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Alexandre de Moraes é relator do inquérito que apura suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal.
Moraes também votou a favor pela manutenção de Maia e Alcolumbre nos seus respectivos cargos| Foto: Carlos Moura/STF

O julgamento de um Recurso Extraordinário (RE), por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), pode facilitar o reconhecimento do chamado “poliamor” – uniões afetivas simultâneas – para fins de partilha da pensão por morte paga pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Em setembro de 2019, o STF deu início ao julgamento do RE 1045273, que analisa um pedido de rateio da pensão por morte de um homem entre sua esposa e seu amante. O pedido do amante, chamado juridicamente concubino, foi negado pela justiça estadual de Sergipe, mas ele recorreu.

Até agora, no julgamento pelo Supremo, o caso recebeu três votos contrários à divisão da pensão (do relator, Alexandre de Moraes, e dos ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes). O ministro Edson Fachin, no entanto, abriu uma divergência e votou favoravelmente ao rateio da pensão – três outros ministros acompanharam o entendimento de Fachin. Em seguida, Dias Toffoli pediu vista, suspendendo temporariamente o julgamento.

Na quarta-feira, 2 de dezembro, o STF retomará a análise do caso, em que se aguardam os votos de mais três ministros: Dias Toffoli, Luiz Fux e Kassio Nunes Marques. O julgamento tem repercussão geral, isto é, seu desfecho servirá como parâmetro para outros processos que envolvam reconhecimento de duas uniões estáveis simultâneas.

Entenda o caso

O caso em análise diz respeito a um homem que, por vários anos, manteve dois relacionamentos: um com uma mulher e outro com um homem. Após o falecimento do companheiro, a mulher obteve o reconhecimento judicial de união estável e começou a receber a pensão por morte. No entanto, o concubino do falecido passou a pleitear na Justiça a divisão do benefício e obteve uma decisão favorável em primeira instância.

Diante da decisão em primeiro grau, a mulher recorreu ao Tribunal de Justiça do Sergipe (TJSE), que deu provimento à apelação, atestando que não é possível reconhecer uma união estável da mesma pessoa em duas relações concomitantes. O rapaz, então, recorreu ao STF.

O caso é complexo, já que todas as questões familiares e sucessórias envolvem exclusivamente relações de casamento (cônjuges) e de união estável (companheiros), além dos descendentes (filhos) e, na falta destes, os ascendentes (pais) – amantes entram na figura que a lei classifica como concubinato, e não possuem os mesmos direitos. De acordo com a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), um eventual provimento ao recurso significaria atribuir efeitos a uma relação que o ordenamento jurídico brasileiro não reconhece como família.

“A matéria atualmente em debate no STF é previdenciária, porém o direito previdenciário utiliza os conceitos de família para a atribuição dos benefícios da previdência. No caso em julgamento, há um concubinato que não é reconhecido pelo direito de família, e, portanto, a relação não pode ser reconhecida pelo direito previdenciário”, explica.

A advogada destaca que, conforme o artigo 226 da Constituição Federal e o artigo 1.723 do Código Civil, a união estável é monogâmica, entre duas pessoas. “O STF reconheceu a possibilidade de constituição de união estável para casais homossexuais, mas os ministros, em seus votos, acentuaram a monogamia quando marcaram que a relação de dois homens ou duas mulheres, para produzir efeitos jurídicos, precisa ser assemelhada à uma união estável heterossexual”, observa a jurista, referindo-se ao reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas, por parte do STF, em maio de 2011.

Paulo Roque, advogado especialista em Direito Civil e Familiar, endossa que o ordenamento jurídico brasileiro não reconhece uniões estáveis simultâneas. “A bigamia é um crime [artigo 235 do Código Penal], então como pode haver o reconhecimento de duas uniões estáveis?”, questiona o jurista.

“No caso em julgamento, a união que foi reconhecida teria começado antes da segunda relação e possuía os elementos da união estável – foi duradoura e, inclusive, houve constituição de família com filho”, atesta Roque. “Vejo com muita preocupação uma eventual decisão do STF pelo provimento do recurso, pois vai criar uma insegurança muito grande, sobretudo nas uniões estáveis”.

TJRS reconheceu união estável extraconjugal paralela ao casamento

No dia 13 de novembro, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) reconheceu uma união estável extraconjugal concomitante ao casamento. Na ocasião, um dos magistrados afirmou que, apesar de a união estável em paralelo ao casamento ser incomum, “a situação mudou nesse caso pela comprovação de que a esposa tinha conhecimento sobre o relacionamento extraconjugal”. “Se a esposa concorda em compartilhar o marido em vida, também deve aceitar a divisão de seu patrimônio após a morte, se fazendo necessária a preservação do interesse de ambas as células familiares constituídas”, argumentou o desembargador José Antônio Dalto Cezar.

Quanto ao caso ocorrido no Rio Grande do Sul e possíveis decisões correlatas, Paulo Roque afirma que não existe nada fundamentado sobre o assunto. “Isso não está em regra nenhuma. É uma inovação jurídica. Criou-se uma regra a partir de uma interpretação, mas não existe nada que a fundamente. Regular essa matéria cabe ao Congresso Nacional”, declara o jurista.

