Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Defesa da liberdade de expressão

Gazeta do Povo protocola manifestação sobre censura no Brasil à CIDH

relator da cidh
O relator especial da liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Pedro Vaca Villareal. (Foto: ASCOM/Bia Kicis)

Ouça este conteúdo

A Gazeta do Povo protocolou, nesta quarta-feira (12), uma manifestação escrita à Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que está no Brasil para acompanhar a situação da liberdade de expressão no país.

A visita da CIDH, que ocorre ao longo desta semana, inclui uma série de encontros com autoridades, organizações da sociedade civil, vítimas de censura e perseguição judicial e representantes da imprensa. O objetivo é avaliar as condições atuais da liberdade de expressão no Brasil, especialmente diante de abusos recentes contra vozes críticas ao Judiciário.

No documento enviado à CIDH, a Gazeta do Povo descreveu casos concretos de censura e destacou o clima de insegurança jurídica vivido por jornalistas e veículos de imprensa no Brasil. O jornal relatou situações de censura prévia, remoção de conteúdos, bloqueio de contas e sanções financeiras aplicadas sem o devido processo legal, além de abordar a desmonetização de canais e as decisões do Judiciário que contrariam o Marco Civil da Internet.

Além de enviar a manifestação escrita, a Gazeta do Povo também estará presente no encontro com a relatoria, que ocorrerá na próxima sexta-feira (14), em São Paulo. Na ocasião, o representante do jornal reforçará os principais pontos expostos no documento e apresentará as conclusões do congresso "O Debate Essencial: Liberdade de Expressão", realizado pela Gazeta do Povo em 2023.

A manifestação escrita, reproduzida na íntegra a seguir, ressalta o compromisso histórico do jornal, fundado há 106 anos, com a liberdade de expressão como pilar essencial da democracia. Confira:

--

A Gazeta do Povo saúda a vinda da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil para acompanhar de perto os desafios enfrentados pela democracia brasileira. A presença desta Comissão representa uma oportunidade importante para reafirmar os princípios do Estado de Direito e contribuir para que a normalidade institucional seja restaurada em nosso país. A vigilância internacional sobre o respeito aos direitos humanos é relevante para que abusos sejam corrigidos antes que se consolidem em nosso sistema normativo.

Como jornal comprometido com a informação e com o debate público responsável, a Gazeta do Povo, que completou 106 anos no último dia 3 de fevereiro, sente diretamente a importância da liberdade de expressão não apenas como um direito fundamental, mas como um pilar indispensável para o funcionamento da imprensa e da democracia.

Embora o Brasil tenha uma tradição de imprensa livre e vibrante, nos últimos anos testemunhamos um processo de restrição crescente à liberdade de expressão, com medidas que colocam em risco o direito à informação. A normalidade institucional, que deveria ser assegurada pelas instâncias jurídicas, tem sido sistematicamente ameaçada por decisões que restringem o debate público, silenciam vozes dissidentes e estabelecem um clima de insegurança para jornalistas, analistas e cidadãos.

Dentre os principais problemas que vêm comprometendo a liberdade de expressão no Brasil, destacamos:

- Restrições extraordinárias sem justificativa, limite e transparência: A liberdade de expressão, como qualquer outro direito fundamental, pode ser objeto de limitações em circunstâncias excepcionais, desde que tais restrições sejam devidamente justificadas, proporcionais e dentro de um arcabouço jurídico transparente. No entanto, no Brasil, a censura tem sido aplicada sem critérios claros, sem amplo direito de defesa e sem mecanismos eficazes de controle sobre os excessos cometidos por autoridades judiciais. Nos últimos anos, o STF abriu sucessivos inquéritos sigilosos sem objeto específico, permitindo que ministros atuem simultaneamente como vítimas, investigadores e julgadores, violando o sistema acusatório. O Inquérito das Fake News, por exemplo, está há quase seis anos sendo usado para perseguir críticos do Supremo, sendo aplicado a uma infinidade de casos distintos, e não há nenhuma previsão oficial quanto a seu encerramento.

- Confusão entre fato, opinião e fake news: Conceitos como "desinformação" têm sido utilizados de forma subjetiva para justificar remoções de conteúdo e sanções, transformando tribunais em árbitros da verdade, sem transparência nos critérios adotados. Durante as eleições de 2022, o TSE ordenou o banimento de perfis e conteúdos que questionavam a integridade do sistema eleitoral. O economista Marcos Cintra, por exemplo, foi alvo dessa censura apenas por apontar, com base em dados oficiais do próprio TSE, que Bolsonaro teve zero voto em centenas de urnas, questionando se havia uma explicação para o fenômeno. Apesar do tom moderado e da ausência de qualquer acusação direta de fraude, o STF determinou a exclusão do tuíte, classificou-o como "fake news”, impôs censura prévia a Cintra proibindo novas postagens suas sobre o tema, sob pena de multa diária de R$ 20 mil reais, e ordenou que a Polícia Federal fosse à sua casa para notificá-lo e interrogá-lo. Sua conta no X foi bloqueada e a plataforma foi obrigada a fornecer seus dados ao tribunal.

