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A decisão do desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), para autorizar a publicação de uma resolução pró-aborto tem sido classificada como ideológica e inconstitucional por juristas. A resolução, publicada no último dia 8, facilita o aborto em meninas de até 14 anos, nos casos de gestação resultante de violência sexual. O documento não limita o tempo gestacional para a realização do aborto – podendo ocorrer até o 9º mês de gestação – e dispensa o consentimento dos pais ou responsáveis.
A resolução foi aprovada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). De acordo com o texto, meninas menores de 14 anos que relatarem estar grávidas em decorrência de estupro devem ser encaminhadas imediatamente a um hospital para a realização do aborto. O documento também exige que diretores de hospitais indiquem um médico para realizar o procedimento, caso os profissionais presentes se recusem a executá-lo por objeção de consciência. Outro ponto controverso é a dispensa de apresentação de boletim de ocorrência do crime de estupro ou de autorização judicial para que seja realizado o procedimento. Para juristas, a decisão de Ney Bello é mais um exemplo de ativismo judicial.
Especialistas apontam ativismo ideológico na decisão de Ney Bello
Na decisão, Ney Bello trata o aborto como um direito, mesmo que o ato seja considerado crime no Brasil, previsto no Código Penal. A legislação cita apenas casos chamados tecnicamente de "excludentes de ilicitude", ou seja, quando um ato permanece crime, mas não se aplica a pena. No crime de aborto, a ausência de punição ocorre quando há risco de vida materna ou quando a gravidez é decorrente de estupro.
Entre as orientações mais criticadas da resolução do Conanda está a dispensa da autorização dos pais ou responsáveis para a realização do aborto. Essa diretriz contraria a legislação vigente, que exige o consentimento parental em casos envolvendo crianças e adolescentes, mas isso não foi citado pelo desembargador.
A fundamentação jurídica é essencial em decisões judiciais, de acordo com os juristas ouvidos pela Gazeta do Povo. Neste caso, caberia ao magistrado fazer uma ponderação entre os possíveis direitos que estão em conflito e, assim, esclarecer os motivos de seu veredito. “Os fundamentos de uma decisão servem para as próprias partes e para a sociedade como um todo, até para a própria fiscalização dessa fundamentação. O que se percebe, em decisões como essa do desembargador Ney Bello, é que ele não menciona sequer o direito à vida do bebê gerado, por exemplo”, destaca Igor Costa, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa.
Na exposição da decisão, o magistrado levanta questionamentos polêmicos:
“A criança, ou a menina ou a pré-adolescente vítima de abuso merece proteção rarefeita, no mesmo momento em que o feto – inviável ou não – fruto da agressão irascível deve ser protegido frente à interrupção da gravidez?”
Bruno Coletto, doutor em Direito pela UFRGS, reforça a crítica ao caráter ideológico da decisão. “Nitidamente, pelo juízo de valor realizado no julgamento, com a presença de várias expressões nesse sentido, a posição política e pessoal daquele magistrado foi o motivo central da decisão, e não os critérios estritamente jurídicos da questão”, aponta.
Decisões com fundamentos ideológicos são cada vez mais comuns
Em outro trecho, o desembargador defendeu a resolução com argumentos polêmicos:
“De onde observar ser minimamente razoável – em defesa de vulneráveis crianças e adolescentes vítimas de abuso e estupro – lutar pela manutenção da violência adrede gerada, sustentando – por vias formais – a manutenção de uma gestação causada por um gesto violento, repugnante e atroz de um adulto? Como, em pleno século XXI sustentar a razoabilidade da não interrupção da gravidez em casos tais?”
Para juristas, decisões com caráter ideológico, como a de Ney Bello, não são novidade no Brasil. Igor Costa aponta que, embora exista consenso de que juízes possuem certa margem de interpretação além da aplicação literal da lei, uma nova corrente, chamada de neoconstitucionalismo, tem ampliado excessivamente essa prerrogativa. “Essa corrente majoritária exagera a capacidade interpretativa do juiz, permitindo que ideologias escusas influenciem decisões, muitas vezes extrapolando os limites do Direito”, explica.
Ele destaca que essa abordagem frequentemente resulta em ativismo judicial, porque facilita que o Judiciário invada as competências de outros poderes, especialmente do Legislativo. “A decisão do desembargador, infelizmente, não é um descompasso com o que se tem praticado no Brasil, que é uma linha neoconstitucionalista de interpretação do Direito”, acrescenta.
Coletto concorda que esse problema não é exclusivo da decisão de Ney Bello, mas um reflexo de um cenário mais amplo do Judiciário. “Há tempos, muitos operadores do direito perderam a noção da diferença entre direito e política. Me parece que a decisão do TRF1, em vista dos argumentos que apresenta, é, sim, um exemplo, entre tantos outros que temos visto cotidianamente, dessa perda”, reforça.
Parecer jurídico do governo afirma que resolução é inconstitucional
Após um intenso esforço interno do Conanda, sem divulgação prévia à sociedade, a resolução foi aprovada no dia 23 de dezembro. Imediatamente, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) acionou a Justiça para pedir a suspensão da publicação. O juiz federal Leonardo Tocchetto Pauperio atendeu ao pedido da parlamentar ao suspender liminarmente a medida e solicitar que o Conanda prestasse informações em 10 dias. A decisão de Ney Bello sustou a medida e a resolução foi publicada. Em reação, a senadora apresentou um novo recurso, ainda não apreciado.
Durante a reunião que aprovou a resolução, representantes da sociedade civil e de membros do governo Lula tiveram fortes de divergências. A Casa Civil da Presidência havia orientado o voto contrário à medida, temendo possíveis danos à imagem do presidente. Mesmo assim, representantes do governo que votaram contra a medida comemoraram a decisão favorável de Ney Bello. Maria do Pilar Lacerda, da Secretaria da Criança e do Adolescente, determinou a publicação imediata da norma, garantindo que entrasse em vigor no mesmo dia.
Sobre o conteúdo da resolução, o próprio documento também ultrapassa as competências do Conanda. De acordo com um parecer jurídico do Ministério dos Direitos Humanos, a resolução do Conanda define questões que caberiam apenas ao Congresso Nacional. Apesar disso, o desembargador Ney Bello não menciona as inconstitucionalidades indicadas no parecer em sua decisão.
Coletto enxerga a presença de uma clara politização na fundamentação de Ney Bello, pois, segundo ele, está repleta de juízos de valor sobre o mérito da política pública em questão. Na decisão, o magistrado afirma:
“Percebo que agiu corretamente o Conselho multicitado quando regulou, dentro de suas atribuições previstas em direito positivo, a matéria legal, estabelecendo os pressupostos necessários à correta interrupção da gravidez quando fruto de abominável violência.”
“Poderia muito mais ser o voto de um dos conselheiros, do que a análise sobre a legalidade do ato administrativo impugnado. Ou seja, foca em lançar sua própria visão política sobre o tema. E pior, seu principal argumento é no sentido de que um dos lados ideológicos da discussão não pode prevalecer sobre o outro. Mas, paradoxalmente, é justamente isso que a própria decisão faz em toda sua fundamentação”, critica Coletto.