Entrevistas e reportagens que denunciaram diversos esquemas de corrupção no Brasil e levaram à demissão de ministros, prisão de deputados e até a queda do então presidente Fernando Collor poderiam não ter existido se a imprensa fosse responsabilizada por declarações de entrevistados.
De acordo com o advogado constitucionalista André Marsiglia, se a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na última quarta-feira (29) tivesse sido imposta aos jornais que publicaram a denúncia do mensalão ou a entrevista de Pedro Collor, possivelmente o material teria sofrido “autocensura”.
Afinal, “para que o veículo não seja corresponsável, a tese do STF exige que a imprensa faça aferição se há indícios concretos sobre a declaração, o que é inviável”, pontua o advogado, ao citar que a decisão exige da imprensa “mais rigor e cuidado que uma investigação policial”.
Segundo o especialista, as investigações policiais não são encerradas quando há “indícios” de que determinada denúncia é real, mas isso faz com que o processo seja aberto e tramite até sua conclusão. “E agora o STF impõe que a imprensa conclua pela ilicitude, ou não, com base em indícios, o que torna inviável a investigação”, lamenta.
Para ele, o resultado é o “cerceamento à liberdade de expressão”, já que o jornalismo diário e investigativo que precisa ser realizado com a rapidez exigida pela atualidade só será possível por veículos fortes financeiramente, que tenham equipe jurídica e peçam às fontes que assinem termo de responsabilidade. “Isso torna a relação entre entrevistado e veículo constrangedora, e ainda não inibe um processo contra o jornal.”
Confira abaixo algumas denúncias de corrupção que, com a decisão do STF, “só seriam publicadas se o veículo assumisse o risco inevitável pela publicação”, pontuou Marsiglia.
1. Entrevista de Pedro Collor à Veja denunciou o ex-presidente Fernando Collor
Em maio de 1992, uma entrevista publicada pela revista Veja resultou na queda do ex-presidente Fernando Collor. Depois de ser eleito em 1989 com a promessa de modernizar o país e combater a corrupção, seu irmão revelou à reportagem que Collor era sócio de Paulo César “PC” Farias — ex-tesoureiro da campanha do irmão —, em negócios ilegais que extorquiam empresas e realizavam tráfico de influência em nome do presidente.
“Qual foi o principal mote da campanha do Fernando? Quem roubava ia para cadeia. Na prática, estou vendo uma coisa completamente diferente”, afirmou Pedro à Veja, citando que não sabia com exatidão a finalidade do esquema. “Deve ser para sustentar campanhas ou manter o status quo.”
Na entrevista, Pedro Collor disse ainda que o irmão seria mentor do esquema. “O Fernando não entra no varejo da coisa. Ele apenas orienta o negócio”, enquanto “o PC é o erudito do roubo, da corrupção, da chantagem”, citava outro trecho da entrevista.
Em 25 de maio, dia seguinte à publicação, o assunto ganhou espaço em outros veículos do país, e Pedro Collor afirmou à imprensa que PC Farias teria oferecido US$ 50 milhões para que ele desistisse das denúncias contra o irmão. Dois dias depois, o Congresso instaurou uma CPI para investigar o caso. Outras denúncias surgiram e Collor acabou renunciando à Presidência em 29 de dezembro, para evitar o processo de impeachment instaurado no Senado.
Em 2014, o STF decidiu absolver Collor. Os ministros seguiram o entendimento da relatora do caso, a ministra Cármen Lúcia, de que a denúncia apresentada pelo Ministério Público estava malfeita e, por tanto, não haveria prova suficiente para condenar o ex-presidente.
2. Entrevista de Roberto Jefferson à Folha de São Paulo revelou esquema do mensalão
Em junho de 2005, a Folha de São Paulo publicou uma entrevista com o então deputado Roberto Jefferson (PTB) em que ele denunciou, pela primeira vez, o mensalão, esquema organizado pelo PT que pagava mensalmente R$ 30 mil — hoje o equivalente a R$ 80 mil — para cada parlamentar que apoiasse o governo Lula no Congresso, em 2003 e 2004.
Na entrevista, o deputado e presidente do PTB citou detalhes do esquema que desviava cerca de R$ 3 milhões por mês e afirmou que teria alertado diversos ministros e o próprio presidente. “Fui informando a todos do governo a respeito do mensalão”, disse na entrevista, ao citar que a mesada começou em 2003 e 2004, logo após a chegada do partido ao poder.
