A aprovação do projeto de lei do homeschooling (PL 3179/2012) na Câmara na última quarta-feira (19) foi um marco histórico para o homeschooling no Brasil. Mas o texto do projeto não é unanimidade na comunidade ‘homeschooler’ do país, composta hoje por cerca de 17 mil famílias, segundo estimativa do Ministério da Educação. Entre os líderes das associações de ensino domiciliar e as famílias que aderem à prática, há uma diversidade de opiniões sobre o documento que avançou para o Senado.
A maioria considerou o resultado uma vitória, mas há divergências sobre o tamanho da conquista. Por um lado, a regulamentação é vista como um primeiro passo para quebrar o tabu, normalizar o homeschooling na sociedade e diminuir a perseguição contra seus adeptos. Por outro, a não aprovação das emendas ao texto-base decepcionou algumas famílias e associações, que esperavam, por exemplo, que se derrubassem a possibilidade de perda perpétua do direito ao homeschooling em caso de reprovação do estudante e a obrigatoriedade de que os pais ou tutores tenham ensino superior.
“Nunca tivemos ilusões de que teríamos uma lei perfeita. Longe disso. Mas sempre tivemos uma preocupação de que houvesse uma lei que fosse mais restritiva e que pudesse inviabilizar a prática. Mas seguimos. É um projeto de razoável para bom. Eu acho que a gente avançou bastante. Demos um grande passo só em tirar desse limbo jurídico as famílias processadas. É um novo alento para que elas continuem praticando o homeschooling, e com isso eu já fico muito feliz”, diz Rick Dias, presidente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned).
Para Rafael Vidal, fundador da Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal (Fameduc-DF), trata-se do “projeto possível”. “Ele não é tão rígido. Não será tão difícil para as famílias que estiverem atrás dos diplomas, da regulamentação, cumprirem o que está lá”, diz.
Nos últimos meses, aumentou o senso de urgência da comunidade homeschooler em relação à aprovação do projeto, por conta da proximidade das eleições. Uma possível mudança substancial na composição do Executivo ou do Legislativo a partir de 2023 poderia travar a discussão e manter ou até agravar a insegurança jurídica das famílias educadoras.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o homeschooling não era inconstitucional, mas que seria necessária uma lei para regulamentá-lo. Mesmo com essa decisão, por conta da falta de legislação, pais e responsáveis ainda ficam sujeitos a denúncias pelo crime de abandono intelectual, previsto no artigo 246 do Código Penal. Por isso, a regulamentação é vista como um alento.
“A gente sabe que, no Brasil, jamais ia ser aprovada uma lei completamente liberal. Dadas as circunstâncias, nós apoiamos o projeto como ele está agora. Acreditamos que é uma batalha vencida. Gostamos do resultado. O fato de conseguirmos tirar famílias do limbo jurídico, de termos as instituições orientadas a entender educação domiciliar como uma modalidade, para nós, faz diferença”, diz Vanessa Fernandes, fundadora da Faedusp (Famílias Educadoras do Estado de SP).
Perda perpétua do direito ao homeschooling em caso de reprovação é ponto mais criticado
O texto-base do projeto, que foi aprovado sem emendas, teve a relatoria da deputada Luisa Canziani (PSD-PR) e foi fruto de negociação da comunidade homeschooler com membros do Congresso ao longo dos últimos anos. Ele altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), permitindo a educação domiciliar “por livre escolha e sob a responsabilidade dos pais ou responsáveis legais pelos estudantes”.
Para os adeptos da educação domiciliar, será obrigatório matricular os estudantes em uma instituição de ensino particular ou pública, que avaliará anualmente os alunos. Para cada ano, os pais ou responsáveis deverão cumprir os requisitos curriculares previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Eles também precisarão enviar à instituição de ensino um relatório trimestral das atividades realizadas com seus filhos. O texto também pede “garantia, pelos pais ou responsáveis legais, da convivência familiar e comunitária do estudante”, sem especificar como isso deve ser feito.
Caso um educando reprove duas vezes seguidas na avaliação feita pela instituição de ensino em que ele estiver matriculado, seus pais perderão de maneira perpétua o direito ao exercício da educação domiciliar. Esse é o ponto da lei mais criticado pelas associações de homeschooling. Uma emenda que tentou derrubar esse item não foi acatada pelo Congresso.
“A própria Constituição veda a possibilidade de uma pena perpétua. Nem para os crimes gravíssimos há pena perpétua. Por que em um caso como esse a família vai perder totalmente o direito? No meu caso, eu tenho quatro filhos em idade escolar. Se um deles reprovar, todos vão ter que voltar para a escola? É uma parte do projeto que não está muito clara. Precisa ser melhor esclarecida para as famílias”, diz Diego Vieira, presidente da Associação de Famílias Educadoras de Santa Catarina (Afesc).
