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Em uma recente entrevista Gwendall Poullenec, 40 anos, há dois diretor internacional do Guia Michelin, afirmou que a pandemia veio para mudar até mesmo os rigorosos requisitos da famosa bíblia da gastronomia mundial. "Veremos restaurantes estrelados que irão passar a oferecer os serviços de take-away ou delivery. E nós, como guia, reconheceremos a qualidade dos pratos, seja ele servido no restaurante ou não", relatou o francês ao caderno Cook, do jornal italiano Corriere della Sera.
A mudança alardeada por Gwendall Poullenec já é uma realidade em alguns países e nomes como o do chef René Redzepi, duas estrelas com o seu Noma, em Copenhagen, anunciou que o tradicional hambúrguer fará parte do seu requintado menú. A pergunta que não quer calar é: os restaurantes estrelados irão se render a um cardápio simples? A resposta varia e muito. Mas a grande maioria ainda acredita que a alta gastronomia deva ser preservada. "Ir a um restaurante estrelado faz parte de um ritual. É mais que degustação. É um prazer", comenta Pietro Leemann, chef suíço, que comanda o Joia, único vegetariano na Itália a contar com uma estrela Michelin. "Por trás de um prêmio do gênero, há uma filosofia adotada pelos chefs. Pratos elaborados, ingredientes escolhidos a dedo, muito estudo e até muita reflexão".
A reflexão a qual se refere Leemann virou quase um lema entre os seus colegas. Com as portas fechadas por mais de 3 meses, de 11 de março a 13 de junho, os restaurantes italianos, estrelados e não, tiveram de adotar medidas criativas para resistirem à crise. De acordo com a Fipe (Federação Italiana de Serviços Públicos) no mês de junho, o faturamento dos restaurantes e bares ficou abaixo do esperado, cerca de 50%, e dos proprietários entrevistados, somente 18% estão satisfeitos com os resultados da reabertura.
Alta Gastronomia X Delivery
Crise para uns, oportunidades para outros. O medo de frequentar espaços públicos e evitar aglomerações devido aos riscos de contaminação parecem não assustar o italiano. A prova disso é a adesão a um estilo informal: mesas a céu aberto. O menu vegetariano, leve e saudável de Pietro Leemann agora pode ser degustado também ao ar livre. "A pandemia nos ensinou que comer bem é uma necessidade. Frutas, verduras e legumes são tão saborosos quanto outros alimentos. Nunca se deu tanta atenção aos ingredientes e como são preparados", observa o chef estrelado que durante a quarentena se refugiou em sua casa de campo na Suíça, criou novas receitas e se valeu das mídias sociais para divulgar um pouco da sua culinária saudável.
O recesso da vida agitada dentro das cozinhas foi também frutífero para outros dois chefs italianos. O ítalo-holandês Eugenio Boer, premiado com a sua primeira estrela Michelin, em 2017, no comando do Essenza, fechou o seu badalado Bu:r e se dedicou a cozinhar para a mulher Carlotta. "Pela primeira vez pude parar e viver uma rotina tranquila", conta ele que acabou dando vida a um serviço de delivery para a região metropolitana de Milão. "Minha culinária tem um pouco de tudo. Digo que se contamina até porque vive sempre entre a Holanda e a Itália. Revisitei muitas das receitas e decidi que irei continuar com um cardápio diferenciado para quem não quiser sair de casa".
Boer porém adverte que a alternativa não deve ser vista como uma extensão do que ele oferece no seu restaurante de alta gastronomia. "É preciso deixar bem claro que no Bu:r o cliente tem acesso ao que chamamos de culinária fine dining, única e exclusiva. O que propomos no delivery são pratos mais simples ou seja, os tradicionais da cozinha italiana como macarrão com massa fresca ou a pappa al pomodoro que é feita de pão envelhecido e sobras de molho de tomate", complementa o ítalo-holandês que não teve problemas em instituir as regras de prevenção contra o vírus impostas pelo governo. A capacidade, 20 pessoas, foi mantida já que o restaurante sempre optou por ter poucas mesas, 7. "Em relação ao distanciamento social não houve problemas. O layout foi concebido com vasta distância para manter a privacidade".
Assim como o colega Boer, Enrico Bartolini, não sofreu com a redução de lugares em seu estreladíssimo restaurante localizado dentro do MUDEC, o Museu da Cultura de Milão. O chef, nascido na Toscana, foi o único italiano a ser premiado no final do ano passado pela Michelin com a terceira estrela. Um recorde, fruto de muito trabalho, curiosidade e, é claro, talento. "Respeitar o distanciamento jamais nos preocupou. Nosso ambiente é muito íntimo com apenas 8 mesas bem separadas. Obviamente, nossos garçons e maitre passaram a usar máscaras e luvas para que os clientes se sintam seguros", explica o italiano que contabiliza 8 estrelas, 5 delas por locais abertos por ele próprio.
Em um território povoado por grandes nomes como Carlo Cracco, Andrea Berton e Massimo Bottura, o jovem Enrico se destaca por uma culinária clássica e tradicional com uma visão contemporânea. Nos mais de dois meses de lockdown, ele se refugiou em sua casa. "Há mais de 25 anos, entre escola e trabalho, jamais havia tirado férias tão longas", confessa ele. "O dia-a-dia de um chef começa cedo e termina muito tarde. Sempre na cozinha. Voltei a fazer minhas compras, fiquei mais tempo com meus filhos e passei a preparar almoço e jantar...ou seja, passei a cozinhar para mim".
Reflexões a parte, Enrico Bartolini se mostra confiante com o futuro do seu restaurante. E acredita que os colegas estrelados terão menos dificuldade em contornar a crise. Tudo graças à alta gastronomia. "Nossa filosofia é satisfazer o cliente com criatividade e originalidade. A ida a um restaurante, principalmente premiado, não se resume somente ao que oferece em matéria de culinária. Conta também o serviço e o ambiente. Uma experiência exclusiva", relata o chef que não compartilha da ideia de incluir o sistema de entregas em seu local.