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Desde 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passaram a aplicar de forma sistemática medidas de restrição a conteúdos na internet, um novo vocabulário tomou conta do Judiciário brasileiro. Termos como "desinformação", "discurso antidemocrático", "desinformação sistêmica", "ambiente informacional saudável" e "integridade informacional" são usados para justificar remoções de postagens, bloqueios e censura de perfis inteiros.
Esse arcabouço teórico não foi inventado pelos ministros. Nasceu em ambientes acadêmicos e instituições internacionais que moldam políticas de vários países, como grandes universidades americanas e britânicas, institutos de pesquisa sobre comunicação digital, além de entidades como o Conselho da Europa, o Consórcio para Eleições e Fortalecimento do Processo Político, o Atlantic Council e o Meedan.
No Brasil, o vocabulário que veio do exterior passou a ecoar em centros de pesquisa como o NetLab UFRJ, que já embasou votos de ministros em julgamentos. Dias Toffoli, por exemplo, citou recentemente um estudo do NetLab para sustentar seu voto pela inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil e pela responsabilização das redes sociais por conteúdos divulgados por terceiros.
As principais organizações estrangeiras e brasileiras que dão a base teórica para o STF são patrocinadas por fundações de bilionários progressistas como a Open Society Foundations, a Ford Foundation e a Oak Foundation. O NetLab, por exemplo, recebeu em 2024 uma doação de R$ 2,8 milhões da Open Society Foundations, válida para o período entre setembro de 2024 e agosto de 2027. Antes disso, já havia recebido aportes de R$ 1,2 milhões da Oak e R$ 869 mil da Ford Foundation.
Outro parceiro que fornece a base teórica para o STF é o InternetLab, que também tem investimento da Ford Foundation e já foi financiado pela Open Society Foundations. O grupo já participou de audiências públicas e eventos organizados pelos tribunais e tem acordos de cooperação com o TSE para desenvolver ações de combate à desinformação nas eleições. Seus relatórios são usados como referência em medidas da Justiça Eleitoral. Seu diretor-executivo integrou, nas eleições de 2024, o Comitê de Estudos sobre Integridade Digital e Transparência nas Plataformas de Internet no Processo Eleitoral do TSE.
Outros centros, como a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV DAPP), atuam em parceria com o Judiciário em pesquisas sobre desinformação. Em 2021, a FGV DAPP convidou Alexandre de Moraes para abrir um seminário sobre desinformação eleitoral, um ano antes de ele liderar, no TSE, as medidas de censura em larga escala do pleito de 2022.
Vale ressaltar que nenhum desses grupos deu chancela explícita aos métodos ilegais empregados pelo Judiciário brasileiro nos últimos anos. Um deles, o ITS Rio, chegou a fazer críticas ao STF pela decisão que reinterpretou o Marco Civil. Contudo, os relatórios e os conceitos usados nesses ambientes acabaram incorporados ao repertório do STF e do TSE para justificar medidas de controle de discurso nas plataformas digitais.
Documento formulado pelo TSE em 2021 detalha a base teórica para a censura
Um documento central para entender como conceitos teóricos desenvolvidos por redes acadêmicas brasileiras e estrangeiras, além de instituições internacionais, influenciaram o ímpeto de controle do discurso é o Plano Estratégico para as Eleições 2022 do Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação da Justiça Eleitoral.
O texto oferece uma visão direta de como essas ideias foram incorporadas pela cúpula do Judiciário como base técnica e justificativa institucional. O tribunal detalha a criação de uma estrutura permanente dedicada a identificar, monitorar e reagir ao que classifica como desinformação no ambiente digital.
O plano diz que "a desinformação assumiu um protagonismo sem precedentes na história eleitoral" a partir de 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência. A democracia não se sustentaria sem um "ambiente informacional saudável" – expressão copiada de organismos estrangeiros, como a TAI Collaborative, que é financiada pela Ford Foundation e pela Open Society Foundations. O TSE, segundo o documento, deveria atuar para favorecer esse ambiente e preservar a confiança pública no processo eleitoral.