“O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julga os recursos de decisões proferidas pelos tribunais estaduais, tendo vasta e uniforme jurisprudência sobre a não atribuição de direitos previdenciários, familiares e sucessórios a uma relação paralela, ou seja, a um concubinato, seja de curta ou de longa duração, seja público ou não”, ressalta Regina Beatriz. “Diante do princípio constitucional da monogamia, que tem o apoio da sociedade brasileira, uma relação que concorre com um casamento ou uma união estável não pode gerar benefícios previdenciários”, reforça a advogada.

Como foram os votos dos ministros do STF até agora

Ao votar pelo desprovimento ao recurso, em setembro de 2019, o ministro Alexandre de Moraes – relator do recurso extraordinário – declarou que a existência de declaração judicial definitiva de uma união estável, por si só, impede o reconhecimento de outra união concomitante e paralela, independentemente de esta ser heteroafetiva ou homoafetiva. Moraes fundamentou seu voto na equiparação da união estável ao casamento e, consequentemente, na impossibilidade de reconhecer direitos em relação paralela a uma união estável. “A união estável foi equiparada ao casamento para que tenha todos os direitos do matrimônio, adquirindo os ônus e os bônus, ou seja, os ônus da fidelidade e os bônus do reconhecimento de todos os direitos”, afirmou o relator, que foi acompanhado por Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Ao abrir divergência favorável ao rateio da pensão, o ministro Edson Fachin sustentou que o caso não se trata de uma discussão de Direito de Família, mas de Direito Previdenciário pós-morte. Fachin afirmou que, ainda que exista jurisprudência rejeitando efeitos previdenciários a uniões estáveis concomitantes, é possível haver o rateio da pensão por morte desde que haja boa-fé objetiva, isto é, desde que a pessoa não soubesse que seu parceiro possui uma união estável simultânea. Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Marco Aurélio e Cármen Lúcia acompanharam a divergência, acrescentando, os três primeiros, que se o falecido fosse casado, o seu amante não teria direitos previdenciários, mas, como houve união estável do falecido, esses direitos poderiam ser atribuídos ao concubino.

A presidente da ADFAS discorda do entendimento da divergência aberta na Suprema Corte. “O STF equiparou a união estável ao casamento em efeitos, inclusive sucessórios, em julgamento ocorrido com repercussão geral em maio de 2017. Agora, nos votos divergentes, estão buscando desequipará-la em impedimentos. Isso é uma contradição gravíssima”, afirma Regina Beatriz.

“No voto do ministro Luís Roberto Barroso, ele afirma que ‘nenhuma lei diz que você vivendo em união estável não possa ter outra união estável’. A partir do momento em que a união estável foi igualada ao casamento em seus efeitos, inclusive sucessórios, por óbvio não podemos nem imaginar que essa relação paralela possa ser considerada para fins previdenciários”, observa a presidente da ADFAS.

Paulo Roque ressalta que juridicamente não há diferença entre casamento e união estável, e aos dois deve ser dado o mesmo tratamento. “O que o ministro Fachin está dizendo é que casamento é uma coisa e união estável é outra. Mas a Constituição Federal manda assegurar a ambos o mesmo tratamento”, afirma o advogado.

Impacto de eventual decisão favorável ao recurso

Caso seja aceito o recurso em julgamento no STF, decisões judiciais passarão a levar em conta essa jurisprudência para casos semelhantes em todo o país, já que o julgamento tem repercussão geral. Como reflexo, também pode ocorrer aumento significativo de ações judiciais para requerer não somente divisão de pensões do INSS, mas também de previdências privadas e patrimônios.

Em caso de provimento ao recurso, Regina Beatriz afirma que haverá uma quebra no sistema jurídico, que é todo fundamentado na monogamia. Para justificar impactos negativos da decisão, ela recorre a um artigo científico de autoria de Joseph Henrich, Robert Boyd e Peter J. Richerson (pesquisadores das áreas de Psicologia, Economia, Antropologia e Ciência e Política Ambiental), o qual destaca efeitos negativos da poligamia em contraposição aos “avanços garantidos em culturas monogâmicas”. O estudo aponta que a monogamia reduz taxas de criminalidade (incluindo homicídio, estupro, roubo, furto e fraude); diminui a desigualdade de gênero; reduz conflitos intrafamiliares; proporciona menores taxas de negligência infantil (abuso, morte acidental e homicídio); e aumenta a produtividade econômica.

“Trata-se de um estudo com cientistas de várias áreas que avaliam a mono e a poligamia em diferentes países. A monogamia prevaleceu em todos os países ocidentais e em grande parte dos países orientais. A poligamia está presente numa pequena parte da Ásia e na maior parte do continente africano. Os índices de desenvolvimento humano dos países que permitem relacionamentos poligâmicos são os piores”, declara a jurista. “O denominado poliamor e a bigamia são relações de poligamia, por envolverem mais do que duas pessoas”, explica.

Caso o Brasil passasse a aceitar a poligamia, passaria a integrar um grupo de países, como Quênia, Somália, Sudão, Uganda, Butão, Irã e Síria. No restante do planeta, a monogamia forma a base da legislação – com exceção de algumas nações que liberam a prática exclusivamente para muçulmanos, caso da Índia e de Singapura.

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