Para derrubar a decisão do ministro Kassio Nunes Marques, que no início de junho concedeu liminar para devolver a Fernando Francischini (União) seu mandato na Assembleia Legislativa do Paraná, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ensaiaram contrariar uma antiga jurisprudência da Corte, que é frequentemente usada para negar pedidos de reforma de decisões proferidas pelos membros do Supremo.
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Para negar o recebimento de mandados de segurança, habeas corpus e reclamações protocoladas no STF, que questionem decisões de algum ministro da Corte, é comum que aquele que recebeu o pedido recorra a essa jurisprudência. A lógica aqui é impedir uma "guerra interna", na qual as partes manobrem para derrubar a decisão de um ministro acionando outro. Numa hipótese extrema, isso abriria a possibilidade de acionar um terceiro para derrubar a decisão daquele que suspendeu a decisão do primeiro.
Essa argumentação foi usada na mesma semana pelos ministros para rejeitar mandado de segurança protocolado pela defesa do Terça Livre, de propriedade do jornalista Allan dos Santos. No voto do relator, que foi acompanhado de forma unânime pelos colegas, Edson Fachin cita que “a jurisprudência desta Suprema Corte é uníssona no sentido de afirmar incabível mandado de segurança contra ato judicial por ela própria emanado, inclusive aqueles proferidos por seus ministros”.
No pedido, a defesa questionava a determinação de Alexandre de Moraes, que durante a etapa de investigação – sem sequer oferecer denúncia contra os investigados – ordenou o bloqueio das redes sociais e das contas bancárias da empresa. O bloqueio financeiro fez com que o veículo de comunicação fechasse as portas no fim de 2021 e demitisse cerca de 50 funcionários.
Decisão de Nunes Marques incomodou ministros
Em raríssimas ocasiões os ministros romperam o entendimento para adentrar no mérito dos casos e apurar as ressalvas da jurisprudência, nos casos de existência de ilegalidade ou abuso. A decisão de Nunes Marques, entretanto, incomodou a maioria dos ministros do STF, especialmente os que compõem atualmente o Tribunal Superior Eleitoral (TSE): o atual presidente da Corte Eleitoral, Edson Fachin; o vice, Alexandre de Moraes; e também Cármen Lúcia. Isso porque a condenação do deputado era apontada pela maioria dos ministros como um importante precedente para conter a disseminação de “ataques” ao sistema eletrônico de votação.
Mas a decisão de Nunes Marques foi criticada nos bastidores pelos ministros não só pelo conteúdo – de reverter uma condenação importante, que serve de precedente contra acusações às urnas –, mas também pela forma.
O ministro não foi sorteado para analisar o caso, mas aceitou um pedido da defesa de Francischini dentro de uma ação mais antiga que discutia um assunto distinto: a possibilidade de a cassação de um deputado levar também à perda de mandato de parlamentares do mesmo partido.
A decisão dele, de submeter a liminar para referendo na Segunda Turma, ajudou a arrefecer o incômodo inicial. A alternativa seria analisar o caso num mandado de segurança, ação à parte e independente apresentada por suplentes de Francischini, para derrubar a liminar – esse julgamento ocorreria de forma virtual, com votos escritos, ao longo de terça (7).
Cármen Lúcia, escolhida como relatora do mandado de segurança impetrado pelo suplente Paulo Bazana (PSD-PR), em 4 de junho, considerou cabível o pedido de derrubada da decisão de Nunes Marques. Bazana (PSD-PR) já havia assumido a cadeira de Francischini na Assembleia Legislativa do Paraná.
Em sua decisão, ela cita a jurisprudência que, em tese, a impediria de aceitar o mandado de segurança e reforça que a regra é consolidada no Supremo, mas faz uma ressalva de que “toda regra comporta exceção”.
A ministra decidiu acolher o argumento do deputado Paulo Bazana, de que Nunes Marques não poderia ter analisado o pedido, uma vez que a defesa de Francischini o apresentou dentro de uma ação que discutia outro assunto. Para Cármen Lúcia, teria havido violação no sistema de distribuição do Supremo, embora tenha sido o próprio presidente STF, Luiz Fux, que colocou o caso sob relatoria do ministro.
O problema é que a admissão de um mandado de segurança contra decisão monocrática de um ministro abriria um precedente que não é bem visto por nenhum integrante do STF: a possibilidade de uma parte contrariada derrubar a decisão de um deles acionando outro.
Apenas dois dias depois, a ministra, para impedir que precedente fosse aberto, manifestou-se remetendo o caso para o plenário virtual, onde todos os 11 ministros do STF votam e inserem sua decisão no sistema eletrônico da Corte.
