Considerando que a liberdade de expressão é um dos direitos humanos, por definição, não deveria ser possível a juízes limitar seu exercício. Caberia sim, a legisladores, prever situações em que o uso abusivo desse direito, no qual o discurso cause danos a outras pessoas ou prejuízos à sociedade, leve seu autor a ser responsabilizado, talvez até criminalmente.
Assim pode ser sintetizado o entendimento de Fernando Toller, jurista argentino, professor de Direito Constitucional da Universidade Austral, em Buenos Aires, e autor de duas obras célebres, no contexto latino-americano, sobre o tema: “Liberdade de Imprensa e Tutela Judicial Efetiva: Estudo da Prevenção Judicial a Danos Derivados das Informações” (em tradução livre), publicado em 1999 e fruto de sua tese de doutorado na Universidade de Navarra; e “O Formalismo na liberdade de expressão: crítica da distinção absoluta entre restrições prévias e responsabilidades ulteriores”, de 2012.
Toller é um dos debatedores que participará, em 27 e 28 de setembro, do congresso “Liberdade de Expressão: o debate essencial”, evento em Brasília que vai discutir recentes decisões dos tribunais superiores no Brasil que têm reorientado a jurisprudência tradicional de proteção a esse direito fundamental.
O evento é organizado pela Gazeta do Povo e pelo Ranking dos Políticos e conta com o apoio do Instituto Liberal, Instituto dos Advogados do Paraná e Federação Nacional dos Institutos dos Advogados (Fenia).
“Os tribunais não devem agir diante de críticas de membros de outros poderes, da imprensa ou de cidadãos, porque, como poder do Estado que são, devem estar sujeitos, tal como os demais poderes, ao escrutínio público e ao jogo de freios e contrapesos que um sistema republicano de separação de poderes possui”, diz Toller em entrevista à Gazeta do Povo.
Questionado sobre as redes sociais – cuja regulação é objeto de interesse de vários países e foco de intensas discussões, em todo mundo –, Toller considera ser “sensato” que as próprias empresas que as controlam usem tecnologia e mecanismos transparentes para identificar e eliminar rapidamente das plataformas insultos pessoais que não contribuam para a troca de ideias e informações.
“Esta moderação deve ser imparcial, sem pender para um lado ou para o outro na balança do mercado de ideias”, afirma, notando, porém, existirem hoje sinais de que quem controla as redes “muitas vezes não é imparcial, mas toma um lado a favor de certas ideias e partidos políticos”.
Na entrevista, Toller ainda recapitula os fundamentos filosóficos e jurídicos, construídos ao longo dos últimos séculos, que sustentam a relevância da liberdade de expressão para a busca da verdade, a formação da opinião pública num regime democrático, a liberdade artística e a competição no mercado.
Leia a íntegra da entrevista, concedida por e-mail.
Nos últimos 4 anos no Brasil, a maior parte das restrições judiciais à liberdade de expressão e de imprensa basearam-se, no Supremo Tribunal Federal (STF), na necessidade de preservar a democracia e, portanto, em última análise, as liberdades civis. Decisões como essas foram baseadas em um suposto risco ao regime democrático alimentado pela postura crítica do ex-presidente Jair Bolsonaro perante o STF, especialmente por sentenças que frustraram as políticas do Executivo federal para combater a pandemia de Covid. Com isso, Bolsonaro e seu grupo de seguidores foram acusados de desinformação e “fake news” contra o STF. Em contrapartida, eles acusaram o tribunal de interferir no governo, e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de favorecer Lula na corrida presidencial e não garantir transparência e segurança no voto eletrônico. Bolsonaro denunciou, repetidamente, a possibilidade de fraude na contagem dos votos em favor de Lula.
Neste contexto, que precauções devem os tribunais tomar ao restringir a liberdade de expressão dos cidadãos indignados com uma instituição judicial que criticam e consideram politicamente tendenciosa?
