A escalada de autoritarismo do Supremo Tribunal Federal (STF), iniciada com o inquérito das fake news, impulsionada durante a corrida eleitoral de 2022 e exacerbada depois dos atos de 8 de janeiro, está tendo o efeito de desmobilizar o povo e reduzir a quantidade de manifestações de rua. Mesmo diante da insatisfação de grande parte da população com o novo Executivo e a controvérsia gerada na opinião pública pelo Projeto de Lei 2.630/2020, o PL das Fake News, ainda são poucos os sinais de reação popular fora do âmbito digital.
O temor de ser preso por manifestar opiniões – típico de regimes ditatoriais – é um dos motivos pelos quais muitos brasileiros têm evitado protestar nas ruas. Ainda é incerto, além disso, que o STF não possa resgatar uma decisão de janeiro que proibiu protestos no país para justificar reprimendas a eventuais manifestações que ocorram no futuro.
Para o advogado e professor Cândido Alexandrino, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), o receio de exercer o direito à manifestação é um sinal de corrosão da democracia.
"Não é crível que a democracia no Brasil proíba manifestações. O povo na rua, como disse Ulysses Guimarães, é o exemplo a ser seguido. As pessoas querem se manifestar e não estão podendo. Estão com medo. Conseguiram, com a deturpação da lei, em decisões e julgados, proibir manifestações e botar medo em todos. Quem é que quer se arriscar?", comenta. "Parecem [alguns membros do Judiciário] ter conquistado o direito supremo de procurar as pessoas, investigá-las e puni-las, sem base legal nenhuma. Vivemos em um estado de exceção que parece ser constitucional, mas a atuação de alguns ministros do STF afronta a Constituição brasileira".
Para Lucas Berlanza, presidente do Instituto Liberal, soma-se a esse temor uma desilusão de grande parte do povo com a posse de um Executivo alinhado às ideias do Supremo sobre o controle da expressão. "A sucessão de frustrações provocou um desânimo e uma desmobilização. Depois de tudo o que aconteceu, com a sociedade assistindo à eleição de Lula, ao aumento do poder do STF, há uma sensação de impotência", afirma.
O deputado federal Marcel van Hattem (Novo-RS) foi um dos responsáveis por convocar uma das únicas manifestações de rua significativas contra o PL 2.630 – em Porto Alegre, com cerca de 5.000 participantes, no dia 1º –, e tem destacado em suas redes sociais a importância do retorno da pressão popular. Ele concorda que o temor do STF fez os protestos diminuírem.
"Reduziu porque as pessoas estão com medo – o que era um dos objetivos do Alexandre de Moraes e do próprio governo ao fazer essas prisões de baciada completamente injustas de pessoas que, por mais que estivessem, na minha opinião, protestando no local equivocado, diante dos quartéis, têm o seu direito de manifestação garantido pela Constituição", afirma.
Para Van Hattem, nós "já não vivemos em uma democracia plena". "Estamos vivendo num estado de exceção. Quando você não pode manifestar a sua opinião porque o poderoso considera que a sua opinião é antidemocrática, quando ele faz essa avaliação, já não se vive numa democracia. Na democracia, é o povo quem controla o poder e não o poder que controla o povo".
Berlanza aponta a fragmentação da direita nos últimos anos como outro motivo pelo qual é mais difícil se unir para protestos, mesmo quando a pauta é consensual, como no caso da oposição ao PL das Fake News. "Ninguém quer andar junto. Um liberal fala: 'Ah, se eu for para uma manifestação, os bolsonaristas vão estar lá, e eu estou brigando com eles todo dia. Vou estar do lado da tia do zap que fala que o Bolsonaro é um mito e que eu sou um comunista. Eu não quero ficar do lado dessa pessoa'. Ou, do outro lado: 'Ah, não vou me juntar com esse pessoal do MBL; eles são fabianos, comunistas ou coisa do gênero. Não podemos estar na rua juntos'. As tensões internas da direita desmobilizaram a possibilidade de articulação da direita durante esses últimos anos. Junto com isso, houve o acúmulo de frustrações", observa.
Para ele, "essas brigas não podem ser mais fortes do que a [necessidade de protestar contra a] destruição da democracia representativa brasileira". "Isso tem que ser um fator unificador para enfrentar esse problema. Nós não precisamos todo mundo dar as mãos, mas, para enfrentar um problema do tamanho do que a gente está enfrentando, eu acho que todo mundo tinha que esquecer essas coisas e ir para a rua", afirma.
