Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Sob protesto do governo

Conanda aprova resolução pró-aborto sem orientação sobre entrega para a adoção

Minuta de resolução do Conanda prevê o aborto numa criança vítima de estupro em qualquer fase da gestação e independentemente dos pais (Foto: Freepik)

Ouça este conteúdo

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, do governo federal, aprovou uma resolução que promove o aborto em crianças e adolescentes grávidas que relatarem gestação resultante de abuso sexual, ou em caso de risco de vida da gestante ou anencefalia do feto.

A aprovação foi apertada: foram 15 votos favoráveis (todos de representantes da sociedade civil) e 13 contrários (todos de integrantes do governo). Dois conselheiros, indicados pelos ministérios da Justiça e dos Povos Indígenas, se ausentaram no momento da votação final – se tivessem participado, poderiam evitar a aprovação, se votassem contra e empatassem o placar.

Na assembleia, realizada de maneira extraordinária nesta segunda-feira (23), os integrantes do governo protestaram contra a votação. Além de se queixarem de atropelo a regras do regimento interno, alguns integrantes do Executivo apontaram ilegalidades no texto, como a imposição de obrigações a Estados e municípios sem previsão legal (leia mais abaixo).

Outra dificuldade para a rejeição foi a ausência, na votação, dos representantes de entidades religiosas que integram o Conanda: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Federação Brasileira das Associações Cristãs de Moços (ACM) e Inspetoria São João Bosco (Salesianos). Durante a transmissão da assembleia, ao vivo pelo Youtube, centenas de espectadores protestaram contra a aprovação nos comentários do vídeo.

O Conanda discute desde setembro a resolução, que define conceitos, procedimentos e deveres de órgãos públicos e instituições no encaminhamento de meninas que engravidam.

Pela lei brasileira, o aborto é um crime contra a vida, mas deixa de ser punido, no Código Penal, quando “não há outro meio de salvar a vida da gestante” e quando “a gravidez resulta de estupro e é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Ou seja, pela lei, uma menina só pode fazer o aborto com aval do responsável. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) abriu outra exceção: quando o feto sofre de anencefalia (ausência da calota craniana).

Pela resolução aprovada, haveria, em todos esses casos excepcionais, um “direito humano” ao aborto. O texto inicial dizia que eram hipóteses de “aborto legal”. Na apreciação da proposta nesta segunda-feira (23), o termo foi substituído por “interrupção legal da gestação”.

Boa parte das regras e procedimentos terão, em tese, força normativa. Não há sanções para o caso de descumprimento, mas como se trata de um texto oficial, emitido por um órgão público, vinculado ao Poder Executivo (o Conanda é parte do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania), especialistas preveem que as normas passarão a valer como orientação geral para os atores envolvidos, que incluem conselhos tutelares, hospitais da rede pública, polícias, Ministério Público, Defensoria Pública e Judiciário, principalmente, que integram o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA).

Como boa parte das regras não está prevista em lei, no vácuo legislativo, tende a valer o que está escrito na resolução do Conanda. A norma valerá a partir de sua publicação no Diário Oficial da União. Integrantes do governo, no entanto, ainda tentam barrar esse ato (informações adicionais e a lista de quem votou contra e a favor estão no final desta reportagem).

Resolução aprovada excluiu orientação para adoção

O texto aprovado também exclui a previsão, presente na última versão da proposta, de oferecer à menina grávida informações e orientação sobre a possibilidade de ela manter a gestação para, querendo, entregar o recém-nascido à adoção. Trata-se de uma solução que preserva o direito à vida do feto e é defendida pelos movimentos antiaborto.

Momento em que integrantes do Conanda decidem retirar trecho em que profissionais informariam e orientariam adolescente grávida a optar pela adoção, em vez do aborto (Foto: Reprodução/Audiência Conanda)

A minuta inicial da resolução, publicada em outubro pela Gazeta do Povo, também não previa procedimentos para a adoção. Após críticas e repercussão negativa do governo, do Congresso e parte da opinião pública, a proposta final garantia que as meninas fossem informadas e orientadas sobre a “entrega protegida”, definida como o “direito da pessoa gestante de entregar o recém-nascido, sem constrangimento, à adoção mediante manifestação de vontade responsável, voluntária e informada, previsto no art. 13, §1º, do ECA”.

Todas as partes relativas a isso foram eliminadas do texto. A justificativa é que haveria uma “incompatibilidade temática”, uma vez que a resolução trata primordialmente do aborto; e que sua inclusão na norma promoveria uma “naturalização da gravidez na infância e adolescência”.

