A crise da liberdade de expressão no Brasil pode se intensificar ao longo de 2024, com membros do Executivo e do Judiciário continuando a usar o 8 de janeiro como pretexto para o controle da informação e a censura. Alguns eventos cruciais para o assunto estão previstos para o ano, envolvendo o governo Lula, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Na corrida eleitoral nos municípios, o TSE terá os mesmos superpoderes de 2022, agora turbinados por uma parceria com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Flávio Dino, um dos principais defensores de limitações à liberdade de expressão do atual governo federal como ministro da Justiça, começará a tomar suas primeiras decisões como membro do Supremo.
Além disso, o PL da Censura – ou PL das Fake News – poderá ser votado no ano que vem. Paralelamente, o Supremo poderá julgar o tema de repercussão geral 987, sobre o Marco Civil da Internet, que poderá suprir eventuais lacunas deixadas pelo Congresso quanto ao controle da expressão.
Entenda essas e outras ameaças à liberdade de expressão que o Brasil pode enfrentar em 2024.
TSE manterá superpoderes e terá parceria com Anatel
Nas eleições municipais de 2024, o TSE manterá os superpoderes que obteve durante as eleições de 2022, por meio da resolução que deu ao tribunal poder de polícia para agir contra conteúdos "desinformativos" sobre o processo eleitoral.
Em dezembro de 2023, o STF rejeitou uma ação do ex-procurador-geral da República, Augusto Aras, que pedia a suspensão dessa medida. Com isso, ministros do TSE podem ordenar de ofício, sem necessidade de provocação, a retirada de conteúdos nas redes sociais sobre fatos que considerem "sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados", ou que atinjam a "integridade do processo eleitoral".
A manobra feita por ministros para tornar mais fácil a exclusão de conteúdos é alvo de críticas da imprensa internacional. O jornal americano The New York Times, por exemplo, já afirmou que a partir dela "um homem pode decidir o que pode ser dito online no Brasil", em referência ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, que encabeçou a resolução.
Os superpoderes serão turbinados por um acordo recente que o TSE fez com a Anatel. Em dezembro, eles firmaram uma parceria que, entre outras coisas, visa acelerar o cumprimento de decisões judiciais sobre bloqueio de sites.
As determinações desse tipo, que antes demandavam a intermediação de oficiais de Justiça, agora serão feitas por um canal eletrônico direto entre o TSE e a agência reguladora. O objetivo do acordo técnico é acelerar a retirada do ar de conteúdos considerados danosos pelo tribunal.
Na celebração do acordo, Moraes afirmou: "Não basta a prevenção. Não basta a regulamentação prévia. Há a necessidade de sanções severas".
Para juristas consultados pela Gazeta do Povo, a parceria está calcada em uma visão equivocada sobre o papel da Justiça Eleitoral, e pode acabar turbinando a censura nas eleições.
Flávio Dino no STF pode ampliar frentes de ataque à liberdade de expressão
Como mostrou reportagem recente da Gazeta do Povo, Dino coleciona fatos que o tornam um inimigo da liberdade de expressão.
À frente do Ministério da Justiça, ele processou influenciadores e parlamentares da oposição por questionamentos e falou diversas vezes da sua intenção de regular o uso da internet para conter "discursos de ódio e antidemocráticos". O novo membro do STF ainda é um dos principais apoiadores do PL da Censura.
Em maio deste ano, a pasta liderada por Dino chegou a anunciar medida cautelar contra o Google, depois que a empresa de tecnologia divulgou um texto criticando o PL das Fake News. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça determinou multa de R$ 1 milhão por hora em caso de descumprimento da medida cautelar. Logo após a notificação, o texto foi retirado do ar.
Em maio, em reunião com representantes das Big Techs, Dino ameaçou empresas que não mudassem seus termos de uso. "Se os senhores não mudarem os termos de uso, os senhores vão ser obrigados", afirmou. "Seria constrangedor para nós ter que recorrer a mecanismos coercitivos", acrescentou. A reunião tratava de postagens de usuários das redes sociais sobre ataques em escolas.
Se depender de Dino, o modus operandi do TSE nas eleições de 2022 se repetirá em pleitos futuros. Na mesma reunião, ele afirmou que o processo eleitoral do Brasil em 2022 deve ser visto como "referência".
PL da Censura poderá ser votado, e STF poderá julgar tema 987
O PL da Censura – ou PL das Fake News – deve ser votado em 2024. No primeiro semestre do ano, a oposição conseguiu barrar uma versão do projeto mais agressiva contra a liberdade de expressão, e também adiar a sua votação. Ainda assim, a ameaça contra a liberdade de expressão existe no texto.
A proposta tem foco no tema da responsabilidade das redes sociais em relação a conteúdos publicados por terceiros. Entre as ideias do PL estão a possibilidade de obrigar as plataformas a serem mais proativas em derrubar conteúdos, a atribuição ao Estado do juízo sobre o que é mentira ou verdade e o privilégio concedido a grandes veículos de imprensa.
Se o Congresso não votar o projeto ou se o texto não atender às expectativas do Supremo e do governo, o tribunal tem uma carta na manga: o julgamento do tema 987, sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.
Em audiência pública sobre o tema no Supremo em março de 2023, o anseio de controle estatal da expressão contra a direita ficou subentendido em diversos momentos. O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, falou na necessidade de um "freio institucional que permita uma reorientação cultural e ideológica da sociedade".
O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) disse que não é admissível "um modelo de negócios que se apoie no extremismo político", em referência às redes sociais. O ministro do Supremo Luís Roberto Barroso afirmou que, contra a "desinformação" e a "disseminação do ódio", são necessárias "regulação estatal moderada, autorregulação ampla, monitoramento adequado e independente do cumprimento dessa regulação e educação midiática".
Para essas autoridades, as plataformas precisam aceitar um novo paradigma: devem ser elas, a partir de agora, as protagonistas em coibir os discursos que supostamente atentam contra a democracia.
Ainda não há uma data definida para o julgamento do tema 987.
Imprensa poderá começar a sofrer consequências da decisão sobre entrevistados
Em 2024, especialmente durante a corrida eleitoral nos municípios, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que responsabiliza jornais por falas de entrevistados pode começar a resultar em atos de censura.
Em primeiro lugar, a medida pode aumentar a autocensura em veículos de comunicação. Em texto recente ao jornal Folha de S.Paulo, o jurista Luís Francisco Carvalho Filho apontou que a decisão estabelece "um regime político de intangibilidade da honra de personalidades e políticos".
Para ele, a decisão também "atingirá pequenos e médios veículos de comunicação" que poderão ser alvos "da Justiça local, muitas vezes exercida por magistrados corporativistas e autoritários".
Ao site Poder 360, o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello observou que a decisão atrapalha a atuação jornalística e "compele o jornal a fazer um verdadeiro inquérito do que é verdade ou não".
“Imagine se trata-se de um veículo de TV ou sítio on-line. Não vai mais poder ouvir porque o entrevistado pode falar besteira? Isso é perigoso”, comentou.
Ministério da Verdade de Lula atuará em ano eleitoral pela primeira vez
O ano de 2024 será o primeiro em que a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD) – também chamada de Ministério da Verdade –, criada pelo governo Lula no começo de 2023, poderá atuar durante uma corrida eleitoral.
O órgão já foi acionado, por exemplo, para uma investigação contra o jornalista Alexandre Garcia.
O advogado-geral da União, Jorge Messias, também ordenou, em agosto, uma apuração sobre informações falsas relacionadas ao Sistema Nacional de Transplantes (SNT), após a polêmica sobre o transplante de coração do apresentador Faustão.
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