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Governo Lula x Governo Bolsonaro

“Guerra” entre Mais Médicos e Médicos pelo Brasil prejudica quase 4 mil profissionais de áreas vulneráveis

Lincoln Lopes Ferreira, ex-presidente da Associação Médica Brasileira (AMB) discursando no evento de lançamento do Programa Médicos pelo Brasil (PMpB), em 1º de agosto de 2019
Lincoln Lopes Ferreira, ex-presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), discursando no evento de lançamento do Programa Médicos pelo Brasil (PMpB), em 1º de agosto de 2019 (Foto: Marcos Corrêa/PR)

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Mudanças recentes realizadas pelo governo Lula no Programa Médicos pelo Brasil (PMpB) – lançado pelo governo Bolsonaro em 2019 para especializar profissionais e contratá-los em regime CLT – contrariam a legislação. As alterações prejudicam cerca de 4 mil profissionais que atendem áreas remotas e de vulnerabilidade no país, e colocam em risco a qualidade do atendimento nesses locais.

“Se o governo não cumprir o que está na lei, os médicos vão acabar pedindo demissão, e as comunidades ficarão sem assistência”, alerta o conselheiro Raphael Câmara Medeiros Parente, do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Segundo ele, os profissionais do PMpB foram aprovados em concurso para realizar o programa de 60 horas semanais durante dois anos e obter o título de especialista em Medicina de Família e Comunidade (MFC). No entanto, em outubro de 2024, no final do processo, o Ministério da Saúde afirmou que os médicos não serão mais titulados e que, no lugar dessa prova, farão um teste eliminatório em 2025.

“Caso algum médico não seja aprovado, poderá permanecer no mesmo local [de trabalho] como bolsista do Programa Mais Médicos [não mais do Programa Médicos pelo Brasil]”, explicou o Ministério da Saúde, em nota enviada à Gazeta do Povo.

“Isso é um desrespeito com esse grupo, que aceitou o apelo de cuidar dos brasileiros diante da promessa de contratação pela CLT”, argumenta o presidente do CFM, José Hiran Gallo, em posicionamento oficial. De acordo com ele, não há previsão em edital ou na legislação para a mudança anunciada pelo governo, o que a torna “ilegal”.

Além disso, Raphael Câmara explica que essa transferência dos profissionais para o programa Mais Médicos em caso de eliminação significa, na verdade, “precarizar sua contratação”, pois não há oportunidade de carreira e nem direitos trabalhistas como FGTS, INSS e férias.

“O Mais Médicos trabalha com bolsas e tem rotatividade muito alta, enquanto o PMpB (imagem abaixo) seleciona profissionais por concurso, os especializa na área e contrata em regime CLT, com estabilidade, melhores salários e garantia de que o médico não será demitido por qualquer motivo”, diz Câmara, que era Secretário de Atenção Primária à Saúde em 2021, quando o programa, efetivamente, saiu do papel.

No entanto, a Associação Médicos Pelo Brasil (AMPB) — que representa os médicos do PMpB — pontua que essa tentativa de aprimorar o conhecimento e a carreira dos profissionais em busca de melhor atendimento aos cidadãos parece estar sendo ignorada. “Uma total hipocrisia de quem fala tanto em direitos trabalhistas e direitos sociais”, aponta o médico Carlos Camacho, presidente da AMPB.

Criada em 2022, a associação tem o objetivo de lutar pela carreira federal em Medicina de Família e Comunidade (MFC), independentemente do governo atuante. “Tínhamos receio de que o Programa Médicos pelo Brasil fosse desconstruído por ter sido feito pela oposição”, aponta Camacho. "E estamos vendo isso acontecer", lamenta.

“Uma total hipocrisia de quem fala tanto em direitos trabalhistas e direitos sociais”

Carlos Camacho, presidente da Associação Médicos Pelo Brasil (AMPB)

Médicos atuam por mais de 6 mil horas, durante dois anos

Segundo ele, os médicos participantes do programa se submeteram à jornada de 60 horas semanais durante dois anos — ultrapassando 6 mil horas de trabalho — para receber titulação como especialista em Medicina de Família e Comunidade (MFC). “O que, na prática, já está indo para três anos, sem encerramento do processo.”