Com isso, a resolução determina que a adolescente grávida seja informada e orientada pelos profissionais que atenderem apenas sobre o aborto. Em vários trechos, a resolução trata o aborto como a opção mais segura para a saúde física, psicológica e social da menina grávida. Na prática, há risco de induzimento ao aborto.

“A inclusão do termo entrega protegida desvia o foco central e mistura matérias que possuem natureza jurídica e social distintas, demandando abordagens e normativas específicas. Por isso a entrega protegida deve ser objeto de resolução separada, devidamente discutida em seu próprio contexto”, disse, na votação, o conselheiro Carlos Frederico dos Santos, da União dos Escoteiros do Brasil, que propôs a exclusão.

“Contribui para a normalização de uma situação grave e trata a gravidez em meninas e adolescentes, como algo aceitável e inevitável. Esse posicionamento enfraquece o foco das políticas de prevenção, da violência sexual e da proteção integral, como determina o ECA”, disse ainda o conselheiro.

Ele afirmou que, na prática, oferecer a opção pela adoção é uma “estratégia” para desviar crianças e adolescentes vítimas de violência sexual do acesso ao aborto legal, e que seria contrária aos “direitos e proteção integral da infância”.

Aborto sem consentimento dos pais ou responsáveis

A resolução do Conanda também abre brecha para que as meninas grávidas, que relatem gestação resultante de abuso, possam abortar sem o consentimento dos pais. No caso das menores de 14 anos, o estupro é presumido, ou seja, não precisa haver prova de relação forçada, uma vez que a mulher é considerada incapaz de consentir com o ato sexual.

Nesses casos, a resolução prevê que a menina seja levada rapidamente a algum hospital que realize o aborto, seja informada sobre a permissão do aborto, tenha garantido direito ao sigilo sobre sua identidade, não precise apresentar boletim de ocorrência relatando a violência e tampouco autorização judicial para a realização do procedimento.

Pelo texto da resolução, no momento do atendimento, a adolescente grávida poderá optar por não chamar os pais ou responsáveis para participar da decisão. Se eles aparecerem e discordarem da escolha da menina, o caso será levado à Justiça. Nesses casos, a resolução determina que a opção da gestante seja priorizada.

“A apreciação de seu caso a partir de sua vontade manifestada e do paradigma da proteção integral, que reconhece a condição de sujeitos de direitos de crianças e adolescentes, abstendo-se de atos que deem prevalência à vontade dos pais ou responsáveis legais em detrimento da vontade manifestada pela criança ou adolescente, bem como de sua saúde e integridade física e psicológica”, diz o texto.

Resolução prevê aborto em qualquer fase da gestação

Por fim, a resolução também prevê a realização do aborto em qualquer fase da gestação, o que incluiria, portanto, a realização do procedimento até o limite dos 9 meses da gravidez. Nesses casos de gestação avançada, é utilizada técnica conhecida como assistolia, em que, antes da retirada do feto, injeta-se nele, sem anestesia, substância que provoca uma parada cardíaca.

Neste ano, o Conselho Federal de Medicina tentou impedir a realização do aborto nesses casos, sob o argumento de que, após 22 semanas de gestação, o feto já pode sobreviver fora do útero se tiver o tratamento adequado para um bebê pré-maturo. 

Em maio, a pedido do PSOL, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a resolução do CFM, sob o argumento de que a lei não traz um limite temporal de 22 semanas de gestação nas hipóteses em que o aborto não é punido. Com isso, o aborto até os 9 meses acabou viabilizado por uma decisão judicial monocrática. Agora, virou norma na resolução do Conanda.

Governo foi contra e resolução pró-aborto do Conanda ainda pode cair

Por oposição dos integrantes do governo – parte deles discorda do texto e outra ala teme repercussão política negativa – a votação da resolução estava sendo postergada desde setembro. No mês passado, a nova representante do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Maria do Pilar Lacerda, pediu vista para analisar melhor a proposta. Nesta segunda-feira (23), ela votou pela rejeição do texto e apresentou objeções formuladas pela consultoria jurídica da pasta. “O texto extropola, em boa parte, as competências e atribuições do colegiado”, disse ela, que é secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

A consultoria apontou, “entre outras questões relevantes”, os seguintes problemas:

  • “inovações no âmbito do ordenamento jurídico”;
  • “definições que só podem ser dispostas em Lei”;
  • “novos deveres à União, Estados e Municípios – sem previsão legal”;
  • “a criação de despesas para os entes federados”;
  • “o estabelecimento de atribuições e normas éticas para profissionais de saúde”.

