O Supremo Tribunal Federal (STF) adiou nesta quarta-feira (14) um julgamento sobre liberdade religiosa, que decidiria se pessoas que professam algum credo têm o direito de exigir alternativas para não precisarem exercer atividades em dias de guarda de suas religiões. O adiamento se deu por conta do julgamento sobre a libertação do traficante André do Rap, que ocupou toda a sessão da quarta e continuará na quinta-feira (15). Se os ministros concluírem os votos sobre o traficante na quinta, há chance de que o julgamento sobre os dias de guarda comece na mesma sessão.
O caso específico que motiva o julgamento diz respeito ao sábado, que é dia de guarda para judeus, adventistas de sétimo dia e batistas de sétimo dia, que creem que nenhuma atividade secular deve ser exercida durante esse dia da semana. Mas a decisão poderá ter uma repercussão bem mais ampla.
Se a decisão do STF for favorável ao direito dos religiosos, prestadores de concursos públicos poderão exigir alternativas de datas para provas, e funcionários públicos terão o direito de faltar nos dias de guarda e repor o trabalho em outros momentos.
O julgamento também afetará funcionários de empresas privadas. Hoje, alguns tribunais de instâncias inferiores ao STF definem que um empregado pode ser demitido por justa causa se faltar ao trabalho em dia de guarda, enquanto outros tribunais sustentam o contrário. A decisão do STF, que tem repercussão geral, colocará fim a esse dissenso.
“O Supremo vai avaliar se o Estado brasileiro deve garantir, assim como acontece em algumas nações que já enfrentaram o tema, essa liberdade de cada um exercer seu culto sem prejuízo”, resume o advogado Luigi Braga, diretor de compliance da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), que participa como amicus curiae no julgamento.
Casos de fundo envolvem concurso no sábado e professora que não quis trabalhar no sábado
O julgamento do STF se apoiará em dois casos relacionados com servidores públicos que foram discriminados por guardarem o sábado.
Um dos casos é o de Geismario dos Santos, um servidor do Pará que passou em primeiro lugar em uma prova escrita de um concurso para técnico judiciário do Tribunal Regional Federal da Primeira Região.
Para a fase seguinte, a prova física, os candidatos foram divididos em dois grupos: alguns fariam a etapa em Belém, no sábado, e outros em Manaus, no domingo. Geismario foi designado, inicialmente, para a prova do sábado, mas, por motivo religioso, pediu que a data de sua prova fosse alterada para o domingo. Como seu pedido não foi acatado, ele entrou com um mandado de segurança para fazer a prova no domingo. Viajou para Manaus, passou em primeiro lugar no concurso, mas não foi nomeado.
O segundo caso é o de uma professora que passou em um concurso público municipal para ministrar aulas de alfabetização de jovens adultos e, no meio de seu estágio probatório, foi exonerada por não aceitar trabalhar em uma sexta à noite, equivalente ao sábado, de acordo com sua religião.
Apesar de se tratarem de contextos específicos – o de uma prova de concurso público e o de estágio probatório de um cargo no serviço público –, o julgamento tem uma repercussão mais ampla, atingindo, potencialmente, qualquer trabalhador brasileiro.
“O que nós vamos defender é a liberdade religiosa como um todo”, diz Braga. “O Brasil é um país com uma pluralidade religiosa. Reconhecer os dias de guarda em geral é uma prova da maturidade do Estado brasileiro”, acrescenta.
"Acomodação razoável" da liberdade religiosa será definida pelo STF
Uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1963 pode ter influência sobre o STF. Em um caso que ganhou repercussão geral, o tribunal norte-americano julgou que a demissão por justa causa de uma funcionária pública adventista de sétimo dia que faltou ao trabalho no sábado foi inconstitucional. Posteriormente, o Congresso dos EUA elaborou uma legislação sobre o assunto.
“Se eles seguirem a jurisprudência da Suprema Corte americana, é bem provável que eles concedam o direito. Nos Estados Unidos, em 1963, isso já foi superado”, diz Braga.
A decisão do STF vai tratar do que o Direito chama de “acomodação razoável” da liberdade religiosa, isto é, sobre como é possível acomodar uma alternativa razoável, para que uma pessoa possa ser fiel à sua religião sem deixar de exercer suas atividades.
“Provavelmente, essa decisão vai mostrar como deve ser dada a prestação alternativa, ou seja, como o Estado brasileiro lida com o dia de guarda das pessoas. Aí vai entrar Sexta-Feira da Paixão, Natal, Dia de Nossa Senhora Aparecida, Corpus Christi, Ramadã, o sábado para os judeus, o Yom Kipur, ou seja, todos os dias de guarda”, avalia Braga. “O indivíduo vai ter que demonstrar essa necessidade de guarda por algum motivo. É a chamada acomodação razoável da prestação alternativa”, explica.
A decisão do STF poderá ter repercussão também sobre algumas práticas católicas, como a devoção à Nossa Senhora. “Na segunda-feira, atendemos cinco pessoas que foram escaladas para seus trabalhos e eram devotas de Nossa Senhora Aparecida e tinham feito promessas. Elas iam cumprir as promessas. Nesse caso específico, entramos para defendê-los, porque o dia 12 de outubro era o dia de guarda para elas. Um cliente tinha uma doença muito grave, crê que Nossa Senhora Aparecida o curou, e ele tinha que cumprir essa promessa. A liberdade religiosa tem que proteger as pessoas para que não se entre no mérito se isso está certo ou está errado. É o seu direito de crença”, afirma Braga.
No entanto, segundo o advogado, uma eventual decisão do STF favorável aos religiosos também deverá estabelecer critérios de compensação. “O indivíduo fala: ‘Vou faltar oito vezes por dias de guarda’. Ok, mas quando ele vai repor esses oito dias? Vai dividir em horas? Vai fazer duas horas diárias até repor os oito dias? Vai colocar isso em um banco de horas? Ele é obrigado a fazer a acomodação, mas ninguém pode ter prejuízo. É uma acomodação razoável”, explica o advogado.
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