Quase todas as instituições citadas anteriormente são parceiras institucionais mencionadas pelo TSE nesse documento. O plano incorpora conceitos, recomendações técnicas e manuais produzidos por essas entidades.
O documento ainda mostra como os conceitos teóricos se transformam em ações práticas: parcerias para monitoramento digital, campanhas educativas, cooperação com plataformas, participação de especialistas estrangeiros em eventos oficiais e uso desses referenciais no desenho de resoluções.
Conceitos que se originaram no ambiente americano e europeu alimentam censura do STF
Desde meados dos anos 2010, redes acadêmicas e instituições internacionais passaram a produzir diagnósticos globais sobre "desinformação", "integridade informacional" e riscos digitais. Essas ideias chegaram ao Brasil por meio de ONGs e centros de pesquisa e acabaram incorporadas por ministros como fundamento teórico para medidas de controle de conteúdo, bloqueios de contas nas redes sociais e outras decisões.
O ponto de partida mais claro é 2017, quando o Conselho da Europa publicou o relatório Information Disorder, assinado por Claire Wardle e Hossein Derakhshan. O documento criou o campo de estudo da "desordem informacional" e deu uma definição técnica para "desinformação". A taxonomia elaborada pelos pesquisadores se espalhou rapidamente pelo mundo, tornando-se a base para classificações posteriormente usadas pelo Judiciário brasileiro.
Um dos objetivos da criação de novos termos para o fenômeno, segundo os pesquisadores, era que o termo "fake news" já tinha sido apropriado por políticos em vários países "para rotular veículos de imprensa cujas coberturas consideram desagradáveis". A observação tinha um alvo provável: justamente em 2017, ano da publicação do relatório, o presidente dos EUA Donald Trump havia dito a famosa frase "CNN is fake news" ("a CNN é fake news") durante uma coletiva de imprensa.
Termos como "disinformation", "misinformation" e "malinformation" têm origem justamente nesse incômodo dos autores e na busca de uma alternativa para "fake news". Os conceitos vêm originalmente do inglês e não têm tradução perfeita para o português. "Misinformation" significa informação falsa compartilhada sem intenção de causar dano; "disinformation" – que tem sido traduzido como "desinformação" – é uma informação falsa criada com intenção deliberada de prejudicar; e malinformation é uma informação verdadeira usada de maneira a causar dano.
Outras expressões presentes hoje no vocabulário do Judiciário brasileiro, como "desordem informacional", "poluição informacional", "filter bubbles" (bolhas de filtros algorítimicos) e "câmaras de eco" também estão presentes nesse relatório.
Alguns conceitos que circulam na academia também são popularizados por grandes organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), e depois empregados pelos membros do Judiciário brasileiro. A noção de "integridade informacional", por exemplo, dá nome a um programa da ONU.
Em agosto deste ano, o ministro Gilmar Mendes empregou a expressão. "As retóricas sobre liberdade de expressão nos espaços virtuais devem ser redimensionadas dentro da realidade democrática. A proteção desta liberdade fundamental encontra seu alicerce na inviolável integridade informacional", afirmou Gilmar durante uma sessão do STF.
"Integridade informacional" é um termo originalmente usado por profissionais da computação, e significava somente não adulterar dados. Alguns pesquisadores passaram a ampliar o velho conceito técnico de integridade informacional para algo maior: a confiabilidade do ecossistema de informação como um todo, inclusive em campos mais subjetivos da expressão humana, como o discurso das redes sociais.
A partir de meados da década de 2010, grupos acadêmicos e organizações como o First Draft começaram a aplicar o termo ao debate público sobre desinformação. Anos depois, o termo chegou à ONU, que lançou em 2022 um documento com o título "Integridade informacional", falando sobre a necessidade de proteger o "ambiente informacional" contra distorções, manipulações e campanhas coordenadas.