- Avanço da censura prévia: Decisões judiciais têm derrubado publicações antes mesmo de sua veiculação, o que caracteriza censura prévia e cria um efeito inibidor sobre o trabalho da imprensa e de analistas políticos. Além de ter normalizado a derrubada de páginas em redes sociais e a desmonetização de canais, o Judiciário brasileiro chega a determinar que alguns cidadãos não têm o direito de criar perfis nas redes, como nos casos do jornalista Allan dos Santos e do influenciador Monark. Em outubro de 2022, o TSE proibiu a exibição do documentário "Quem Mandou Matar Jair Bolsonaro?", produzido pela Brasil Paralelo, até o final do segundo turno das eleições. A decisão foi tomada antes mesmo da veiculação do conteúdo.

- Sanções desproporcionais e arbitrárias: Medidas como bloqueio de redes sociais, desmonetização de canais e remoção de perfis têm sido aplicadas sem previsão legal clara, punindo jornalistas e cidadãos sem direito ao contraditório e estabelecendo um ambiente de repressão do discurso no mundo digital. O famoso empresário Luciano Hang, por exemplo, teve suas contas bancárias bloqueadas e foi alvo de busca e apreensão pela Polícia Federal apenas porque estava em um grupo de WhatsApp no qual outras pessoas – não ele – expressaram opiniões políticas consideradas “golpistas” pelo Judiciário.

- Desrespeito ao devido processo legal: Investigações sigilosas e decisões judiciais que afetam a liberdade de expressão têm sido implementadas sem permitir amplo direito de defesa, comprometendo a previsibilidade do sistema jurídico e gerando um ambiente de medo. Em agosto de 2024, o jornal Folha de S.Paulo revelou que o ministro Alexandre de Moraes criou uma unidade informal dentro do Judiciário para produzir e modificar relatórios que embasavam decisões em casos do STF sob sua própria supervisão. Esses documentos eram usados para justificar medidas restritivas contra indivíduos previamente selecionados por Moraes, que determinava até mesmo quais postagens em redes sociais deveriam ser alvo de investigações. Sua equipe pressionava servidores do tribunal a cumprir ordens fora dos trâmites judiciais normais.

- Violação do Marco Civil da Internet: O avanço das cortes superiores sobre a regulação do ambiente digital não se deve a uma lacuna legislativa, mas sim a um ativismo judicial que ignora os limites estabelecidos em lei. O artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece que plataformas digitais não podem ser obrigadas a remover conteúdos sem ordem judicial específica e fundamentada. No entanto, o STF e o TSE inovaram juridicamente ao criar normas próprias para remover conteúdos de ofício, sem necessidade de provocação externa. Em 2022, por sugestão de Alexandre de Moraes, o tribunal aprovou uma resolução concedendo à presidência do TSE o poder de ordenar a remoção de conteúdos sem pedido de candidato, partido ou Ministério Público Eleitoral. Além disso, impôs multas de até R$ 150 mil por hora para descumprimentos e permitiu a suspensão preventiva de perfis e canais acusados de “desinformação”, mesmo sem decisão judicial específica. A aplicação dessas medidas em desacordo com o Marco Civil da Internet abriu um precedente perigoso para a censura de conteúdos jornalísticos e políticos.

Como se nota, sob a justificativa de combater desinformação e discursos perigosos, as cortes superiores vêm restringindo o espaço de discussão sobre temas fundamentais para a sociedade brasileira. O resultado é um ambiente em que jornalistas e cidadãos são obrigados a medir cada palavra, temendo sanções que podem ir da remoção de conteúdos ao banimento de plataformas.

Um caso que atingiu diretamente a Gazeta do Povo foi a remoção de uma publicação no X (antigo Twitter), determinada pelo TSE em 2022. A publicação censurada noticiava a suspensão do sinal da CNN pela ditadura de Daniel Ortega na Nicarágua. O conteúdo fazia alusão ao apoio do presidente Lula a Ortega. O ministro que julgou o pedido, Paulo de Tarso Sanseverino, alegou que houve "campanha difamatória" do jornal contra Lula. O episódio gerou reações de parlamentares, jornalistas e entidades como a Associação Nacional de Jornais (ANJ), que alertaram para os riscos de se consolidar um ambiente onde a crítica legítima se torna motivo para sanções arbitrárias.

