O documento que servirá de base para as discussões da Conferência Nacional de Educação (Conae), nos dias 28, 29 e 30 de janeiro de 2024, em Brasília, apresenta uma forte carga ideológica, como já mostrou a Gazeta do Povo. Diante disso, especialistas consideram que a oposição tem uma missão crucial nos próximos meses: diminuir ao máximo a influência dele sobre o Plano Nacional de Educação 2024-2034, que será votado no Congresso neste ano.
Entre outras coisas, ONGs e associações que participaram da elaboração do texto carregaram as tintas na promoção da ideologia de gênero, em frear a liberdade educacional e o ensino domiciliar e até na oposição ao agronegócio em sala de aula. Em meio a essas ideias, o documento também dá forte ênfase à centralização das decisões sobre o ensino no Brasil nas mãos de certas organizações e movimentos sociais (leia abaixo sobre o assunto).
A Conae foi o primeiro passo para a elaboração Plano Nacional de Educação (PNE), que vai orientar políticas públicas na área educacional ao longo da próxima década. O documento de referência servirá para embasar um projeto do Executivo a ser enviado ao Congresso no início do ano.
Os congressistas têm o poder de alterar esse projeto, mas especialistas consultados pela Gazeta do Povo têm demonstrado preocupação quanto ao nível de conhecimento dos parlamentares da oposição sobre o radicalismo e os riscos das propostas.
Para fazer esse alerta, a associação De Olho no Material Escolar divulgou, no dia 13 de dezembro, uma nota pública ressaltando que o documento está "na contramão das melhores práticas adotadas por países referência no setor" educacional.
Entre outras coisas, a entidade aponta a "ausência de base técnico-científica na abordagem do conteúdo"; a postura refratária à iniciativa privada; o ataque à educação domiciliar e à liberdade das famílias; o discurso prolixo e vago, sem rigor técnico, que dificulta o debate; a ausência de uma proposta de letramento dos estudantes; e a falta de pluralidade na escolha dos grupos que elaboraram o documento.
Em trechos do texto da Conae, há menção explícita à luta contra grupos políticos específicos. O texto fala por exemplo em fazer oposição "às políticas e propostas ultraconservadoras", em garantir a "desmilitarização das escolas" e em frear as "intervenções do movimento Escola Sem Partido e dos diversos grupos que desejam promover o agronegócio por meio da educação".
Não por acaso, quatro entidades vinculadas ao agronegócio decidiram assinar a nota pública elaborada pelo De Olho no Material Escolar: a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), a Associação Nacional dos Distribuidores de Insumos Agrícolas e Veterinários (ANDAV), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB).
A presidente da De Olho no Material Escolar, Letícia Jacintho, que é administradora, produtora rural e analista do setor da educação, diz que a entidade está "monitorando atentamente o documento apresentado". "Nossa equipe técnica está debruçada em cada detalhe e, pelo que estudamos e avaliamos, esse documento não pode ser, de modo algum, o Projeto de Lei que vai nortear a educação do País nos próximos dez anos. O aluno brasileiro precisa melhorar urgentemente seus resultados", afirma.
Para ela, o texto de referência da Conae não discute alguns "problemas gravíssimos", como a baixa capacidade de leitura de texto e compreensão em português, a falta de conhecimento sobre operações em matemática, e as metas e submetas de aprendizagem.
Segundo Letícia, a associação "está mobilizando entidades públicas, privadas, parlamentares, academia, lideranças, associações e sociedade civil para encontrar um caminho no qual o documento da Conae seja amplamente conhecido e discutido, e não apenas um recorte opinativo do que a educação deve ser no Brasil".
Um dos problemas, na visão dela, é que muitos parlamentares não têm o tema da educação como foco, e é necessário mudar essa realidade. "Estamos trabalhando ativamente e de forma voluntária em vários municípios, trazendo capacidade técnica e científica para que os parlamentares possam defender um modelo de educação de qualidade, com efetividade e estratégia para colocar o país onde ele merece estar", diz.
Missão principal é dar base argumentativa a parlamentares de oposição, diz especialista
Para a consultora educacional Andréia Medrado Serrano, na atuação para barrar as propostas ideológicas da Conae, o desafio essencial neste momento é evitar a implementação do Sistema Nacional de Educação (SNE), que pode representar um caminho sem volta na centralização do controle da educação brasileira nas mãos de movimentos e grupos com viés ideológico. O ponto mais preocupante do documento da Conae, na visão dela, é esse.
