“TratoLira” é um apelido que está na boca de assessores da Câmara dos Deputados e não é usado para se referir ao jeitinho célere do presidente da Casa em comandar as sessões deliberativas. Arthur Lira (PP-AL) é visto internamente como um “trator” pelo seu autoritarismo à frente do plenário. Lira impressiona o parlamento com estratégias para acelerar a aprovação de pautas de seu interesse, ainda que precise fazer interpretações questionáveis do regimento ou até ignorar dispositivos do documento.
A Câmara dos Deputados, que é palco de decisões importantes para o país, tem aprovado projetos relevantes a toque de caixa durante a gestão de “TratoLira”. Além da ligeireza ao liberar pautas em cima da hora, dificultando a análise das proposições por parte dos parlamentares, propostas tramitam sem passar pelo processo legislativo previsto.
Ultimamente, Propostas de Emendas à Constituição (PECs) têm sido aprovadas sem sequer passarem pela análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que tem a função de avaliar a constitucionalidade de uma proposta antes de encaminhá-la para a tramitação na Casa. Depois de admitidas, as PECs devem seguir para uma comissão especial, antes de votação em plenário, na qual os parlamentares podem apresentar emendas ao texto-base.
Entre as manobras regimentais de Lira, o presidente está acostumado a apensar PECs que acabaram de ser apresentadas em outras que estão avançadas na tramitação, a fim de ganhar tempo. Foi o que aconteceu com a PEC do Furo do Teto (PEC 32/2022) que, ao chegar na Casa, já foi apensada à PEC 24/2019 e passou direto ao plenário, sem passar pela CCJ ou comissão especial. Uma proposição de matéria relevante, com grande impacto orçamentário.
Outro problema é a convocação de sessões deliberativas sem informar a pauta que será discutida. Está cada vez mais comum que as pautas sejam divulgadas durante a sessão que já começou, apenas uma ou duas horas antes de iniciar a votação. O Regimento prevê uma pauta mensal, justamente para dar previsibilidade sobre o que será votado, o que não acontece há anos. Porém, o parlamento estava acostumado a ter a pauta definida na segunda-feira que antecede a sessão deliberativa, o que também não tem mais sido visto. Dessa forma, parlamentares e assessores não sabem o que será votado naquele dia.
Se não conseguem saber o que será votado, não poderão analisar com calma os pareceres de cada proposta, cenário que dificulta a apresentação de emendas ou destaques para a melhoria do texto ou até mesmo para que os deputados possam se organizar para obstruir alguma matéria. Essa tem sido uma reclamação recorrente. Como aconteceu com o projeto de lei que regulamenta as apostas esportivas: o parecer, de 32 páginas, foi aprovado cerca de 24 horas depois de apresentado.
Em grupos de assessores no WhatsApp, fazem sucesso as figurinhas de Lira relacionadas à postura do presidente. Entre as piadas, os assessores responsáveis pelo plenário usam siglas como “RIL”, que significa “Regimento Interno do Lira” e “SLS” para “só Lira sabe”.
Em campanha para a presidência, Lira prometeu prezar pelo regimento
Quem vê a atuação atual do presidente Arthur Lira não vai acreditar que seja o mesmo deputado autor de um discurso caloroso na posse de seu primeiro mandato, em 2021. Lira usou a expressão “a Câmara do Eu” como uma alegoria para descrever o excesso de concentração de poder nas mãos do presidente da Casa. “Isso não é ruim apenas porque distorce o princípio de coletividade e colegialidade de uma Casa legislativa. É ruim, sobretudo em momentos de crise, porque emite um sinal de falta de previsibilidade para o país, para os mercados, para a sociedade e para o mundo”, completou. O presidente também falou sobre a “neutralidade do regimento” e “prezarmos os ritos”, tema usado durante toda a campanha pela presidência.
A incoerência não passa despercebida por deputados como Marcel Van Hattem (Novo-RS), um dos nomes que mais tem combatido a ligeireza de “TratoLira”. “Nós estamos, presidente, em uma sessão extraordinária que teve início às 13 horas e 56 minutos, com pauta divulgada somente às 18 horas e 20 minutos. E até onde é do meu conhecimento, até o presente momento, não temos ainda relatório publicado da matéria que deve ser apreciada na noite de hoje”, falou em plenário, no último dia 23 de maio. Van Hattem se referia ao parecer do projeto do arcabouço fiscal que seria votado naquele dia.
O parlamentar completou dizendo que essa forma de trabalho dificulta que os deputados se dediquem ao entendimento das matérias. “É impossível assim os parlamentares estudarem a matéria, de forma a construir as melhores soluções para o país, sem saber quando haverá sessão, qual a previsão de pauta, quais urgências estarão sobre a mesa”, disse Van Hattem. O presidente respondeu dizendo que a pauta é definida junto aos líderes da Casa e os responsabilizou em relação aos problemas.
Os deputados também reclamam de alterações repentinas das sessões que, algumas vezes, estavam previstas para serem realizadas remotamente e, repentinamente, tornam-se presenciais. Dessa forma, o parlamentar precisa cancelar agendas no estado e comprar passagens de supetão, onerando ainda mais os cofres públicos.
O movimento de atropelo não é de agora, mas vem ganhando força
Já é claro que o presidente da Câmara tem muito poder nas mãos. Basta lembrar de Eduardo Cunha que, quando estava no cargo, deu abertura ao processo (e fez questão de levá-lo até o final) de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). O regimento previu vários instrumentos que ajudam o presidente da Casa a conseguir a atenção dos deputados para propostas de seu interesse, com efeitos inclusive na remuneração dos parlamentares. Em votações nominais, quem não votar nas matérias definidas pelo presidente terá descontos em suas folhas de pagamento – que chegam a 5 mil reais –, se não apresentar uma justificativa à Mesa Diretora.
Há anos, o regimento tem sido atropelado – e cada vez mais atropelado. Por ser uma Casa grande com 513 parlamentares, diferente do Senado Federal que conta com apenas 81, as regras precisam ser claras para evitar confusões. Desde Eduardo Cunha, as interpretações questionáveis foram ganhando espaço, ficando ainda mais fortes na gestão de Rodrigo Maia – a mais longa da história, com quatro anos e meio, por conseguir que desconsiderassem o seu mandato tampão. Apesar das promessas de campanha, Lira abriu ainda mais as margens de decisões com justificativas regimentais duvidosas. Nesse sentindo, não é possível saber para onde isso levará o Poder Legislativo.
A Gazeta do Povo entrou em contato com a assessoria da presidência da Câmara dos Deputados, para ouvir os argumentos de Lira sobre as queixas dos assessores, mas até a publicação desta matéria não obteve respostas.
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