Alguns colunistas da Gazeta do Povo também foram alvos de censura. Rodrigo Constantino teve suas redes sociais e contas bancárias bloqueadas e seu passaporte cancelado por ordem do ministro Alexandre de Moraes, sem que houvesse qualquer acusação formal, apenas por expressar opiniões políticas. Flávio Gordon foi banido do X (antigo Twitter) por determinação do TSE, unicamente por questionar a segurança das urnas eletrônicas. Guilherme Fiúza também teve suas redes sociais banidas e só pode reavê-las no último dia 7 de fevereiro. A inclusão desses jornalistas em inquéritos sigilosos, sem que tenham conhecimento exato das razões ou acesso pleno às acusações contra eles, cria um ambiente de intimidação e reforça o efeito de autocensura na imprensa brasileira.

A censura judicial direta é apenas um dos elementos do problema. Um dos efeitos mais danosos das recentes decisões dos tribunais superiores é a criação de um clima de medo e insegurança, que leva jornalistas e veículos de imprensa a evitar temas considerados sensíveis. Questões como a confiabilidade do sistema eleitoral ou as decisões do STF se tornaram delicadas a ponto de serem tratadas com extrema cautela, não por razões éticas ou editoriais, mas por receio de represálias judiciais.

Esse ambiente representa uma ameaça real à função essencial da imprensa de fiscalizar o poder e garantir que a sociedade tenha acesso a informações relevantes para a formação de sua opinião. Quando jornalistas precisam pensar duas vezes antes de publicar análises sobre instituições públicas, a transparência e a accountability são comprometidas, e a democracia perde um de seus principais instrumentos de controle social.

Embora a Gazeta do Povo não esteja entre os veículos mais diretamente atingidos pela censura, sua cobertura jornalística tem permitido sentir de perto os impactos concretos dessas restrições sobre indivíduos e grupos que enfrentam sanções arbitrárias. Entre os casos mais preocupantes está a situação dos presos de 8 de janeiro, que permanecem encarcerados após processos marcados por flagrantes violações ao devido processo legal.

Os advogados dessas pessoas têm denunciado reiteradamente violações às prerrogativas da defesa, incluindo restrições à comunicação com seus clientes e dificuldades no acesso a documentos essenciais para a formulação de recursos. O tratamento diferenciado dado a esses réus, quando comparado a outros episódios de vandalismo político no país, sugere um uso seletivo do aparato judicial para punir um grupo específico, o que fere os princípios básicos de imparcialidade e isonomia da Justiça.

Muitos manifestantes do 8 de janeiro receberam penas extremamente severas sem comprovação individualizada de sua participação em atos violentos. Por exemplo, a dona de casa Iraci Nagoshi, de 71 anos, foi condenada a 14 anos de prisão sem que houvesse provas concretas de sua participação na depredação dos prédios públicos.

A severidade e a falta de garantias nesses julgamentos não apenas punem os envolvidos, mas também servem como um alerta silencioso para toda a população, criando um ambiente de temor que desencoraja qualquer forma de protesto ou contestação ao poder estabelecido.

A Gazeta do Povo tem sido um dos veículos de comunicação a dar visibilidade a essa realidade, expondo as inconsistências nos processos e ouvindo advogados que relatam a dificuldade de garantir que seus clientes tenham um julgamento justo. Esse papel é fundamental para que o país não normalize a ideia de que determinados grupos políticos podem ser privados de direitos básicos sem reação da sociedade.

A visita da CIDH ao Brasil ocorre em um momento em que o país precisa urgentemente reafirmar seus compromissos com a democracia e os direitos fundamentais. A liberdade de imprensa e o direito ao devido processo legal são princípios inegociáveis, e qualquer tentativa de relativizá-los deve ser vista com preocupação.

A censura imposta pelo Judiciário brasileiro, seja por meio da remoção de conteúdos, do bloqueio de perfis ou da criminalização da opinião, tem avançado de forma alarmante. Se não for contida, pode se tornar um mecanismo irreversível de controle da informação e de repressão ao debate público.

Agradecemos a oportunidade de apresentar este relato e nos colocamos à disposição para fornecer mais informações e esclarecimentos sobre os temas abordados. Seguiremos firmes na defesa da liberdade de expressão e do direito à informação, princípios essenciais para a preservação da democracia no Brasil e no mundo.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.