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A delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), teve seu sigilo derrubado nesta quarta-feira (19), após o envio da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Bolsonaro e outras 33 pessoas ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Todas as teses sustentadas por Cid durante os depoimentos de sua delação premiada já são publicamente conhecidas por causa de vazamentos à imprensa. A novidade dos documentos divulgados nesta quarta é que as audiências estão reproduzidas na íntegra, inclusive com diálogos do ministro do STF Alexandre de Moraes com Cid.
No teor das conversas, chamam a atenção ameaças proferidas por Moraes em uma audiência ocorrida em 21 de novembro de 2024.
"Eu quero fatos, por isso eu marquei essa audiência. Eu diria que é a última chance do colaborador dizer a verdade sobre tudo", disse Moraes ao apontar divergências entre as provas apresentadas pela Polícia Federal (PF) e as versões anteriores do tenente-coronel, proferidas em setembro de 2023 e junho de 2024.
"Eu vou passar a palavra a ele [Cid], só que eu já… Porque depois – e quero, aqui, não vai dizer que não avisei –, depois eu tenho aqui um relatório detalhado não só da investigação como do novo relatório que a Polícia Federal está apresentando agora, encerrando a investigação sobre a tentativa de golpe, com 700 páginas detalhadas", acrescentou Moraes, insinuando que incompatibilidades do relatório da PF com a delação poderiam comprometer Cid.
Pressionado pela possibilidade de ter o acordo de colaboração premiada rescindido, o ex-ajudante de ordens do então presidente Jair Bolsonaro chegou a mudar pontos fundamentais de seu depoimento.
Moraes ainda advertiu que eventuais contradições ou omissões de Cid poderiam levar à sua prisão preventiva e à rescisão da colaboração, com consequências não só para ele, mas também para seu pai, sua esposa e sua filha maior.
Quando disse que a família de Cid poderia perder os benefícios, Moraes colocou a seguinte ênfase: "saliento essa parte pela importância". Entre os benefícios concedidos à família de Cid está a atuação da PF para garantir sua segurança.
"Eu quero recordar, nos termos da colaboração premiada, na cláusula da parte IV, os benefícios pleiteados pelo colaborador: 1) perdão judicial ou pena privativa de liberdade não superior a dois anos; 2) restituição de bens e valores pertencentes ao colaborador que efetivamente tiverem sido aprendidos; 3) – e saliento essa parte pela importância – extensão dos benefícios para pai, esposa e filha maior do colaborador no que for compatível; e 4) ação da Polícia Federal visando garantir a segurança do colaborador e seus familiares", afirmou Moraes.
Depois, o ministro do STF foi ainda mais enfático. Este foi um diálogo entre Moraes e Cid:
Moraes: Eventual rescisão [da colaboração] englobará inclusive a continuidade das investigações e responsabilização do pai do investigado, de sua esposa e de sua filha maior. Eu gostaria de saber se o colaborador está plenamente ciente das consequências da manutenção dessas omissões e contradições.
Cid: Sim, senhor.
Para a consultora jurídica Katia Magalhães, a abordagem de Moraes é ilegal. "A ameaça a parentes próximos aniquila qualquer possibilidade de voluntariedade na manifestação de vontade, requisito indispensável à validade de uma colaboração", diz.
Além disso, ressalta ela, "a Lei das Organizações Criminosas só autoriza a rescisão do acordo em caso de omissão dolosa do colaborador, o que não necessariamente se confunde com meras omissões ou contradições".
Moraes, no entanto, mostra uma interpretação diferente da lei ao longo da audiência: "Agora, o colaborador tem também não só benefícios, tem também obrigações. E as obrigações, a maior delas, das obrigações, é falar a verdade, é não se omitir, não se contradizer. Não há, na colaboração premiada, essa ideia de que só respondo o que me perguntam. Não! O colaborador ou colabora com dados, com dados efetivos, até porque há um requisito essencial pra que os benefícios sejam concedidos: a efetividade da colaboração. Se não houver efetividade da colaboração, se a colaboração em nada auxiliou, não há por que, dentro dessa ideia de justiça colaborativa, a justiça premial, se dar os benefícios. Então, a questão aqui é muito importante em relação à veracidade das informações e, mais do que isso, a não omissão das informações importantes."
