Mesmo com os principais indicadores da pandemia da Covid-19 (como contaminações, complicações graves, internações e óbitos) em queda; o avanço das campanhas de vacinação (o Brasil tem 78% da população totalmente vacinada); e, em especial, o fim do estado de emergência contra Covid-19, assinado pelo ministro da Saúde Marcelo Queiroga no dia 22 de abril, a vigência do passaporte sanitário segue em diversos locais públicos e privados do Brasil.
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Conforme mostrado recentemente pela Gazeta do Povo, outras medidas excessivas contra não vacinados também continuam em curso, como a exoneração de servidores públicos, a demissão de funcionários e até mesmo o impedimento de matrícula de estudantes em universidades públicas. As instituições públicas de ensino superior, aliás, se destacam pela implementação de exigências rígidas que, em geral, contrastam com a realidade das cidades e estados em que estão localizadas.
Recentemente a Universidade de Brasília (UnB), que desde o início do ano exige comprovante vacinal para entrada em suas dependências, anunciou que irá adotar um "selo" de identificação para estudantes e servidores já imunizados contra a Covid-19 – a medida, considerada discriminatória, e alvo de diversos questionamentos por parte da comunidade universitária.
Conforme fontes ouvidas pela reportagem, os possíveis caminhos para frear, de maneira mais ampla, a vigência de medidas consideradas abusivas contra não vacinados passam por iniciativas do poder Executivo e do Legislativo, mas, invariavelmente, contarão com a participação do Judiciário para dar a palavra final. Há também possibilidades de atuação individual de cidadãos que se veem frente a abusos derivados dessas restrições.
Lei de enfrentamento à Covid
A Lei 13.979, de fevereiro de 2020, que trata das medidas de enfrentamento à pandemia da Covid-19, é bastante utilizada para defender a exigência de comprovantes de vacinação para acesso a locais públicos e privados, já que em seu artigo 3º ela prevê a vacinação compulsória. A partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento realizado em dezembro de 2020, em que autorizou a implementação de vacinação compulsória por meio de medidas indiretas, “as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares (...)”, a lei se tornou “figura carimbada” nas justificativas para a implementação das políticas de restrição.
Porém, logo no primeiro artigo da lei em questão, cita-se que ato normativo do ministro de Saúde “disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública de que trata esta lei”. Em outras palavras, a portaria editada por Queiroga, que estabelece o fim da emergência sanitária no país, seria o suficiente para enfraquecer medidas excessivas.
Entretanto, mesmo com o fim da emergência sanitária há ao menos duas decisões do STF que podem inviabilizar uma redução a curto prazo de medidas discriminatórias a não vacinados. A primeira é a decisão de maio de 2020 que estabeleceu que estados e municípios têm competência para determinar suas próprias políticas de condução da pandemia.
Para o procurador do Ministério Público Federal (MPF) Cleber Eustáquio Neves, a decisão do Supremo acabou descentralizando toda a gestão da pandemia do Ministério da Saúde. Para ele, como reflexo dessa decisão, estados e municípios podem entender e alegar que mesmo com a determinação do fim da emergência sanitária estariam autorizados a manter medidas rígidas, caso assim decidam.
“Quem disciplina o enfrentamento da pandemia é o Ministério da Saúde. O Supremo fez uma intervenção que, ao meu ver, foi indevida, e a consequência disso é que não houve desde o início uma direção única para enfrentar a pandemia. Essa realidade que temos hoje é fruto dessa intervenção indevida do Poder Judiciário na administração pública”, diz o procurador da República.
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Outra decisão do STF pode manter medidas desproporcionais nas universidades públicas por mais tempo: em fevereiro deste ano, a Corte entendeu que, devido à autonomia administrativa dessas instituições, elas podem manter a exigência de passaporte sanitário. Na época, o país lidava com uma nova onda da Covid-19 devido à variante Omicron que, ainda em fevereiro, passou por forte desaceleração. Agora, em novo cenário, caberia ao Supremo, após ser acionado para isso, revisar a decisão de acordo com os novos indicadores da pandemia.
Na análise de José Roberto Mello Porto, defensor público do Rio de Janeiro e doutorando em Direito Processual, muitas das medidas contra não vacinados que persistem até hoje não passariam pelo filtro clássico para a tomada de decisões em um Estado Democrático de Direito, que são os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
“Não subsistindo o estado de emergência de saúde e com os índices da pandemia sendo reduzidos seguidamente, existe necessidade da cobrança do passaporte sanitário, com todas as interrogações que a vacina ainda deixa, inclusive a respeito da possibilidade de transmissão do vírus por vacinados? Essa é a grande pergunta, que me parece que a cada dia mais vai se encaminhando para uma resposta negativa”, diz o jurista.
Para Mello Porto, as restrições que se mantêm são essencialmente discriminatórias, e tal discriminação entre vacinados e não vacinados só se justificaria diante de um direito maior que deva ser prestigiado. “A pessoa vacinada pode gozar de certos direitos, e a não vacinada não pode. Isso é essencialmente uma discriminação, que outrora poderia ser razoável, mas a cada dia que passa se torna mais desarrazoada”, prossegue.
Revogação da lei 13.979 resolveria os impasses?
Diante de eventual manutenção do quadro atual de restrições mesmo após a entrada em vigor do encerramento do estado de emergência de saúde – que passa a valer, de fato, 30 dias após a assinatura de Queiroga, isto é, a partir de 23 de maio – questiona-se se a revogação da Lei 13.979, de 2020, seria o caminho mais adequado para a solução dos impasses.
