Por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a diretriz de “erradicação de todas as formas de discriminação” do Plano Nacional de Educação (PNE) deve contemplar a discriminação por gênero, identidade de gênero e orientação sexual. No julgamento concluído no último dia 1º, a Corte destacou que ações de cunho machista e homotransfóbico devem ser especialmente coibidas. A decisão reforça a pauta política a favor da ideologia de gênero e deixa os pais que querem evitar a doutrinação dos filhos em uma situação difícil.
“O que o STF quis fazer com esse julgamento é reforçar o combate ao preconceito e à discriminação em relação a opção sexual, o que me parece uma orientação desnecessária e com um apelo político”, analisa Igor Costa Alves, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa. Para o advogado, a expressão “todas as formas de discriminação” encontrada no dispositivo na lei do PNE é abrangente, o que evidencia que o texto não possui inconstitucionalidade.
O Psol, requerente da ação, alegou que escolas e instituições de ensino se sentem intimidadas a não abordar esse tema. A petição afirma que, em 2016, “grupos reacionários” elaboraram um modelo de notificação extrajudicial e o disponibilizaram aos pais para “ameaçar as escolas de processos de indenização por danos morais caso tratem do tema da ‘ideologia de gênero’”. Ainda segundo o partido, esse tipo de conduta “impõe nas escolas a ideologia de gênero cisgênera”.
Direção de escola estadual alegou que não poderia fazer nada sobre menino frequentando banheiro feminino
Desde que o STF equiparou o crime de homofobia a racismo em 2019, questões relacionadas a gênero têm gerado receio, especialmente em instituições de ensino, de responsabilizações judiciais por alguma conduta que possa ser considerada discriminatória. Na prática, os pais já encontram dificuldades concretas para evitar que os filhos recebam influência sobre o tema no ambiente escolar.
Uma mãe, que prefere não se identificar, conta que não teve muito o que fazer depois que sua filha de 10 anos e um grupo de amigas relataram que estavam com medo de usar o banheiro durante o intervalo. Um colega da turma de 6º ano, que se identificava com o gênero não-binário, havia recebido autorização da escola para frequentar o banheiro destinado às meninas. A mãe procurou a direção da escola para entender o que estava acontecendo, mas a solução encontrada foi mudar a filha de colégio no ano seguinte.
O fato de o garoto estar no banheiro com um celular era o que deixava as meninas mais apreensivas, com receio de serem fotografadas ou filmadas em momentos íntimos. “Apesar de se declarar como não-binário e se vestir como menina, ele namorava uma menina que o acompanhava no banheiro. Uma colega da minha filha comentou que o fato de ele ter preferência sexual por mulheres a deixava ainda mais constrangida enquanto usava o banheiro”, relata a mãe.
Na tentativa de proteger a filha, a mãe conversou com a professora para permitir que a menina usasse o banheiro durante a aula, quando se sentiria mais segura. “Procurei a direção e eles me falaram que tinham medo de fazer algo e depois serem acusados de transfobia. Ainda mais porque a legislação estadual permite”, conta.
A legislação citada pela mãe da aluna é a lei 15.082 de 2013 do estado de São Paulo. Sancionada pelo então governador Geraldo Alckmin, o texto afirma que “proibir o ingresso ou a permanência em qualquer ambiente” pode ser considerado ato discriminatório contra homossexuais, bissexuais ou transgêneros. A pena pode chegar a mais de R$ 100 mil em caos de reincidência, além da cassação da licença estadual de funcionamento.
Instituições de ensino podem responder criminalmente por discriminação homotransfóbica
Venceslau Tavares Costa Filho, professor de Direito Civil da Universidade de Pernambuco, acredita que a nova decisão do STF fomenta o “denuncismo” e aumenta as possibilidades de as escolas responderem processos tanto na esfera administrativa como criminal. Especialmente depois da equiparação da homofobia ao crime de racismo pelo STF e quando, dois anos depois, em 2021, a Corte ter considerado que o crime de injúria preconceituosa é inafiançável e imprescritível, seja por racismo, xenofobia, homofobia ou conduta antirreligiosa. Esse entendimento depois foi transformado em lei pelo Congresso Nacional e sancionado por Lula.
“A decisão [sobre as escolas] tem um viés que, na minha opinião, é preocupante porque foca na discriminação baseada no gênero quando a gente sabe que existem diversas formas de discriminação. Acho que essa decisão pautada no voto do ministro [Edson] Fachin pode ter implicações morais e religiosas”, analisa Costa Filho. Outro ponto preocupante, segundo o professor, é que o termo discriminação é usado de forma abrangente, o que traz mais receio aos gestores escolares.