Depois dos trechos das conversas reproduzidos acima, Cid passou a relatar que uma reunião com Bolsonaro ocorrida em novembro de 2022 na casa do general Braga Netto, antes descrita como um simples encontro, na verdade teria servido para arquitetar estratégias para fomentar o caos social e justificar a intervenção das Forças Armadas. Ele também passou a ligar mais diretamente o ex-presidente e seus aliados ao suposto plano golpista.
Com a inclusão desses detalhes, o acordo de delação foi mantido. Os depoimentos alterados reforçaram a hipótese de participação de militares de alto escalão e do ex-presidente na orquestração de um golpe de Estado, e indicaram que o suposto plano teria envolvido mobilizações populares e iniciativas clandestinas para tumultuar o processo de transição de governo.
Saiba quais são as principais teses de Mauro Cid sustentadas durante as audiências da delação
Cid foi preso em maio de 2023 no caso da fraude em cartões de vacinação; solto em setembro de 2023 após acordo para delação premiada; ficou novamente na prisão entre março a maio de 2024 por áudios vazados em que sugeria que havia sido forçado a delatar; e fez novos depoimentos com base no acordo de delação premiada em junho e novembro de 2024.
As teses sustentadas por Cid ao longo desses vários depoimentos já são conhecidas por causa de vazamentos à imprensa. Elas envolvem temas como a suposta trama golpista, a atuação do chamado "gabinete do ódio", a acusação de fraude dos cartões de vacinação e o caso das joias recebidas por Bolsonaro.
- Cid diz que havia uma proposta de golpe para inviabilizar a posse do presidente eleito. Ele aponta reuniões, minutas de decreto e um esforço para obter apoio das Forças Armadas. Segundo ele, a tentativa de intervenção esbarrou na recusa de alguns militares.
- O centro dessa trama, no relato de Cid, estava em um rascunho de decreto que previa medidas como a prisão de ministros do STF e a convocação de novas eleições. O documento teria sido apresentado ao ex-presidente Bolsonaro por Filipe Martins, então assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, e o advogado Amauri Feres Saad.
- Tudo isso, segundo Cid, estava ligado à tese de fraude nas urnas. Para justificar a prisão de ministros e a convocação de novas eleições, Bolsonaro e seus assessores consideravam necessário, de acordo com Cid, defender essa tese.
- Mauro Cid relata que, depois de ler a minuta, o então presidente tentou medir até onde poderia ir e chamou os comandantes das Forças Armadas para uma conversa sobre o assunto. De acordo com o relato, o almirante Garnier Santos, ex-comandante da Marinha, teria demonstrado apoio ao decreto, dizendo que aguardava apenas um sinal. Já os comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Batista Junior, rejeitaram a ideia de golpe.
- Cid envolve o chamado "gabinete do ódio" em seu relato, afirmando que pessoas próximas do ex-presidente e alguns dos assessores da Secretaria de Comunicação do governo Bolsonaro deram respaldo ao decreto por meio de campanhas nas redes para minar a confiança no sistema eleitoral. Ele cita nomes como o do vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ) e de assessores como Tércio Arnaud. Na narrativa de Cid, o grupo teria ajudado a legitimar o plano de Bolsonaro promovendo conteúdos digitais contra ministros do TSE e o sistema eleitoral.
- A delação de Cid não se limita ao tema da minuta do decreto. Ele também falou sobre o uso de cartões corporativos para despesas privadas do núcleo familiar do ex-presidente Bolsonaro, sugerindo que compras pessoais eram feitas no cartão corporativo. Ele alega que só cumpria ordens e que se via proibido de questionar essas despesas.
- Outro ponto que ganhou destaque foi a acusação de fraude nos certificados de vacinação. Cid disse que atendeu a ordens para inserir dados falsos no sistema do Ministério da Saúde, gerando comprovantes de vacina para o presidente e sua filha.
- Também segundo Cid, joias e presentes recebidos do exterior por Bolsonaro não teriam sido incorporados ao acervo público, como manda a lei, mas sim separados para proveito privado do ex-presidente. No depoimento, ele ainda descreve supostas manobras para tentar lucrar com os objetos.