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No dia 30 de novembro, o ChatGPT — a mais conhecida das inteligências artificiais — completa três anos. A versão gratuita já ultrapassou 700 milhões de usuários, e tanto ele quanto seus competidores seguem em rápida expansão. Muito além do uso individual, aplicativos, empresas, indústrias, o agronegócio e o setor de serviços incorporam IA a uma velocidade crescente. Cada segmento da economia está descobrindo, testando e aprimorando maneiras de integrar a tecnologia ao cotidiano profissional.
O momento atual lembra, em muitos aspectos, a revolução industrial. Antes da máquina a vapor, uma série de inovações dispersas se acumulava silenciosamente pela Europa, especialmente no Reino Unido. A invenção da máquina a vapor foi o gatilho que integrou conhecimentos isolados e inaugurou um salto inédito de produtividade, crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico. O padrão de vida britânico aumentou de forma significativa.
É inegável que, olhando para o longo prazo, a revolução tecnológica impulsionada pela IA promete avanços expressivos e um futuro promissor para a humanidade. Contudo, minha preocupação central reside na dicotomia temporal entre essa visão de futuro e o curto prazo. Embora acredite nos benefícios futuros, o desafio está na transição. Nos próximos dez anos, seremos confrontados com a necessidade de ajustes significativos e inevitáveis. O que me inquieta é que essa fase de adaptação, embora necessária para colher os frutos da inteligência artificial, será marcada por profundas transformações que exigirão resiliência e planejamento cuidadoso.
Em menos de três anos, o simples uso da versão gratuita do ChatGPT já reduziu a quase zero a demanda por tradutores e revisores de texto. À medida que novas tecnologias incorporam IA, setores inteiros caminham para transformações tão amplas quanto as vistas há dois séculos.
Imagine uma IA conectada a bases médicas realizando atendimentos virtuais pelo celular: ela coleta sintomas, solicita exames, interpreta resultados e indica tratamentos. Essa tecnologia já existe — e está prestes a transformar completamente o modelo tradicional de consultas médicas. Uma única IA pode substituir o trabalho de milhares de médicos que atuam exclusivamente em consultórios voltados à consulta básica. O atendimento ficará mais barato, mais rápido e mais acessível. Mas o impacto sobre a demanda por profissionais será enorme. E há um agravante: a legislação impede que médicos mudem de área sem anos de residência específica. Se eu fosse estudante de medicina, refletiria profundamente sobre isso. Áreas repetitivas — como análise de exames — já são superadas pela IA. Escolher a residência hoje sem considerar a transformação tecnológica pode significar, em uma década, escolher uma carreira que simplesmente deixou de existir.
À medida que novas tecnologias incorporam IA, setores inteiros caminham para transformações tão amplas quanto as vistas há dois séculos
Para os advogados, o alerta é ainda mais severo. Uma IA conectada às bases jurídicas brasileiras pode elaborar petições iniciais, monitorar prazos, preparar recursos e revisar jurisprudência com velocidade e precisão impossíveis para qualquer ser humano. Escritórios de advocacia sofrerão mudanças drásticas em sua estrutura. Estudantes de Direito devem direcionar sua escolha para campos de atuação que demandem menor grau de repetitividade e maior capacidade criativa, pois é certo que qualquer atividade automatizável será, de fato, automatizada. O mesmo vale para economistas, contadores, administradores e demais profissionais liberais.
No ensino, o impacto será igualmente profundo. Imagine uma IA treinada com aulas de centenas dos melhores professores, capaz não apenas de repetir conteúdo, mas de aplicar técnicas avançadas de didática, adaptar explicações ao nível de cada aluno e produzir materiais personalizados. O ensino a distância (EAD), já consolidado, dará um salto gigantesco quando essas tecnologias forem plenamente integradas. Uma única IA poderá realizar o trabalho de milhares de professores de cursos EAD tradicionais.
De maneira geral, é difícil imaginar que, daqui a dez anos, ainda existirá o número atual de agências bancárias, livrarias ou lojas físicas. O comércio será radicalmente transformado pela inteligência artificial acoplada a sistemas de logística, recomendação e atendimento automatizado. No transporte e na agricultura, drones autônomos já estão operando, ou em fase de testes, em vários países. E é improvável que a aviação comercial mantenha o mesmo número de tripulantes na próxima década.
O ponto central da minha argumentação é que a onda de transformação tecnológica não fará distinção, atingindo tanto as profissões altamente qualificadas quanto aquelas de menor complexidade. Essa universalidade no alcance implica que as alterações no mercado de trabalho serão severas em todas as esferas. É fundamental refletir sobre o efeito dominó dessa reestruturação, pois o impacto subsequente sobre o emprego, a renda e a estabilidade social será significativo. Diante desse cenário iminente de disrupção, é urgente repensarmos e atualizarmos nossos programas educacionais, de formação profissional e de proteção social. Afinal, essas estruturas foram concebidas para sustentar uma realidade que está rapidamente se tornando obsoleta e que será completamente diferente em apenas dez anos.
A revolução tecnológica liderada pela IA é o maior desafio contemporâneo para formuladores de políticas públicas. Infelizmente, o Brasil ainda não despertou para a magnitude dessa transformação. Essa revolução é inevitável e, no longo prazo, benéfica — e, justamente por isso, deve ser estimulada, não combatida. Mas ignorar seus efeitos de curto prazo é condenar milhões de brasileiros entre 20 e 60 anos a um processo traumático de perda de emprego, renda e identidade profissional, sem orientação clara sobre como se adaptar.
A história mostra que toda revolução tecnológica gera prosperidade — mas nunca sem custos. Nosso papel é reduzir esses custos. E o tempo para isso está se esgotando. Diante de tudo o que está por vir, a reflexão mais urgente é: vamos ficar parados e esperar que o pior aconteça — que a crise estoure — para, só então, começarmos a fazer as mudanças que já sabemos que são necessárias hoje?