“Eu tenho 23 anos de mandato. Nunca antes ouvi dizer que houvesse repasse mensal para deputados federais por parte de membros do partido do governo”, afirmou Jefferson, falando ainda do motivo que deu início ao esquema.
“É mais barato pagar o exército mercenário do que dividir o poder. É mais fácil alugar um deputado do que discutir um projeto de governo. É por isso. Quem é pago não pensa”.
A denúncia fez com que o caso fosse julgado pelo STF, em 2012, sendo chamado por jornais internacionais, como a rede britânica BBC, de o “maior julgamento de corrupção do país”.
Ao todo, 25 pessoas foram condenadas à prisão, entre eles o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, e o empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, dono de agências de publicidade contratadas pelo governo federal que usava essas empresas para desviar recursos dos cofres públicos para políticos indicados.
Além disso, o STF concluiu que o Banco Rural deu suporte ao mensalão, alimentando o esquema com empréstimos fraudulentos e permitindo que os políticos sacassem o dinheiro sem se identificar.
3. Entrevista com o caseiro Francenildo, ao Estadão, com denúncias contra o ex-ministro Antonio Palocci
Outro caso é o da entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, em 2006, pelo caseiro Francenildo Santos Costa. Em meio aos desdobramentos do escândalo do mensalão, ele revelou que o ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, usava uma mansão alugada em Brasília para dar festas e negociar propinas.
Francenildo contou ao jornal o que viu na mansão em que trabalhava no Lago Sul, região nobre de Brasília, onde Palocci faria reuniões de lobby, usando seu cargo e prestígio para obter vantagens. O ministro informou na época que nunca esteve na casa, mas a denúncia de Francenildo motivou a demissão de Palocci do cargo pelo ex-presidente Lula.
Francenildo também teve seu sigilo bancário quebrado e chegou a ser acusado de ter recebido dinheiro para depor contra Palocci, mas provou que o alto valor depositado em sua conta era do seu pai biológico.
Dez anos depois, em 2016, Palocci foi preso na 35ª fase da Operação Lava Jato, e Francenildo concedeu nova entrevista à revista Época. “Quando eu vi a notícia veio tudo na minha cabeça”, disse Francenildo, ao afirmar que estava “aliviado” com as revelações feitas sobre o envolvimento do ex-ministro com desvio de recursos públicos.
“Isso mostra que eu estava falando a verdade”, afirmou. “Eu já estava esperando que isso ia acontecer. É aquela coisa de que a hora vai chegar”.
Apesar de ter feito delação premiada, Palocci depois negou relação com os ilícitos apontados. Em dezembro de 2021, o STJ anulou a condenação imposta em 2017 pelo então juiz Sergio Moro contra o ex-ministro no âmbito da Operação Lava Jato (mais de 12 anos de prisão). O ministro Jesuíno Rissato entendeu que a Justiça Federal de Curitiba não tinha competência para julgar as acusações.
4. Assessores acusam André Janones de montar esquema de “rachadinha” em gabinete
No último dia 27 de novembro, o jornal Metrópoles, com sede em Brasília, publicou um áudio gravado por assessores do deputado federal André Janones em que o parlamentar pediria parte do salário a assessores para pagar suas despesas pessoais.
“Algumas pessoas aqui, que eu ainda vou conversar em particular depois, vão receber um pouco de salário a mais, e elas vão me ajudar a pagar as contas do que ficou da minha campanha de prefeito”, cita o áudio publicado pelo jornal. “Não considero isso uma corrupção”, continua.
O deputado já havia sido denunciado anteriormente por um ex-assessor, que afirmou à Procuradoria-Geral da República e ao mesmo jornal, que Janones praticaria rachadinha.
“No dia da posse na Câmara, o deputado reuniu todos os assessores no gabinete. Falou que teria projetos políticos e que, para isso, os assessores teriam de contribuir financeiramente com parte do salário”, afirmou Fabrício Ferreira à reportagem do Metrópoles, em janeiro de 2022.
Janones negou ter participado de um esquema de rachadinha e disse que o áudio foi espalhado pela “extrema-direita”. “Usaram uma gravação clandestina e criminosa, um áudio retirado de contexto e para tentar me imputar um crime que eu jamais cometi”, disse por nota, também ao Metrópoles.
De acordo com entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a prática configura enriquecimento ilícito, dano ao patrimônio público e é passível de inelegibilidade. A denúncia está sendo investigada pela Procuradoria-Geral da República e Polícia Federal (PF).
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