A médica generalista Camila Ignácio, da Zona Leste de São Paulo, é uma dessas participantes e realizou o curso entre 2023 e 2024, garantindo que o conteúdo “foi excelente, baseado em competências do Médico de Família, com a supervisão de tutores clínicos e uma plataforma de estudos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)”.

Além disso, ela relata como foi extenuante ocupar 60 horas semanais para o programa, sendo 40 horas de atendimento a pacientes e 20 de estudos. “Essas horas de dedicação significaram menos tempo com meus amigos e familiares, e menos horas de lazer, mas havia a motivação de me tornar especialista”, confidencia a ex-estudante de escola pública da periferia, que se tornou a primeira médica de sua família e estava ansiosa para prestar a prova de titulação.

Camila conta que chegou a passar, inclusive, na residência tradicional em Medicina de Família antes de ingressar no PMpB, mas desistiu da vaga para fazer a especialização do programa do governo federal, com vaga garantida em regime CLT. “Confiei que uma entidade da magnitude do Ministério da Saúde cumpriria o prometido e que o médico deixaria de ser um eterno bolsista”, revelou.

“Confiei que uma entidade da magnitude do Ministério da Saúde cumpriria o prometido e que o médico deixaria de ser um eterno bolsista”

Camila Ignácio, médica bolsista do Programa Médicos pelo Brasil (PMpB)

Governo Lula não cumpriu o edital e exigiu nova prova que não oferece titulação

Só que o período de dois anos de curso com carga horária extensiva terminou e ela descobriu no fim de 2024 que não receberia a titulação esperada e que até mesmo quem já tinha esse título antes de ingressar no programa poderia ser eliminado, sem contratação. “Me sinto enganada”, lamentou a paulista de 33 anos, lembrando como foi “desesperador” acompanhar as informações divulgadas pelo governo.

“Mais uma vez, o médico brasileiro é passado para trás”, desabafa Fernando Sabia Tallo, conselheiro titular da Associação Médica Brasileira (AMB) na Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). A frase foi dita em vídeo divulgado pelas redes sociais em dezembro de 2024 ao tratar da situação dos quase 4 mil médicos do PMpB.

“Mais uma vez, o médico brasileiro é passado para trás”

Fernando Sabia Tallo, conselheiro titular da Associação Médica Brasileira (AMB) na Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM)

Segundo Tallo, a Lei 13.958 dá aos bolsistas que cumprissem todas as etapas do programa o direito de fazer a prova para obter título de especialista. “Isso está escrito na lei”, aponta o conselheiro da AMB, ao informar que a Agência Brasileira de Apoio à Gestão do Sistema Único de Saúde (AgSUS) — responsável pela administração dos programas federais de provimento médico — não poderá disponibilizar a titulação prometida.

“Nó” prejudica a titulação para os participantes do programa

À Gazeta do Povo, Tallo explica que a prova de título de Médico de Família e Comunidade (MFC) é prestada no Brasil em três situações: por médicos que desempenharam a função durante quatro anos; por profissionais que tenham cursado residência credenciada pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM); ou ainda por quem concluiu uma residência similar, certificada pela sociedade da especialidade.

No Programa Médicos pelo Brasil, o governo federal tentou realizar a terceira opção com um currículo semelhante à residência em MFC. Porém, Tallo aponta que o programa “não foi vinculado diretamente à Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)”, o que é exigido nesses casos.

Então, como “nenhuma outra entidade tem autoridade para fazer um curso que dê direito à prova de título, surgiu o problema”, alega o conselheiro da AMB, ao afirmar ainda que todas as titulações precisam ser autorizadas pela Associação Médica Brasileira, e que a entidade deve cumprir as normas vigentes. “A posição tecnicamente é essa”, apontou.

Em nota encaminhada à Gazeta do Povo, a AMB informa que o assunto está em análise pelo departamento jurídico. "Tão logo tenhamos posição definida a respeito, iremos divulgá-la", prometeu a associação.

SBMFC e AMB participaram da elaboração do programa, em 2019

Entretanto, o médico anestesista Diogo Leite Sampaio, vice-presidente da AMB na época de lançamento do Programa Médicos pelo Brasil, informa que a associação participou das discussões para elaboração do programa e que o então presidente Linconl Lopes Ferreira até discursou na cerimônia de lançamento, em 1º de agosto de 2019 (foto abaixo, de Marcos Corrêa/PR).

