Faça um mapa na cidade. Pegue a Rua Ébano Pereira. É uma subidona, mas goza do consolo dos paralelepípedos. Quando chegar à esquina com a Rua Kellers, vire-se. Tem-se uma bela vista de Curitiba, talvez a melhor. Depois repare: de um lado está o Palácio Garmatter, onde funciona o Museu Paranaense. De outro, no número 502, a Sociedade Polono-Brasileira Tadeusz Kosciuszko. Não se intimide com o nome difícil. Kurytybie é ali.
A sociedade existe há cravados 125 anos. Surgiu em 1890. Deve ser a entidade polonesa mais antiga da América Latina. O prédio em estilo eclético está bem cuidado, os jardins são impecáveis e o “Barsóvia” – nos fundos – não faz feio junto aos concorrentes do bairro São Francisco. As heras que forram a fachada completam o cenário passadista. Bastaria fazer uma selfie e descer a ladeira, não fosse o porém: a “Kosciuszko” cansou de morar no passado.
Aos fatos. Na década de 1990, o clube parecia fadado a repetir o destino de seus congêneres: ser vendido para quem desse mais. Motivos, de sobra. O teto tinha desabado e os vetustos 30 sócios estavam pedindo papinha de pierogi. Não havia jovens interessados – nem mesmo depois da reforma que no início dos anos 2000 pôs a “Kosciuszko” bonita de novo. Até que aconteceu.
No resumo do resumo, o consulado da Polônia mandou uma mensagem, algo como “mexam-se”, em bom português. A reação, quem diria, veio do seio dos sofisticados artistas de origem polonesa, pois os temos às pencas. Começou com a Márcia Széliga, passando pela Dulce Osinski e outras, chegando, por acaso, à fotógrafa Schirlei Mari Freder. “Quem é você?”, disparava a velha guarda das Cracóvias diante daquela mulher exuberante, de sobrenome austríaco, criada entre alemães do Xaxim e sem um parente nas sagradas atas da “Kosciuszko”.
A “Kosciuszko”, pelo que tudo indica, vai levar à loucura os historiadores que decidirem vasculhar essa que muitos tomavam por uma babcia comportada
Pois Schirlei – qual um messias – não só driblou a desconfiança como ajudou a fazer da sociedade a sede da novíssima Casa da Cultura Polônia-Brasil, uma instituição fresca e cheia de amor para dar, dirigida por ela, Széliga e demais. Agora são duas instituições em uma – tem lhes feito um bem danado.
Dia desses, a convite da “Casa”, Áurea e Estrela Leminski botaram prosa e verso nos salões da “Kosciuszko”. Andam interessadas nas raízes polacas do pai. Outrora fechado e sisudo, o prédio da Ébano Pereira agora se abre para 45 interessados em aprender polonês. São os “polônicos”, como se convencionou chamar os que, súbito, andam com coceira de, no mínimo, falar o sobrenome de maneira correta.
As iniciativas vêm em cascatas, da reedição do dicionário polonês de Mariano Kawka a eventos que exploram uma Polônia menos folclórica e mais às voltas com o século 21. Assunte e surpreenda-se. Um aperitivo: entre os projetos mais legais da safra está o livro Sociedade Tadeusz Kosciuzko: 125 anos de contribuição para a construção do Brasil, dos historiadores Tatiana Marchette e Vidal Costa.
A obra, lançada esta semana, espana a poeira e desmonta aquela velha opinião formada sobre os poloneses. Mostra que a “Kosciuszko” nasceu cercada de ruidosas sociedades operárias, no então ponto mais alto da cidade. Diz alguma coisa. Seus idealizadores eram urbanos, cultos e tão barulhentos quanto os vizinhos anarquistas – em especial quando tiravam da prensa o jornal Gazeta Polska w Brazylii, cúmplice da turma que dirigia o clube e endiabrado o bastante para provocar cismas na comunidade, em especial a que morava no Centro, e não nos confins do Santa Cândida, como muitos poderiam jurar.
Tem mais – a “Kosciuszko” abrigava uma rica biblioteca, sala de leitura, uma escola e – pelo que tudo indica – vai levar à loucura os historiadores que decidirem vasculhá-la. Não se trata de uma babcia bem-comportada. Primeiro porque terão de aprender polonês, sem o qual não tem como ler as atas. Outra trabalheira será reunir os documentos da sociedade, perdidos por aí durante os tempos de mixórdia.
O movimento está no começo, mas se pode dizer que os anciões e a jovem guarda andam dançando polcas de felicidade. Está divertido. O termômetro da relação é a artesã Emília Piaskowski, 86 anos. A “Kosciuzko” lhe corre nas veias. Quando nasceu, em 1928, seus pais moravam no grande sótão da sociedade, da qual eram agregados. Saiu dali para casar, em 1955, mas os laços permaneceram apertados qual o quê.
O tempo fez de Emília uma espécie de embaixadora da “Kosciuzko”. “Eu penso em polonês, rezo em polonês”, diz a mulher que se tornou a mais importante fonte viva da agremiação que agregou os imigrantes na capital. Seus súditos não são poucos – estima-se haver 1,5 milhão de descendentes no Paraná, a maioria em Curitiba e região.
Não apreciam nela apenas a memória e o humor – rendem-se a seu talento. Emília talvez seja uma das últimas mestras do wycinanki – as dobraduras de papel que, recortadas com perícia, na base da tesourinha, dão origem a lindos adornos de interiores. “Aprendi olhando. Não tem como ensinar”, dispara, não sem decretar o fim dessa tradição polonesa. Duvido. Do jeito que a coisa anda, não causa espanto se os polônicos fizerem um intensivão de wycinanki no salão da “Kosciuzko”. As gurias do Leminski já estão convidadas.