A prisão do ex-assessor de Jair Bolsonaro (PL), Filipe Martins – em cárcere desde 8 de fevereiro devido a uma viagem que nunca existiu –, pode ser considerada como prisão política, dando sinais de que o Estado Democrático de Direito no Brasil está sendo cada vez mais fragilizado e a liberdade de contestação destruída. Essa é a visão do doutor em Ciência Política pela USP, Marcelo José Suano.
Professor de Relações Internacionais e analista político entrevistado pela Gazeta do Povo, o especialista afirma que há diversas definições para o termo “preso político”, mas que todas convergem para situações envolvendo “uma personagem, uma liderança ou alguém que se manifeste sobre determinado regime político em que está inserido e apresente suas falhas, sendo por isso julgado e penalizado”.
Segundo o especialista, o motivo para a prisão desses indivíduos não é um crime comum descrito na legislação do país, como roubo ou assassinato, por exemplo. A causa seria apresentar opinião sobre a situação política do país em que vive, sobre questões que envolvem decisões de autoridades ou algo do gênero, “ressaltando-se que, não se pode ofender a honra daqueles que estão sendo observados e sobre os quais se emitiu opinião ou avaliação”, pontuou.
“Eles passam a ser perseguidos porque contestaram uma ordem política, o que é considerado atentado ao regime”, explica Suano, pontuando que a existência de presos políticos evidencia que não se vive mais em um Estado Democrático de Direito, onde há liberdades inabaláveis, como a livre manifestação do pensamento.
Afinal, “a democracia é o poder do povo por meio do controle que ele tem de seus governantes, e os direitos fundamentais são a única maneira de exercer esse controle”, completa.
O que aconteceu com Filipe Martins?
Martins foi preso preventivamente durante a Operação Tempus Veritatis — realizada há dois meses — sob argumento de que teria deixado o país em avião oficial no dia 30 de dezembro de 2022 sem passar pelos controles migratórios. No entanto, ele entregou às autoridades documentos que comprovam sua permanência no Brasil, como a passagem aérea que emitiu de Brasília para Curitiba no dia seguinte à suposta viagem. Além disso, a própria Latam Airlines confirmou que o ex-assessor embarcou no avião rumo ao Paraná.
No pedido de prisão expedido por Alexandre de Moraes também há a afirmação de que o encarceramento do ex-assessor seria necessário para garantir a ordem pública e promover a instrução criminal, evitando que o investigado alterasse alguma prova. No entanto, juristas como o doutor em Direito de Estado Rodrigo Chemim caracterizaram a fundamentação apresentada como “superficial”.
“De acordo com a jurisprudência dominante, entende-se que é possível prender preventivamente alguém para evitar reiteração de um comportamento delitivo”, explica Chemim. “Mas isso ocorre quando há algum dado concreto que evidencie alta probabilidade para essa reiteração delitiva, e na decisão eu não vi nenhum argumento nessa linha”, afirma o especialista, que é professor de Processo Penal na Universidade Positivo (UP).
Além disso, a defesa de Filipe Martins garante que a liberdade do ex-assessor não coloca em risco as investigações ou a ordem do país, pois ele não exerce mais cargo público ou de influência, e já teve diversos bens apreendidos durante a investigação. “Foram capturados celulares, tablets e outros itens”, informa o advogado Ricardo Scheiffer, citando ainda que a Procuradoria-Geral da República (PGR) chegou a emitir parecer favorável para sua liberdade provisória no dia 1º de março.
A manifestação foi assinada pelo procurador-geral, Paulo Gonet Branco, e encaminhada ao gabinete de Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, o ministro não revogou a prisão, mantendo o ex-assessor em uma cela do Complexo Médico Penal (CMA), em Pinhais, no Paraná, há 60 dias.
“Tudo com base em um processo repleto de suposições, algo que não é admitido em uma democracia”, aponta o cientista político Suano. “Com todo respeito, direitos fundamentais como a presunção de inocência deveriam estar sendo levados em consideração por um Estado Democrático de Direito”, ressalta.
Segundo ele, o que está ocorrendo é a “presunção de culpa de Martins”, já que o rapaz tem provado desde o início que não se ausentou do Brasil. “Ele ter o dever de explicar que não é culpado é inversão dos valores e inversão do processo”, alerta o professor, ao salientar que, nesse cenário, a figura de preso político existe. “O regime jurídico em uma democracia não admitiria que uma pessoa fosse presa ou processada por suposições.”
Ainda de acordo com o estudioso, outro fato que configura “prisão política” é a desconsideração das provas apresentadas pela defesa. “Se está demonstrado que as acusações são infundadas, mas a prisão é mantida, realmente não estamos mais em um Estado Democrático de Direito”, reitera. “Isso demonstra que a democracia está morrendo porque o direito à contestação morreu e o direito de se reunir para falar bobagens sobre assuntos de qualquer natureza já morreu também.”
“Isso demonstra que a democracia morreu porque a contestação morreu e o direito de se reunir para falar bobagens sobre assuntos de qualquer natureza já morreu também”.
Quais são os argumentos usados por Moraes para manter a prisão de Filipe Martins?
