Ainda que denúncias apontem que a tentativa de golpe na Bolívia tenha sido “encenação”, especialistas afirmam que o fato, registrado na última quarta-feira (26), ilustra as características necessárias para que se tenha um golpe de Estado. “A partir do que ocorreu lá, é possível perceber que as ações do 8 de janeiro, aqui no Brasil, não foram golpe e nem tentativa de golpe”, aponta o doutor em Ciência Política pela USP, Marcelo José Suano.
Professor de Relações Internacionais e analista político entrevistado pela Gazeta do Povo, o especialista afirma que todos os elementos necessários para evidenciar essa investida aparecem na situação da Bolívia.
“Vemos atuação das Forças Armadas, uma liderança específica, pessoas por trás tentando nortear uma conduta após as ações, e a exigência da substituição de um poder por outro”, enumera o especialista, ao afirmar que golpe é “a derrubada de um governo e a imposição de um novo mediante uso da força, o que não aconteceu em 8 de janeiro”, esclarece.
1. Golpe precisa da atuação do Exército e de armas
Esse é o primeiro ponto a ser analisado, segundo ele, pois na Bolívia é nítida a condução dos atos pelas Forças Armadas, inclusive com invasão do palácio presidencial do país por tanques do Exército e militares fortemente armados. “Já no 8/1, o que se vê são cidadãos sem armamento e sem apoio de tropas militares”, compara.
Segundo a advogada Carolina Siebra, especialista em Direito Penal da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (Asfav), chamar o 8/1 de golpe seria o mesmo que enquadrar as ações daquele dia na descrição de “crime impossível”, abordado no artigo 17 do Código Penal como uma situação com “ineficácia absoluta do meio”.
Afinal, “como tomariam algum poder sem nenhuma arma para ‘lutar’ contra a polícia?”, questiona a advogada, citando que “todos os golpes que o Brasil já sofreu ocorreram com forte armamento e liderança”, aponta.
2. Golpe precisa de um líder
A questão da liderança é outro ponto existente na “tentativa” registrada na Bolívia, onde o comandante militar Juan José Zuñiga coordenou o grupo de soldados que tentou tomar a sede do governo boliviano e que enfrentou o presidente Luis Arce durante a ação. “Ainda não se sabe quem era a personalidade por trás de tudo, mas vemos que havia uma coordenação”, afirma o cientista político Marcelo Suano.
No entanto, no 8 de janeiro, não havia uma liderança, e o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), trata sobre isso nos votos que apresentou em relação às condenações dos participantes do 8/1.
De acordo com ele, os manifestantes aguardavam que as Forças Armadas agissem ou que algum evento inesperado, que nem mesmo os participantes sabiam precisar, ocorresse. “Não havia um plano concreto do que fazer exatamente após a invasão, no sentido de efetivamente depor o Presidente da República”, afirmou o ministro, explicando que o golpe de Estado seria dado se o Exército se mobilizasse, “algo que não se tem notícia de qualquer mínimo indício”, completou em seus votos.
3. Golpe não acontece em feriado
Além de não ter apoio das Forças Armadas e nem liderança, como ocorreu na Bolívia, as ações do 8 de janeiro foram realizadas em um domingo, durante o recesso parlamentar de início do ano.
“Como se tomaria o poder se nenhum dos titulares das cadeiras estavam presentes? Tomaria de quem?”, questiona a especialista em Direito Penal, Carolina Siebra, ao comparar as ações com os fatos registrados na Bolívia em um dia de semana com as autoridades, inclusive o presidente, em seu ambiente de trabalho.
“Não se dá golpe de Estado em feriado ou final de semana, sem nenhuma autoridade presente e sem nenhuma capacidade de ocupar os prédios para tomar decisões políticas imediatamente após a execução”, complementa Suano, garantindo que “não há como dizer que o 8 de Janeiro foi um golpe de Estado”.
4. Golpe é diferente de vandalismo
O que ocorreu no Brasil, de acordo com ele, foi a depredação do patrimônio público devido a atos de vandalismo realizados por alguns, sem obstruir os poderes do Estado. “A sociedade brasileira estava manifestando um descontentamento, o que é comum em um Estado Democrático de Direito, mas algumas pessoas perderam a paciência e foram para o quebra-quebra”, diz. “E isso é um golpe de Estado?”, questiona. “Não tem como ser”.
Assim como ele, pessoas como o ex-ministro de Lula e Dilma, Aldo Rebelo, já afirmaram que a alegação de golpe de Estado é uma “fantasia” alardeada pelo PT e por membros da esquerda brasileira.
Segundo ele, “faz bem à polarização atribuir ao antigo governo a tentativa de dar um golpe” e, por isso, criou-se essa narrativa. Entretanto, “atribuir uma tentativa de golpe a aquele bando de baderneiros é uma desmoralização da instituição do golpe de Estado”, disse em entrevista ao Poder 360 publicada em 8 de janeiro de 2024, comparando os atos do 8/1 aos ataques do MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra) à Câmara dos Deputados em 2006.
Além de Rebelo, o jurista Ives Gandra Martins também contestou a possibilidade de que a invasão aos prédios públicos tenha sido uma tentativa de golpe de Estado e caracterizou os envolvidos como promotores de desordem, não golpistas.
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