Sinais de que protestos voltarão começam a surgir
Na opinião de Van Hattem, dada a gravidade da situação da liberdade de expressão no Brasil, a falta de mobilização não durará muito. Para ele, a revolta contra o autoritarismo está ficando maior do que o temor à represália.
"As pessoas já estão, como nós percebemos em Porto Alegre, mudando de ideia sobre o receio de sair às ruas. Por mais que haja medo, a coragem tem sido maior para enfrentar isso. E eu vejo que, em breve, nós teremos milhões de pessoas nas ruas outra vez. É insustentável a situação do jeito que está hoje", diz o deputado.
Declarações desaforadas de membros do Executivo e do Judiciário sobre o Legislativo – como a recente fala do ministro da Justiça e Segurança Público, Flávio Dino, de que uma regulação das redes aconteceria com ou sem o Congresso – são, para Van Hattem, uma afronta à vontade do povo, que está representada no Parlamento.
"Em outros tempos, o ministro estaria cometendo um sincericídio, porque o que ele disse deveria levar ou à sua demissão ou, se tivesse dignidade, à sua renúncia. No entanto, nós vivemos um momento em que essa prática já é tão corriqueira no arcabouço institucional brasileiro que uma fala dessas do ministro serve para amedrontar o Congresso Nacional. E nada lhe acontece. Pelo contrário, ele espera sair fortalecido de uma queda de braço dessas. E é por isso que eu entendo que o povo precisa se manifestar ainda mais fortemente, como já fez nas redes com o PL da Censura. Foi graças à mobilização popular que ele foi retirado da pauta. E o povo precisa continuar esse movimento on-line e nas ruas também", comenta o deputado.
Berlanza também acredita que a pressão popular é essencial para reverter a tendência ao autoritarismo. "O STF está sem controle, e a gente não vislumbra uma reação dos poderes republicanos que deveriam se incumbir dessa tarefa, especialmente o Poder Legislativo. Mas eu acho que o jogo pode virar, principalmente se nós tivermos coragem e condições de articular manifestações da dimensão necessária para pressionar esse Legislativo. Hoje não há. Esse grande ausente que são as manifestações de rua precisam voltar a estar na ordem do dia. Se a destruição da divisão de poderes, o passar por cima do sistema representativo, do Legislativo e da liberdade de expressão, se isso não justificar a necessidade de manifestações de rua, eu não sei o que justifica", diz.
Segundo ele, a gravidade da situação, especialmente após toda a controvérsia com o PL das Fake News, tem motivado mais forças políticas a cogitarem de forma aberta a hipótese de manifestações de rua. "Se, por um lado, o autoritarismo do Supremo gera medo e causa preocupação em lideranças, por outro, desperta o ímpeto do combate e a vontade em alguns de voltar a usar esse recurso [das manifestações de rua]. Dada a gravidade do que está acontecendo, mais cedo ou mais tarde – de preferência, mais cedo – esse recurso vai precisar ser utilizado", diz.
Jurista recomenda uma medida de precaução contra potencial reação do STF
Cândido Alexandrino recomenda que organizadores de eventuais protestos tomem uma medida de precaução para diminuir a chance de represália: pedir autorização na Justiça antes de marcar o evento.
"A minha sugestão, por precaução e autopreservação, ante a insegurança promovida pelo STF, é solicitar um habeas corpus preventivo. Seria cômico caso não fosse trágico. Como existe acompanhamento on-line, 'full-time', dentro do 'Inquérito do Fim do Mundo' – que não acaba nunca, tudo esquadrinha e a todos pode investigar –, é, sem dúvida, pertinente buscar medida protetiva, principalmente quando o protesto, até então manifestação livre do pensamento, tem cunho político", diz.
Alexandrino enfatiza, no entanto, que, em circunstâncias normais – em uma democracia real –, isso não seria necessário, já que o artigo 5º, inciso XVI, da Constituição diz que "todos podem reunir-se (…) em locais abertos ao público, independentemente de autorização, (…) sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". "A Constituição é clara: você não depende de autorização de ninguém para se reunir, só precisa comunicar à autoridade", afirma o jurista.
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