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Em 2022, por ocasião do centenário da Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal de São Paulo, o local celebrou a data com a apresentação da ópera Café, criada a partir de um libreto de Mário de Andrade, publicado em 1942 e nunca antes encenado. A produção mobilizou a Orquestra Sinfônica Municipal, o Coral Paulistano e o Balé da Cidade.
Ao longo da temporada de exibição, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ocupou o teatro durante uma semana. Seus integrantes realizaram manifestações nos corredores e no palco. “O teatro é do povo”, disse, na ocasião, o dramaturgo Sérgio de Carvalho, diretor da produção, em entrevista para o site do MST.
“No nosso espetáculo, procuramos também coletivizar o trabalho da equipe criativa, convidando mais de uma pessoa para dividir uma função”, ele prosseguiu na ocasião. “Eu tenho parcerias na direção, (…) [então tentei] convidar também as pessoas que estão ligadas à luta social no seu campo, a luta artística, aí a ideia de convidar a cantora Juçara Marçal, o Negro Léu, e o ator Carlos Francisco para fazerem participações especiais, porque são militantes da luta artística no Brasil.”
Ele admite, na conversa, que atuou com pessoas sem experiência com o gênero. “Tem a Juçara Marçal, que não é uma cantora de ópera, e traz esse elemento da cultura popular. Tem também o Negro Leo, que traz o rap e é também é um trabalhador de aplicativos. Então traz esse recorte do mundo trabalho.”
Não foi um episódio isolado. Na avaliação do escritor, fotógrafo e cineasta Josias Teófilo, o espaço, um dos mais tradicionais e influentes para a cultura brasileira do século 20, tem sido utilizado para promover pautas políticas e identitárias desde que foi entregue à organização social Sustenidos Organização Social de Cultura, antiga Associação Amigos do Projeto Guri que, em maio de 2021, assumiu o contrato de gestão do Complexo Theatro Municipal de São Paulo.
“É um absurdo total o que está acontecendo no Theatro Municipal de São Paulo, numa cidade e num estado governados por conservadores. As cotas estão presentes na rotina da Sustenidos. Elas tiram qualquer critério artístico da escola. Tenho ouvido dos funcionários do Municipal sobre a dificuldade de montar elencos qualificados em decorrência das limitações identitárias que se impõem.”
Obras deturpadas
A pauta se expande para as apresentações, que acabam sendo desvirtuadas, ele afirma. “Na ópera Café, foi mostrada uma estátua do bandeirante Borba Gato pegando fogo. Em O Guarani, cortaram o balé e inseriram um grupo de indígenas gritando, sem nenhuma relação com a obra original. Na ópera Nabuco, retiraram trechos relevantes e acrescentaram músicas que não existem no texto original. O coro chegou a gritar ‘Palestina livre’”, exemplifica.
Lembrando que Nabucco é uma ópera em quatro atos composta por Giuseppe Verdi no século 19 e relata a história do rei Nabucodonosor II, da Babilônia, que conquistou Israel em 597 a.C. e provocou um exílio forçado do povo judeu.
Para Teófilo, existe uma tendência de forçar a contratação de minorias, independentemente da competência, ainda que a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo realize testes cegos, em que os avaliadores não veem o profissional, de forma a garantir a seleção mais criteriosa e justa possível. “São apresentações com ingressos de mais de R$ 200, em que as adulterações não são detalhadas com antecedência. Como resultado, em mais de uma ocasião presenciei vaias, ou aplausos excepcionalmente tímidos.”
Com relação à ópera O Guarani, agora revisitada, foi precisamente o texto original de Antônio Carlos Gomes, baseado no romance original de José de Alencar, que marcou a inauguração do teatro, em 12 de setembro de 1911. Reza a lenda que foi nesta data que se registrou o primeiro congestionamento da capital paulista, tamanho o impacto do acontecimento.
O evento contou com a presença do então presidente da República, Hermes da Fonseca, e representava o sucesso de uma obra iniciada oito anos antes e conduzida pelo escritório do arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928), que também conduziu a construção da Pinacoteca e do Mercado Municipal da capital paulista, entre outras obras que ajudaram a definir a personalidade urbanística da cidade.
O Theatro Municipal de São Paulo surgia, assim, com o objetivo de valorizar a arte nacional, em seus mais elevados padrões de qualidade. Ao longo dessas décadas de história, passaram pelo espaço estrelas internacionais do porte de Enrico Caruso, Ella Fitzgerald, Anna Pavlova, Isadora Duncan, Maria Callas e Mikhail Baryshnikov.
Cotas nas contratações
Os relatos de que a seleção de contratados e de elencos é realizada seguindo critérios identitários foi formalizada recentemente: “Poderão inscrever-se candidatas negras ou indígenas, maiores de 18 (dezoito) anos, brasileiras natas/naturalizadas-estrangeiras em situação regular ou que obtenham visto de trabalho”.
Esses são os termos de um edital publicado pela Sustenidos no dia 24 de janeiro. O documento prevê a oferta de duas vagas temporárias, por seis meses, com salário bruto mensal de R$ 14.513,58. As inscrições tiveram início no dia 24 de janeiro e se encerraram em 7 de fevereiro. O ciclo de contratação se encerra ao final do mês.
“Esse edital é exclusivo para candidatas autodeclaradas negras (pretas ou pardas) ou indígenas, a fim de ampliar e promover a inclusão e diversidade no Balé da Cidade de São Paulo e no Complexo Theatro Municipal de São Paulo”, reforça o documento. As selecionadas vão contar com vale-refeição, vale-transporte, assistência médica, assistência odontológica, seguro de vida e convênio com o Serviço Social do Comércio (SESC).
“Aqui na Sustenidos, as oportunidades são para todos(as)! Valorizamos as diferenças e temos um ambiente onde todos (as) são mais que bem-vindos, por isso buscamos diversidade em identidade de gênero, cor e etnia, orientação sexual, origem, pessoas com deficiência, entre outras diversidades”, afirma a organização em sua página oficial. A cota também foi celebrada nas redes sociais da instituição.
Prejuízo financeiro
Procurada para detalhar os motivos para ofertar vagas apenas para bailarinas negras e indígenas, e para esclarecer se outras contratações e seleções de elenco têm seguido critérios baseados em cotas, a Sustenidos não concedeu entrevista. Em fevereiro de 2023, divulgou uma carta aberta em que apontava uma previsão de prejuízo de R$ 13,3 milhões do Theatro Municipal de São Paulo naquele o ano.
“Desde que assumiu a gestão do Complexo Theatro Municipal, a Organização vem recebendo repasses que se demonstraram insuficientes para arcar com os impactos decorrentes da inflação, tais como reajustes salariais previstos por lei, somados aos impactos inflacionários em rubricas de fornecedores, terceirizados e concessionárias de energia e água do Complexo Theatro Municipal de São Paulo”, alega no texto.