De acordo com Sampaio, a AMB percebeu que o programa Mais Médicos, criado em 2013 pelo governo de Dilma Rousseff, não atendia às necessidades relacionadas à atenção primária e que municípios de áreas remotas e de vulnerabilidade precisavam urgentemente de especialistas em Medicina da Família que se fixassem nessas regiões.

“Foi algo excepcional para aquele momento, e depois voltaríamos a valorizar a residência médica tradicional”, explica, ao ressaltar que o Congresso Nacional assinou uma lei para estabelecimento do programa, e que “ a lei é superior às normas”.

Além disso, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família (SBMFC), que pode certificar residência similar à tradicional para a titulação de especialista, também apoiou a iniciativa e participou da elaboração do programa.

Em 28 de agosto de 2019, o então diretor Daniel Knupp (foto abaixo) afirmou no Senado da República que a SBMFC estava disposta a oferecer a prova aos profissionais que concluíssem a carga horária de trabalho e estudos exigida pelo PMpB.

“Acreditamos que esse curso será suficiente para formar profissionais com as competências necessárias para atendimento à população nos serviços de atenção primária”, disse o diretor, à época.

A instituição também chegou a emitir uma nota técnica em relação ao programa, em agosto de 2019, reconhecendo o contexto nacional de déficit de especialistas em Medicina de Família e Comunidade (MFC) e pontuando que "a formação proposta, composta por curso de especialização com duração de 2 anos e carga horária de 60 horas semanais" seria suficiente, desde que tivesse "apoio pedagógico da SBMFC”.

SBMFC afirma que não fará prova de título aos médicos do PMpB

No entanto, em nota enviada à Gazeta do Povo na última semana, a diretoria atual da Sociedade informa que, embora tenha existido esse entendimento inicial, não foi realizada a “construção conjunta do Projeto Político-Pedagógico do curso com a SBMFC”, e nem o monitoramento e avaliação.

De acordo com Raphael Câmara, que atuou como secretário de Atenção Primária à Saúde na época, as gestões das entidades mudaram após a assinatura da lei, e o encerramento do prazo de dois anos para titulação dos médicos se deu no governo Lula, que "não têm interesse em continuar o programa por questão ideológica”.

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família (SBMFC), no entanto, aponta que seu posicionamento é resultante de os critérios não terem sido atendidos. Além disso, reitera que a titulação de especialistas em MFC para médicos sem residência exige quatro anos de atuação na área. Portanto, os profissionais bolsistas do PMpB ainda não possuem a experiência exigida.

Entidades temem que a nova prova eliminatória seja “impossível”

Diante disso, a responsável pela administração dos programas médicos governamentais – AgSUS –, esclarece que a prova agendada para abril deste ano será realizada “em parceria com a SBMFC”, mas sem caráter de titulação.

Em seu site, a agência informa que, após o exame, os profissionais aprovados serão contratados com vínculo trabalhista no programa Mais Médicos, e não mais do PMpB (imagem abaixo).

A situação causa temor de entidades como a Associação Médicos Pelo Brasil (AMPB), que vê o novo exame como tentativa de aplicar uma prova de nível dificultado para que mais profissionais sejam eliminados e não tenham acesso à carreira.

O CFM também acompanha o caso com preocupação, já que, segundo o conselheiro Raphael Câmara, a prova tradicional da Sociedade Brasileira de Medicina de Família tem em torno de "90% de aprovação”, e esse não é o percentual esperado para o novo teste. “Infelizmente, podem fazer uma prova impossível que tem caráter eliminatório, então o médico não poderá fazer outra”, alertou.

O Ministério da Saúde, no entanto, afirmou em nota enviada à Gazeta do Povo que o exame será baseado “exclusivamente nos conteúdos estudados pelos médicos ao longo dos dois anos de especialização”.

Associação Médicos Pelo Brasil entrou na Justiça

Diante da incerteza, a AMPB entrou na Justiça para solicitar à AgSUS e ao Ministério da Saúde suspensão desse teste e a realização da prova de título prevista na lei.

“Ou seja, uma prova de título realizada pela SBMFC para habilitar o profissional como especialista em medicina de família e comunidade”, informa o advogado Rafael Studart. O caso segue na Justiça.

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