Fernando Toller: Em primeiro lugar, deve ficar claro que os juízes dos tribunais não podem “restringir” a liberdade de expressão dos cidadãos, tampouco podem “restringi-la” [nos casos dos] legisladores no Parlamento. Os parlamentares podem estabelecer regulamentações razoáveis de direitos. Ou seja, podem fornecer uma regulamentação, uma medida, estabelecendo quando é necessária a responsabilização por um exercício ilegítimo e prejudicial da liberdade de expressão. Em matéria de liberdade de expressão, o princípio deveria ser “tanta liberdade quanto possível, tanta regulamentação quanto seja necessária”, parafraseando [Johannes] Messner [- jurista e teólogo austríaco].
No meu entendimento das liberdades, e especificamente da liberdade de expressão, qualquer restrição, na medida em que implica uma “limitação” ao âmbito do funcionamento razoável desse direito, é uma medida contrária ao conteúdo do direito fundamental e, portanto, é ilegítimo, inconstitucional e contrário aos tratados internacionais de direitos humanos.
O direito à livre expressão pode ser regulamentado razoavelmente, mas nunca pode ser restringido, adulterado, limitado. Estamos falando de direitos humanos, que, por definição, não podem ser sacrificados, mas devem ser respeitados.
Quanto a medidas e decisões judiciais relacionadas à liberdade de expressão, deve-se levar em conta que dos quatro fundamentos filosóficos que se desenvolveram historicamente para fundamentar essa liberdade, os dois primeiros referem-se justamente a permitir a maior circulação possível de expressões.
O primeiro fundamento enfatiza ser este um elemento imprescindível para gerar uma sociedade rica na troca de opiniões, onde todos possam buscar a verdade. O segundo postula uma sociedade política, onde a opinião pública se forma a partir do debate, de modo que cada um possa desenvolver critérios próprios para a eleição dos seus líderes e responsabilizá-los, caso considere que não cumpriram integralmente o mandato popular.
Poderia esclarecer melhor a origem e significado desses fundamentos?
Fernando Toller: O primeiro destes fundamentos surge do poeta e editor inglês John Milton, que em 1644 publicou o livro “Areopagitica”, no qual defende a discussão no mercado de ideias, no qual competem críticos e antagonistas, num debate que ajudará a elucidar a verdade. Nessa perspectiva, os problemas não se resolvem com imposições estatais, sejam elas do Executivo ou do Judiciário. É uma ideia que fez fortuna, sendo popularizada por John Stuart Mill, no seu livro “On Liberty” [Sobre a Liberdade], em 1859.
Quanto ao segundo fundamento, na teoria da liberdade de expressão é muito popular a ideia de que os problemas ligados a ela se resolvem com mais expressão. Foi desenvolvido pelo juiz Louis Brandeis, da Suprema Corte dos Estados Unidos, quando em 1927 escreveu em seu voto na decisão “Whitney v. Califórnia” que “se houver tempo para expor falsidades e falácias através da discussão, e evitar o mal através do processo educativo, a solução a aplicar é mais expressão, e não silêncio forçado. Somente uma emergência pode justificar a repressão”.
Daí surge o chamado “fundamento democrático da liberdade de expressão”, como base para a formação de uma opinião pública informada num sistema republicano.
A partir disso, podemos inferir que tribunais não devem agir diante de críticas de membros de outros poderes, da imprensa ou de cidadãos, porque, como poder do Estado que são, devem estar sujeitos, tal como os demais poderes, ao escrutínio público e ao jogo de freios e contrapesos (“checks and balances”, como dizem os anglo-saxões) que um sistema republicano de separação de poderes possui.
Em várias partes do mundo, intelectuais, acadêmicos e políticos estão cada vez mais preocupados com a alegada crise da democracia, que tem justificado tentativas de controlar a comunicação por meio das redes sociais. Que limites deve ter esse controle para não pôr em perigo o pluralismo de ideias inerente à democracia?
Fernando Toller: A questão das redes sociais é um ponto extremamente interessante dentro da teoria e da prática da liberdade de expressão. Na medida em que os cidadãos encontram nas redes a possibilidade de criticar e controlar os poderes públicos, reforçam o primeiro e o segundo fundamento da liberdade de expressão que mencionei anteriormente: o mercado de ideias e a formação da opinião pública numa democracia representativa.