“O parecer da Conjur [Consultoria Jurídica do MDHC] aponta a necessidade de aperfeiçoamento e revisão da Resolução, garantindo maior alinhamento do texto ao arcabouço legal brasileiro”, disse Maria do Pilar Lacerda.

Na votação final, ela e os outros 12 conselheiros presentes votaram pela rejeição do texto. O representante do Ministério do Planejamento, Danyel Iório de Lima, também protestou contra manobras que impediram alguns conselheiros de deliberar – uma delas foi impedida de votar pelo adiamento da proposta porque teria entrado na reunião virtual após a chamada oral; outro conselheiro teve um pedido de vista negado.

“O regimento interno não foi respeitado, ao não conceder a vista ao conselheiro Amarildo [Amarildo Baesso, da Casa Civil da Presidência da República]. E disposições dessa resolução que foi agora apreciada são ilegais, como: não cabe ao Conanda estabelecer deveres, em resolução, para estados e municípios; não cabe ao Conanda estabelecer termos que são somente dispostos por lei, como definição de objeção de consciência, como definição de aborto legal”, disse Danyel Iório de Lima. “Enfim, é uma resolução eivada de muitas ilegalidades”, afirmou.

Representantes do governo ainda acreditam que a resolução pode cair e, segundo apurou a reportagem, vão pressionar a Consultoria Jurídica do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania para impedir a publicação da norma. Do contrário, cogitam influenciar parlamentares para aprovar um decreto legislativo ou lei para derrubar a resolução.

Outro caminho, ainda não discutido internamente, é acionar o STF para derrubar a norma por eventual inconstitucionalidade. Atualmente, existem ações em andamento na Corte para descriminalizar o aborto em todos os casos e também para facilitar sua realização nas hipóteses não punidas pela lei.

Quem votou a favor e quem votou contra a resolução pró-aborto do Conanda

Votaram favoravelmente à aprovação da resolução:

  1. Elisa Tauáçurê da Silva Ferreira, Associação Mães na Luta
  2. Edmundo Ribeiro Kroger, Central de Educação e Cultura Popular (Cecup)
  3. Antônio Lacerda Souto, Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag)
  4. Clóvis Alberto Pereira, Organização Nacional dos Cegos do Brasil
  5. Lucinete Correa Tavares, Instituto Ecovida
  6. Renato César Ribeiro Bomfim, Casa de Cultura Ilê Asé Dósoguiã (CCIAO)
  7. Marina de Pol Poniwas, Conselho Federal de Conselho Federal de Psicologia (CFP)
  8. Marco Antônio Soares, Central Única dos Trabalhadores (CUT)
  9. Deila do Nascimento Martins Cavalcanti, Gabinete de Assessoria Jurídica das Organização Populares (Gajop)
  10. Antonio Pasin, Federação Brasileira de Associações Socioeducacionais de Adolescentes (Febraeda)
  11. Dayse Cesar Franco Bernardi, Associação de Pesquisadores e Formadores da Área da Criança e do Adolescente (Neca)
  12. Débora de Carvalho Vigevani, Instituto Fazendo História
  13. Ana Claudia Cifali, Instituto Alana
  14. Sérgio Eduardo Marques da Rocha, Aldeias Infantis SOS Brasil
  15. Carlos Frederico dos Santos, União dos Escoteiros do Brasil

Votaram contra a aprovação da resolução:

  1. Maria do Pilar Lacerda, Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania
  2. Lucas Leonam Lima da Silva, Ministério da Fazenda
  3. Andrea Oliveira de Nascimento, Ministério do Trabalho e Emprego
  4. Amanda Anderson de Souza, Ministério da Previdência Social
  5. Sonia Isoyama Venâncio, Ministério da Saúde
  6. Erasto Fortes Mendonça, Ministério da Educação
  7. Maria de Jesus Bonfim de Carvalho, Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome
  8. Amarildo Baesso, Casa Civil da Presidência da República
  9. Danyel Iório de Lima, Ministério do Planejamento e Orçamento
  10. Edilma Nascimento, Ministério da Igualdade Racial
  11. Cristiane Sobral Correa Jesus, Ministério da Cultura
  12. Jessica Raiany Santos Costa, Secretaria Nacional de Juventude, Secretaria-Geral da Presidência da República
  13. Paulo Quermes, Ministério do Esporte

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.