que podem interferir na liberdade de expressão nas redes sociais em 2024.
A Corte também poderá definir se as big techs devem ou não responder por conteúdos publicados por seus usuários. O que por si só pode afetar ainda mais a perseguição a discursos contra as agendas ideológicas apoiadas pelo Supremo.
O tribunal foi acionado, em duas ações, para julgar se o artigo 19 do Marco Civil da Internet viola a Constituição. O dispositivo define que as empresas só podem ser punidas se não retirarem os conteúdos após decisão judicial. Segundo o próprio texto, a mediação judicial exigida no dispositivo tem o intuito de “assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura” - em outras palavras, que um conteúdo seja punido arbitrariamente, mesmo que não seja criminoso.
Google e Facebook foram condenados a pagar multas pelo tempo que publicações ofensivas ficaram no ar, antes de decisão judicial obrigar a retirada. Se o STF considerar o artigo 19 inconstitucional, a tendência é de que as empresas comecem a implementar ferramentas para derrubar conteúdos considerados perigosos.
Além de ofensas, a decisão poderá afetar também publicações que critiquem autoridades, órgãos públicos e minorias sociais. Entre as decisões recentes nesse sentindo, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) exigiu retirada de conteúdos que sugerissem desconfiança no sistema eleitoral ou nas urnas eletrônicas.
6) Melhorias no sistema carcerário
Baseada na tese “estado de coisas inconstitucional”, a Suprema Corte obrigou que o poder Executivo em todos os níveis elaborasse políticas públicas em prol do sistema penitenciário brasileiro. Pelo entendimento, questionado por juristas, o STF impôs ao presidente, governadores e prefeitos a priorização de implementação de medidas e uso de recursos no sistema carcerário.
Além de violar o papel de outros poderes e o pacto federativo, a decisão fere o princípio jurídico da “reserva do possível”, quando é impossível o cumprimento de uma lei. “Existe dentro do direito uma norma que você não pode exigir uma prestação que ultrapasse o que é a possibilidade de se fazer”, explica Fabricio Rebelo, especialista em segurança pública. Os problemas dos sistemas carcerários são complexos, o que, consequentemente, dificulta a busca de soluções efetivas.
7) Moradores de rua
Com a mesma tese do “estado de coisas inconstitucional”, o Supremo também decidiu que estados e municípios não podem remover moradores de ruas de espaços públicos, nem recolher seus pertences contra a vontade deles. Ao acatar o pedido da Rede e do PSOL, os ministros invadiram novamente a competência de governadores e prefeitos ao interferir em suas incumbências.
Moraes deu o prazo de 120 dias para o governo federal formular políticas públicas em prol dos moradores de rua, como a oferta de empregos, abrigo e acesso a programas sociais. Estados e municípios também devem estar envolvidos nas iniciativas. No fim do ano, em evento com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e movimentos de esquerda, Moraes foi ovacionado pela decisão.
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