Quanto às críticas a outros cidadãos, às empresas ou instituições da própria sociedade, ainda precisa ser desenvolvida uma teoria que proteja totalmente esta expressão. Não é difícil fazer isso, mas é algo que ainda não foi devidamente elaborado, como foi feito naqueles dois primeiros fundamentos, e também em relação ao terceiro, ligado à autorrealização através de expressões artísticas e outras; e em relação ao quarto fundamento, relativo à liberdade de expressão comercial, que abrange a publicidade comercial que oferece produtos e serviços.
Algumas regulamentações razoáveis podem ser pensadas em relação às redes. Nos Estados Unidos, por exemplo, as empresas proprietárias das plataformas de redes sociais, por serem agentes particulares e não estatais, não são obrigadas a cumprir os mandatos constitucionais – refiro-me aqui à doutrina da “state action” [ação estatal]. Daí porque os usuários das redes ainda não encontram proteção em doutrinas constitucionais como a da proibição da censura prévia ou da equidade de acesso. Uma vez que várias das redes mais importantes estão sediadas nos Estados Unidos, penso que há necessidade de pelo menos uma lei federal naquele país que as obrigue a serem imparciais em relação a diferentes posições e pensamentos filosóficos e políticos.
Pode ser sensato, por outro lado, forçar as redes a utilizar algoritmos que detectem e eliminem mensagens que contenham insultos, injúrias, o que a Suprema Corte dos Estados Unidos há oitenta anos chamou de “fighting words”, isto é, palavras ou expressões que incitem confronto. Deve haver mecanismos mais claros para que a comunidade da rede sinalize aquelas mensagens que não transmitem troca de ideias e opiniões, mesmo incômodas, mas sim ataques e insultos. Junto com isso, as redes poderiam ter moderadores que atuassem rapidamente para resolver o problema.
Mas esta moderação deve ser imparcial, sem pender para um lado ou para o outro na “balança” deste mercado de ideias. Neste ponto, existem diversos sinais que mostram que quem controla as redes muitas vezes não é imparcial, mas toma um lado a favor de certas ideias e partidos políticos.
Neste contexto de globalização e de florescimento da expressão – onde a tecnologia permitiu uma democratização horizontal, pois ficou mais fácil para qualquer pessoa com acesso digital tornar-se um criador de conteúdo, e mesmo uma pessoa altamente influente, com centenas de milhares ou milhões de seguidores – deve-se redobrar o cuidado para que não sejam proibidas ou eliminadas da discussão pública aquelas vozes que sejam incômodas a determinadas posições que em certos momentos controlam os órgãos públicos.
Falamos aqui, nem mais nem menos, do cerne da liberdade de pensamento e de expressão como base de uma sociedade livre.
Você acha que a apreensão das autoridades estatais diante das críticas massivas que recebem nas redes sociais recomenda maior cautela ao restringir a liberdade de expressão por ordem judicial? Neste sentido, deveriam ser reforçados ou atualizados os princípios que tradicionalmente nortearam a defesa da livre expressão de ideias?
Fernando Toller: Entendo que devemos voltar os olhos para os clássicos, tanto da filosofia política como do direito público, que lançaram as bases do constitucionalismo, que inclui os grandes tratados internacionais de direitos humanos em vigor hoje. Na base do sistema político e jurídico que o Ocidente modelou nos últimos 250 anos está o respeito pela dignidade inerente à pessoa e pelos seus inalienáveis direitos iguais, de acordo com o primeiro parágrafo do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este respeito tem, entre os seus pilares, o reconhecimento da capacidade do ser humano de procurar a verdade segundo a sua consciência livre, de pensar como quiser e de viver e dirigir as suas ações como pensa.
Naturalmente, se uma pessoa prejudica a sociedade ou outro ser humano, ela merece a reprovação da comunidade legalmente organizada. Mas não há mal nenhum em pensar e se expressar. Logicamente, se a expressão for uma apologia ao ódio ou uma incitação ao cometimento de violência contra outras pessoas, no aspecto material, é apenas uma expressão. Mas, formalmente, estamos falando de uma ação antijurídica, que pode até ser tipificada como crime. É por isso que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos obriga os estados a proibir, por lei, este tipo de propaganda.
Coisa muito diferente é a cultura de cancelamento do pensamento diferente ou dissidente, o que é diametralmente contrário aos principais fundamentos que têm sustentado a liberdade de expressão, segundo os melhores autores e as melhores decisões dos grandes tribunais.
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