"Embora a gente tenha visto um texto extremamente ideológico, esse texto é só a ponta do iceberg, porque, na verdade, por trás deste texto há todo um movimento de centralização e engessamento da educação nacional", alerta.
Por isso, segundo Serrano, o foco principal daqueles que se preocupam com o enviesamento ideológico na educação deve ser convencer o Congresso a impedir que a gestação do SNE avance tal como está. Ela enfatiza a importância de dialogar com parlamentares da oposição e do centro, explicando os aspectos negativos da Conae e trabalhando em propostas alternativas para a legislação.
"Nosso poder de ação de fato é no parlamento. Precisamos agir conversando e explicando para os parlamentares do que se trata esse texto da Conae, qual é a intencionalidade dessa conferência…", diz. "A narrativa que vem junto com a proposta do Sistema Nacional de Educação é basicamente a seguinte: o parlamentar que votar contra isso não está preocupado com a educação do Brasil. A gente precisa dizer que é exatamente o contrário."
A especialista destaca a necessidade de criar um movimento robusto para apoiar os parlamentares na compreensão dos problemas. Ela considera crucial explicar aos congressistas a necessidade de votar contra a atual proposta do SNE, mostrando como ela limita a liberdade dos entes federativos e da família na educação.
"A ideia é que a gente consiga compreender qual é a estrutura de sistema de ensino que a Conae tem defendido, explicar aos parlamentares e então começar a trabalhar com eles sobre um possível substitutivo que consiga se sobrepor ao projeto que vai vir do Executivo," diz.
A proposta da Conae para um Sistema Nacional de Educação, com um currículo único e pedagogia unificada, ameaça a liberdade educacional e a pluralidade de ideias, contrariando a Constituição brasileira, afirma ela.
"A proposta do Sistema Nacional de Educação é tornar o Fórum Nacional de Educação e o Conselho Nacional de Educação órgãos deliberativos, normativos, que não precisem nem dependam do Executivo Federal para tomar as decisões educacionais. Como sabemos, quem compõe este Fórum Nacional de Educação são entidades que, muitas vezes, nada têm a ver com educação e estão muito mais preocupadas em avançar uma agenda político-ideológica", esclarece.
Caso os grupos contrários ao enviesamento ideológico da educação consigam desbancar o SNE, haverá a possibilidade de uma luta menos desequilibrada em futuras discussões realizadas por movimentos de base da educação, especialmente nas esferas municipal e estadual.
"O grande problema é que, aprovando um Sistema Nacional de Educação nesses moldes, conforme a Conae está propondo, a gente vai ter menos poder de articulação. A gente precisa, neste primeiro momento, lutar para que esse sistema não seja aprovado. Uma vez que tivermos conseguido esse objetivo, então a gente precisa fortalecer os movimentos de base, para que trabalhem nos conselhos de educação."
Para Serrano, movimentos contrários à ideologização da educação ainda enfrentam dificuldades nas etapas municipais, interregionais e estaduais da Conae devido à falta de delegados suficientes com poder de voto. Isso se reflete na etapa nacional, onde a representatividade continua sendo baixa.
Para resolver esse problema, ela vê como imprescindível uma presença mais forte de instituições e movimentos que sirvam como contraponto à ideologização dos conselhos de educação, como uma estratégia de longo prazo para influenciar as políticas educacionais.
"A gente sabe que há uma resistência deles [dos movimentos ideológicos], mas acontece que eles não estavam esperando a nossa resistência. É por isso que a gente precisa continuar. A gente precisa agir na estrutura social mesmo", diz.
Serrano reconhece que os grupos que estão preocupados com a ideologização do ensino começaram a se organizar tardiamente em comparação com outros movimentos sociais, mas considera que o trabalho de correr atrás do prejuízo, apesar de árduo, pode gerar frutos.
"É importante que a gente entenda o mecanismo de como funcionam os conselhos, que nós consigamos colocar pessoas nossas. Vamos enfrentar bastante resistência, como vimos com os conselheiros tutelares e com a impugnação de inúmeras candidaturas", afirma. "Vale a pena continuar essa luta – lembrando que, primeiro, a gente precisa fazer com que esse sistema [o SNE] não seja aprovado. Uma vez que ele seja aprovado, a gente não vai ter mais muita margem para fazer essa luta."
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