Para Rick Dias, a perda do direito “é absurda e contraditória com o próprio projeto”, já que o texto prevê isonomia entre estudantes domiciliares e escolares. “Os estudantes escolares são aprovados sem saber nada, eles simplesmente passam de um ano para o outro sem saber nada, porque não podem ser reprovados. Na época em que o estudante repetia o ano, quando ele repetia, ele não era punido, e o professor não era punido, os pais não eram punidos, e ele não perdia o direito de ir à escola. Eu nunca vi alguém perder o direito de ir à escola porque perdeu o ano. Agora, com o estudante de educação domiciliar, se não passar numa prova por duas vezes, os pais perdem o direito. Não faz sentido. Isso a gente pode judicializar. Se acontecesse comigo, eu colocaria na Justiça, porque a lei prevê isonomia entre estudantes domiciliares e escolares”, afirma.
Rafael Vidal concorda que a previsão de perda do direito à educação domiciliar é injusta. Por outro lado, vê pontos positivos na exigência de se matricular em instituições de ensino. “Vejo uma abertura para um novo mercado. A obrigação de matricular os alunos numa instituição de ensino pode ser uma oportunidade. Podem surgir – e já existem – escolas parceiras. E isso até ajuda famílias, principalmente as mais inseguras, que estão iniciando a educação domiciliar e terão o apoio de uma instituição de ensino”, comenta.
Outra exigência do projeto aprovado é que os pais ou os responsáveis pelo estudante tenham curso superior. Nos dois primeiros anos depois que a lei entrar em vigor, haverá um período de transição, em que os responsáveis que ainda não cumprirem esse requisito terão a chance de aderir ao homeschooling com a condição de se matricularem num curso de nível superior.
A exigência de curso superior também é criticada pela comunidade, mas é vista como um problema menor, já que, caso não tenham nível superior, os pais poderão buscar um preceptor que cumpra esse requisito. “A grande maioria das famílias não tem ensino superior. Isso era um impeditivo para algumas famílias. O fato de terem aberto a chance de haver um preceptor respondendo pela família, isso já colaborou. Muitas famílias que criticavam principalmente esse ponto já não criticaram mais, porque a grande maioria das famílias homeschoolers tem contato com algum professor, tem o auxílio de algum professor”, afirma Diego Vieira.
Regulamentação é vista com desconfiança por algumas famílias
No espectro ideológico das famílias educadoras, há também aquelas que defendem uma liberalização mais radical, e são contra qualquer tipo de interferência do Estado na educação das crianças. Nesse grupo, a aprovação do projeto foi recebida com mais desconfiança. Há o temor, por exemplo, de que a regulamentação possa tirar a liberdade dos pais que já praticam o homeschooling, aumentando a perseguição.
No ano passado, em uma enquete realizada pela Aned com famílias educadoras, a maioria dos pais, mães e responsáveis legais adeptos do homeschooling disse preferir permanecer mais tempo sem uma regulamentação a aderir a uma regulamentação muito restritiva.
“A gente tem várias vertentes de pensamento até mesmo entre as famílias educadoras. Realmente houve pontos em que as famílias se sentiram um pouco invadidas. Mas, explicando mais detalhadamente, muitas delas acolheram as mudanças. A grande maioria acolheu as mudanças”, diz Vieira.
Rick Dias afirma que “algumas pessoas têm amedrontado as famílias educadoras com relação à situação da lei”. “De fato, concordo que, na essência, bom seria mesmo que tivéssemos um olhar mais honesto para a Constituição e esse direito fosse outorgado aos pais sem maiores problemas, como ocorre em muitos países. Mas não é assim. E a gente sabe que, no nosso país, a gente não vai conseguir. Nossa mentalidade escolarizada não nos permite avançar tanto nisso hoje. As poucas famílias que dizem isso [que a regulamentação pode causar perseguição], amedrontadas por outras pessoas, geralmente não foram denunciadas e processadas. As que foram estão clamando pela legalidade. A gente precisa acalmar o Judiciário com relação à perseguição às famílias educadoras. A gente tem que saber usar a lei com muita inteligência em nosso favor. Ao bom entendedor, meia palavra basta. Vamos saber usar essa lei com inteligência”, diz Rick Dias.
Na visão de alguns membros de associações, a regulamentação acabará sendo favorável até mesmo para aquelas famílias educadoras que não desejam se submeter às regras previstas pelo projeto aprovado, já que o homeschooling deixará de ser tabu e seus adeptos passarão a ser menos perseguidos pela sociedade. Além disso, a legitimidade conquistada no campo legislativo poderá ajudar a expandir a prática, tornando-a menos associada a grupos ideológicos específicos.
“Eu vi em um jornal: ‘Vitória do governo Bolsonaro’. Não, é uma vitória das famílias educadoras. É uma pauta que existe muito antes do governo Bolsonaro. Não tem nada a ver com o governo Bolsonaro. Não é somente pauta de bolsonaristas. Há uma diversidade de pensamentos ideológicos. É até um desrespeito falar que é uma pauta bolsonarista. É um anseio das famílias educadoras”, comenta Vieira.
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