A Gazeta do Povo teve acesso ao relatório da Polícia Federal (PF) para verificar os argumentos usados para afirmar que Filipe teria supostamente fugido do país. De acordo com o relatório, na data em que Martins teria embarcado para os Estados Unidos no avião presidencial, sem passar pela imigração, há informação sobre a entrada do ex-assessor no Palácio da Alvorada às 9h14, sem registro de saída.
Procurada pela Gazeta do Povo, a defesa afirmou que isso pode ocorrer por diversos fatores ao longo do dia e que o próprio advogado já entrou no Palácio e não registrou sua saída. “Se isso fosse uma prova contundente, eu estaria lá até hoje”, alega Scheiffer.
O documento da PF informa também que, no momento em que fez diligências na casa dos pais de Martins, eles teriam dito serem “os únicos moradores do local e que seu filho Filipe estaria residindo no exterior, sem fornecer maiores detalhes”. A defesa afirmou que os pais são idosos e que foi provado por documentos que a fala é inverídica.
Além disso, agentes federais consultaram o site norte-americano I-94, com dados de viagens disponibilizados pelo Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, e que “o referido site confirmou o registro de entrada de Filipe Martins na data de 30/12/2022 pela cidade de Orlando, Estados Unidos”.
No entanto, os Termos de Uso da plataforma informam que ela “não é fonte oficial”, que não apresenta todas as informações existentes a respeito de voos que entram e saem dos Estados Unidos e que “não pode ser usada para finalidades legais”. Em suas regras, inclusive, está escrito que o uso indevido pode ser considerado crime.
“Tanto que o mesmo site não apresenta dados da última viagem que o ex-assessor efetivamente realizou com o presidente no dia 21 de setembro de 2022 e que é citada no relatório da PF”, aponta o advogado de defesa, ao relatar ainda que entregou à Polícia Federal em 19 de fevereiro uma série de documentos que contrariam a afirmação de suposta fuga.
“Mostramos as passagens aéreas de Brasília para Curitiba em nome dele e da mulher, datadas de 31 de dezembro de 2022, assim como os comprovantes das bagagens que despacharam, e a mensagem de confirmação da companhia aérea”, informa. Também foram enviadas fotos do casal com amigos na região de Ponta Grossa.
“Prisão arbitrária e abuso de poder”, aponta jurista
Esses argumentos foram analisados pelo professor de Direito Penal Gauthama Fornaciari, que atua na área criminal há 20 anos e afirma que “a defesa comprovou que o investigado não viajou em comitiva para os Estados Unidos, mas sim para Curitiba, conforme declarado pela companhia aérea”.
Isso, de acordo com o especialista, prejudicou a argumentação da PF a respeito “da ausência de registro de saída do Alvorada no dia anterior, da alegação sobre uma fala dos pais que foi desmentida por eles e da mera inclusão de seu nome em lista de passageiros do Department of Homeland Security, que são registros precários, sem caráter oficial e sobre algo que não se concretizou”, explica, ao citar ainda “falta de contemporaneidade” dos fatos devido à data da “suposta fuga” e da prisão, realizada “sem intercorrências no dia 8 de fevereiro de 2024, em território nacional”.
O relatório da PF também afirma que a prisão de Martins ocorreu no apartamento de sua companheira em Ponta Grossa/PR na posse de poucos pertences, e que isso permitiria fácil alteração de local, já que o município “encontra-se a cerca de 461 quilômetros de distância da cidade de Dionísio Cerqueira, fronteira com a Argentina, e 551 quilômetros até a cidade de Guaíra, fronteira com o Paraguai”.
No entanto, o jurista pontua que as distâncias citadas são “significativamente longas” e que “cogitar risco de fuga apenas por essa circunstância é mera conjectura”. Além disso, lembra que o Brasil possui protocolo de assistência jurídica mútua em assuntos penais com os países do Mercosul e que nenhum dos elementos citados demonstra risco de fuga para decretação de prisão preventiva.
“O que vemos é um inequívoco constrangimento ilegal”, afirma. “E isso significa que é uma prisão arbitrária com abuso de poder”, continua Gauthama, relatando ainda decisão do STF de 13 de outubro de 2015 a respeito da “impossibilidade de decretação da prisão preventiva com base apenas em presunção de fuga”.
Falta consenso internacional a respeito de presos políticos no Brasil
No entanto, apesar das arbitrariedades apontadas pelos especialistas, o cientista político Alexandre Pires, professor de Relações Internacionais do Ibmec SP, explica que não é possível usar o termo "preso político" no Brasil atualmente, pois outros países com regimes democráticos liberais precisariam enxergar essa realidade no país para confirmá-la.
Afinal, "a não ser que haja algum consenso internacional de que o Brasil passou (ou voltou) a ter um regime de exceção, dificilmente seria tecnicamente possível enquadrar a prisão de qualquer pessoa no Brasil de hoje como prisão política”, aponta Pires, ao afirmar que "todas têm se ancorado, mal ou bem, na nossa legislação penal".
Segundo ele, o que poderia formalizar esse consenso internacional, entretanto, seria a aprovação de uma lei de anistia pelo Congresso. "Isso mostraria que há prisão política aqui, o que levaria a uma reclassificação das condições de funcionamento das instituições políticas brasileiras”, já que, “em democracias liberais não há, por definição, crimes de opinião, especialmente opiniões sobre o exercício do poder”, finaliza.
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