Em se tratando de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, a única forma de ser anulada seria por meio da aprovação de um novo projeto de lei que suspenda a lei atual. Ainda que o governo federal possa apresentar uma proposta neste sentido, ele não tem a competência para revogar, por si só, a lei aprovada.
O único instrumento que poderia ser usado pelo governo para barrar a lei é a medida provisória, ato normativo do presidente da República que possui eficácia imediata, porém temporária; isto é, o Congresso deve avaliá-la posteriormente e, caso não aprove, a medida perde seus efeitos.
“Mas para editar essa medida deve haver os requisitos de urgência e relevância, e aí caberia uma análise de constitucionalidade do STF quanto a esse eventual ato do presidente. O caminho mais razoável seria, de fato, uma nova lei revogando essa lei atual. Em todo caso nesse cenário, o Congresso seria um agente indispensável”, diz o Mello Porto.
Papel do Judiciário quanto a medidas abusivas
Conforme explicam as fontes consultadas pela Gazeta do Povo, diante do “campo de batalha” ideológico que o cenário da pandemia se tornou, invariavelmente, decisões sobre o abrandamento de medidas de prevenção à Covid-19 serão levadas ao Judiciário.
Mas, como explica Cleber Neves, o STF não pode dar novos rumos ao cenário de combate à pandemia ou mudar posicionamentos anteriores caso não seja provocado. Isso irá ocorrer somente se ações questionadas em instâncias inferiores da Justiça chegarem à Corte ou por ação direta ajuizada no Supremo por atores que têm legitimidade para isso, como é o caso de partidos políticos e do Procurador-Geral da República.
“A partir daí deve haver uma readequação. Já que não há mais a situação de emergência, qual é o sentido de manter a exigência de passaporte sanitário nesse momento? Caiu por terra toda essa exigência. Tem que interpretar isso de acordo com a situação atual, e a situação atual não é de emergência”, aponta o procurador da República. “Tanto é que foi liberado o carnaval no Rio e em São Paulo. Ou seja, estamos em uma situação que ninguém entende mais. A pessoa vai ao estádio de futebol lotado, ao carnaval, mas está impedida de trabalhar ou dar aula”, ressalta.
Segundo ele, cidadãos que entenderem ser alvo de medidas abusivas no âmbito da vacinação podem lançar mão de iniciativas individuais, dependendo de cada situação. Em casos relacionados a órgãos estaduais – caso uma secretaria, uma escola ou universidade estadual, por exemplo, que estejam agindo abusivamente para impedir o acesso de não vacinados – deve-se procurar o Ministério Público de cada estado.
Já se a medida se der em órgãos federais, o correto é procurar o Ministério Público Federal (MPF) para registrar a denúncia. Por outro lado, se a violação estiver relacionada ao setor privado, como a demissão decorrente da não vacinação, o procurador orienta que seja acionado o Ministério Público do Trabalho (MPT). “Neste caso, se não houver resposta, a pessoa deve procurar um advogado para entrar com ação contra seu empregador e tentar reverter essa demissão sem justa causa”, explica.
A judicialização, entretanto, não tem funcionado em grande parte das vezes, já que juízes e desembargadores costumam replicar decisões do STF, cuja atual formação é favorável ao passaporte sanitário.
Em universidades, diminuição das restrições deve durar mais por questões políticas
Além da implementação do passaporte sanitário em grande parte das universidades públicas e em outros estabelecimentos públicos e privados, eles têm aceito apenas o esquema vacinal completo para acesso às dependências. Tal diretriz entra em choque com a Declaração sobre a Ética de Certificados e Passaportes Vacinais de Covid-19, publicada pela Unesco.
O documento cita que a implementação da política de passaporte sanitário “não deve infringir outros direitos e liberdades civis, como o direito de as pessoas recusarem vacinação, por exemplo, por motivos de crenças pessoais, morais e religiosas, restrições de idade, circunstâncias médicas ou preocupações sobre a confiabilidade e a segurança das vacinas”.
O documento cita também que devem ser aceitos outros meios para dar acesso aos locais em que a política está vigente, como a apresentação de teste de Covid-19 negativo ou comprovante de infecção recente. A declaração da Unesco alerta ainda que a exigência de passaportes vacinais pode criar formas injustas de discriminação e exclusão, as quais devem ser evitadas. “Isso não deve resultar na exclusão daqueles que não podem se vacinar, por exemplo, devido a gravidez, condição médica, falta de vacinas ou recusa à vacina”, destaca o documento.
Na prática, medidas como o impedimento à realização de matrículas nas universidades públicas e a reprovação por faltas sucessivas devido à impossibilidade de os alunos participarem das aulas, além da perseguição a estudantes, servidores e professores não vacinados, vão contra as orientações da Unesco.
Para o advogado Douglas Ivanowski Bertelli Kirchner, porta-voz da Associação Ministério Público Pró-Sociedade (MPPS), mesmo com decisões de autoridades do poder público dando fim às exigências relacionadas à pandemia, parte das instituições públicas de ensino deverão manter a exigência do passaporte sanitário alegando autonomia administrativa. Para ele, um arrefecimento nessas políticas se dará somente a partir do momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar o fim da pandemia.
“Nas universidades, tomaram isso como uma questão muito mais política do que sanitária. Ainda que você tenha todos os argumentos jurídicos, eles não vão dar o braço a torcer porque tomaram isso como causa político-partidária. Acham que se cederem a essas rígidas restrições vão estar cedendo a uma pauta do governo federal”, afirma.
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