A solução de levar o caso à Segunda Turma, nesse sentido, apaziguou as relações internas.
Decisão sobre a cassação do deputado foi tomada de forma rápida
O advogado Renor Oliver Filho - que é responsável pela defesa de Allan dos Santos e do Terça Livre, e teve recentemente quatro mandados de segurança e um habeas corpus negados sob a alegação da referida jurisprudência - chama a atenção para a brevidade com que ocorreram tanto a aceitação do mandado de segurança por parte de Cármen Lúcia, bem como sua manifestação e destinação do caso para plenário.
“A decisão da ministra, de receber a ação, ocorreu em tempo recorde, logo após ter sido protocolada, passando por cima de inúmeros casos nos últimos meses, nos quais os ministros diziam que não era possível atacar decisão de outro ministro. Mas, desta vez, reformaram em menos de uma semana a decisão do Nunes Marques. Quer dizer que ele não é ministro?”, questiona Oliver Filho.
Senador questiona conduta de ministros: “decisão arbitrária e tendenciosa”
Em pronunciamento na mesma data em que a Segunda Turma do STF anulou a decisão de Nunes Marques, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) questionou a forma como os ministros do Supremo agiram e considerou “emblemática” a decisão da Corte, em especial pela rapidez com que foi proferida.
Para o senador, a decisão de cassar o mandato de Francischini por conta de sua opinião é uma “afronta ao Estado de Direito e ao devido processo legal”. “Essa sentença arbitrária do TSE, associada aos procedimentos em curso no famigerado inquérito das fake news, demonstra inovações jurídicas que escapam à compreensão de grandes juristas, como o dr. Ives Gandra Martins. [Trata-se de] uma perigosa construção de jurisprudência tendenciosa sobre fake news, com claros sinais de intimidação aos que pensam diferente e ousam denunciar o sistema”, declarou.
Recorde o caso Francischini
Deputado mais votado do Paraná, o delegado Fernando Francischini foi cassado em outubro do ano passado pelo TSE por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação por ter dito, durante a votação em 2018, que algumas urnas estavam adulteradas para impedir que eleitores confirmassem o voto no presidente Jair Bolsonaro. Uma perícia feita pela Justiça Eleitoral demonstrou que não houve fraude, mas problemas de funcionamento.
Por 6 votos contra 1, o TSE considerou que as alegações do deputado se trataram de fake news contra a segurança das urnas eletrônicas e firmou o entendimento de que "apontar fraude na urna eletrônica, por meio da internet, configura abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação". Fachin, Moraes e Luís Roberto Barroso compuseram o corpo de magistrados que votaram contra Francischini.
Desde então, essa decisão passou a ser citada frequentemente por Moraes, que assumirá o comando do TSE em agosto, para advertir que declarações contra as urnas poderão levar à cassação de um novo mandato, em caso de vitória nas eleições deste ano. Esse ultimato é um dos motivos para a forte pressão, na semana passada, vinda de vários ministros, para discutir rapidamente o caso Francischini no plenário da Corte, a fim de ratificar o entendimento adotado pelo TSE e afastar críticas à segurança das urnas eletrônicas.
STF invalidou outra decisão de Nunes Marques
No mesmo dia em que Nunes Marques devolveu o mandato de Francischini, o ministro proferiu outra decisão, que anulou a cassação do deputado federal José Valdevan de Jesus, o Valdevan Noventa (PL-SE). O parlamentar havia sido cassado em março pelo TSE por abuso do poder econômico durante a campanha eleitoral de 2018. Na decisão, o ministro afirmou que a defesa de Noventa não teve a oportunidade de entrar com um recurso contra o julgamento do TSE, pois o acórdão do julgamento ainda não foi publicado, o que teria configurado cerceamento de defesa.
Três dias após invalidar a decisão de Nunes Marques que beneficiava Francischini, a Segunda Turma do Supremo revogou também a decisão do ministro referente a Noventa, impedindo-o de retomar o cargo na Câmara. Fachin, que foi seguido pelos demais ministros, defendeu que o caso deveria ser julgado em plenário por toda a Corte e não pela Segunda Turma – sendo assim, a decisão liminar de Nunes Marques foi suspensa até que o caso seja julgado.
As decisões agravam ainda mais a relação entre a Corte e Jair Bolsonaro (PL), já que tanto Francischini quanto Noventa são aliados do presidente.
Diferentemente do que estava escrito inicialmente nesta matéria, os ministros não feriram a jurisprudência própria da Corte para manter a cassação do deputado Fernando Francischini. Isso ocorreria apenas se um ministro derrubasse, de forma monocrática, a decisão de outro - o que não ocorreu nesse caso, ainda que o primeiro movimento dos ministros tenha sido nesta direção.
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