Na categoria de perguntas desconcertantes que se pode fazer a alguém, uma das mais maliciosas é: seu trabalho serve para que, mesmo? Tirando alguns profissionais, como dentistas, enfermeiras e professores, cuja ocupação tem uma óbvia serventia, a maioria de nós está encarregado de tarefas que, sob um olhar rigoroso, são fúteis. O conhecimento se especializou a tal ponto que hoje cada profissional cuida de pequenos elos de uma cadeia produtiva, os quais, isoladamente, parecem não servir para nada. O sujeito pode ser o maior expert do mundo em dínamos de reatores e se tivesse que sobreviver sozinho (se o apagão o deixasse isolado em uma fazenda, por exemplo) não saberia achar soluções para problemas banais que um agricultor do século passado já sabia resolver.
Dentro da lógica do mercado de trabalho, a especialização valoriza o profissional. Só o especialista domina uma tecnologia e por isso é mais valorizado. Mas do ponto de vista da passagem de cada ser humano pela Terra, a hiperespecialização torna algumas situações patéticas. Afinal, o sujeito gasta oito ou dez horas de seu dia, décadas de sua vida, fazendo algo que, visto por esta grande angular, parece uma mera forma de passar o tempo.
Não estou dizendo que há algo errado com o trabalho em si. O fato é que ele se tornou um elemento identificador da importância de uma pessoa. Ao mesmo tempo, a estrutura erguida ao redor do ser humano é complexa e baseada no consumismo. Para que o consumo de bens que move o mundo se mantenha em ritmo acelerado, é despendido muito esforço em inovação de produtos, marketing e publicidade, e logística. Esforço que exige milhões de pessoas se ocupando de tarefas especializadas e passageiras, que dentro de um contexto maior, parecem insignificantes. Pode-se dizer que o trabalho feito com boa vontade é sempre nobre. E é. Mas isso não serve como resposta para a pergunta desconcertante.
As perguntas desconcertantes têm muita utilidade (desde que tenhamos a delicadeza de não fazê-las em público...). Boas perguntas nos ajudam a ver as situações por um novo ângulo. Concluir que o trabalho é passageiro e, frequentemente, de pouca significância, pode deixar o sujeito deprimido ou libertá-lo. Libertação, no caso, não significa abandonar o trabalho. Significa lembrar que para uma ocupação fazer sentido na nossa vida ela deve nos dar prazer. E se ela for arrancada da nossa vida por algum motivo, a vida não acaba. Porque trabalho é um elemento do mundo ao qual nos dedicamos primariamente por necessidade de dinheiro.
Na mentalidade que prevalece nas últimas décadas, o homem é o seu trabalho. Balela. O homem é muito mais que o seu trabalho. Um ofício não mede o valor de ninguém desvalorizado que o dos poetas? E, no entanto, os bons poetas são eternos, "conversam. Quer trabalho mais" com pessoas nascidas séculos depois deles e iluminam suas vidas (quantas pessoas por aí podem dizer ao fim de um mês de trabalho: "Neste mês de novembro, iluminei a vida de uma pessoa"?). Enquanto isso, outros profissionais muito bem remunerados e cheios de importância caem no esquecimento assim que entram na aposentadoria. É cruel dizer isso, mas, de novo, a constatação de que o que fazemos não nos torna melhores ou piores que outros é que vai nos libertar.
Perdemos o Cine Luz. Me vem à memória uma sessão do filme Noite Sobre a Terra, de Jim Jarmusch, que vi ali na Praça Santos Andrade no início dos anos 90. Havia gente sentada nos corredores! Vou guardar esta memória como homenagem ao velho cinema.
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