O professor considera grave a omissão do ministro Edson Fachin, relator da ação no Supremo, ao não citar a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o país é signatário. A norma é clara ao afirmar que os pais têm direito a que seus filhos recebam educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.
“Evidentemente, esse movimento quer emplacar uma ideologia disfarçada de direitos humanos”, corrobora Igor Costa. “É o que se tem verificado na prática quando se ensina dogmas da ideologia de gênero – que são contrários à moral de muitos pais – sobre o pretexto de ensinar igualdade, respeito e dignidade da pessoa humana. Isso agride vários direitos constitucionais como liberdade da educação, liberdade de consciência e, em especial, o direito dos pais de dirigir a educação dos filhos”, complementa.
STF e unidades da federação divergem sobre questão de ideologia de gênero nas escolas
Para Costa, essa decisão reflete uma pauta política na qual o STF tem se envolvido, contrariando claramente o posicionamento do Poder Legislativo de Estados e municípios. Diversas leis estaduais e municipais foram criadas na tentativa de impedir a ideologia de gênero nas escolas. Apesar disso, esse tipo de legislação enfrenta barreiras no STF.
A conduta da Corte de considerar inconstitucionais leis estaduais e municipais que proibiam o ensino da ideologia de gênero nas escolas não é nova. Em fevereiro de 2023, Rondônia teve uma lei dessa natureza que foi derrubada pela Corte. Amazonas também passou por situação semelhante em maio deste ano, ao proibir o ensino da linguagem neutra em colégios. Além disso, entidades LGBT recorreram ao STF para que sejam declaradas inconstitucionais outras 18 leis municipais sobre o tema.
Igor Costa também destaca que, durante outro julgamento, da ADPF 461, para tratar a inconstitucionalidade das leis sobre ideologia de gênero ou linguagem neutra nas escolas, o STF argumentou que esse era um assunto que não deveria ser influenciado pelo Estado. “Agora, na contramão do desejo do Poder Legislativo de diversos municípios, o mesmo STF cria uma obrigação que claramente abre espaço para que esse conteúdo ideológico seja veiculado”, observa.
O advogado ressalta que no acórdão sobre a inconstitucionalidade da lei de Paranaguá (PR), o ministro Luís Roberto Barroso é claro ao afirmar que “tratar de tais temas não implica pretender influenciar os alunos, praticar doutrinação sobre o assunto ou introduzir práticas sexuais”. “Em uma tentativa de proteger os filhos, bem como o seu próprio direito sobre a educação moral dos filhos, os pais que considerarem que houve doutrinação têm o direito, por essa manifestação, de ajuizar ações contra o ente público, se for escola pública, ou contra a própria escola, se for privada, segundo esse entendimento do próprio Supremo”, sugere Costa.
Escolas confessionais correm perigo?
Ainda não se sabe ao certo o quanto a decisão pode impactar as escolas confessionais que se opõem à ideologia de gênero por seus fundamentos religiosos e morais. “A Igreja Católica considera a ideologia de gênero e a mudança de sexo como um atentado a dignidade da pessoa humana, por exemplo. Se uma escola católica ensinar isso para seus alunos, ela estará discriminando? Isso é uma questão que se levanta após essa decisão do Supremo”, questiona o professor.
A dúvida surge especialmente porque o STF definiu que a tese que equipara a homofobia ao racismo não se aplica ao exercício da liberdade religiosa de fiéis e ministros religiosos, permitindo que possam externar suas convicções. Para a Corte, as manifestações não devem, ao mesmo tempo, configurar discurso de ódio que incite a discriminação, hostilidade ou violência contra pessoas homossexuais ou transexuais.
“O que me preocupa é que, se em uma escola confessional houver ensinamentos que considerem condutas homossexuais como pecado, isso possa ser visto como discriminação. A ressalva feita pelo STF no processo de equiparação da homofobia ao racismo foi apenas para líderes religiosos e, consequentemente, ensinamentos dentro da igreja. A interpretação se essa questão se estende ou não às escolas confessionais ficará a critério do juiz”, analisa Costa Filho.
O advogado Igor Costa explica que, baseado neste ponto da tese, as escolas confessionais, bem como as escolas que se declaram como promotoras da ideologia de gênero, por exemplo, podem abordar temas morais com seus alunos. “Fora dessas hipóteses, não se pode fazer proselitismo moral em sala de aula, particularmente com crianças pequenas”, reforça.
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