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Anderson Godz

Desde 2016 Anderson Godz é investidor, conselheiro de administração e advisor para nova economia, projetos e governança corporativa. Autor de livro, criou uma comunidade de governança com mais de 12 mil pessoas. É conselheiro da Gazeta do Povo.

Quinto poder

Trump x redes sociais: 10 lições sobre o quinto (e digital) poder

12/01/2021 16:53
Por trás das cenas chocantes e mortes ocorridas no Capitólio, na capital norte-americana, no dia 6 de janeiro, um roteiro comum às mobilizações das últimas décadas: Donald Trump usou suas redes sociais para convocar atos que tiveram consequências pesadas. Em ações sem precedentes, as três principais empresas do gênero no mundo bloquearam as contas de Trump. Facebook e Instagram bloquearam o republicano por tempo indeterminado. Já o Twitter foi mais além e o bloqueou de forma permanente.
O que está acontecendo nos Estados Unidos - e no mundo todo, na verdade - são novos capítulos das discussões que temos realizado há mais de três anos na comunidade Gonew.co e que envolvem as novas formas de poder frente aos governos, estados e instituições em suas formas tradicionais. É o que chamamos de “poder digital” ou “quinto poder”. Em nossos estudos, já percebemos ao menos dez tópicos relacionados a esse fenômeno.

1. Crise de autoridade e responsabilidade

Há um descrédito quanto às instituições tradicionais. O crescimento do poder descentralizado pelas redes e, por vezes, pelo anonimato, vem afrontando a importância, a responsabilidade e a tomada de decisão por parte dessas instituições. O posicionamento e as decisões tomadas por aqueles que controlam as redes sociais têm mais poder do que muitas nações.
Tanto que o ocorrido gerou manifestações em defesa de Trump por parte de governos. Angela Merkel, por exemplo, afirmou que os legisladores deveriam definir as regras que regem a liberdade de expressão - e não as empresas privadas de tecnologia. Mas essa pressão não aponta apenas para governos. Esse mesmo efeito já pode ser sentido nas próprias empresas privadas e começa a afetar até mesmo as próprias big techs, como neste caso recente envolvendo o sindicato do Google.

2. Vigilância, falta de transparência e critérios

Quem vigia o vigia? Afinal, todos têm vieses. Dos “proprietários de plataformas”, no conceito de Timms e Heimmans, aos algoritmos elaborados por seres humanos, todos possuem preferências.
Assim, quais foram os critérios utilizados para que os perfis de Trump fossem bloqueados? Não seria o caso de dar mais transparência aos processos e conferir equidade a todas as contas de extremistas? Como o fato do CEO do Twitter, Jack Dorsey, ser notoriamente anti-Trump afetou a decisão do banimento definitivo aplicado somente pelo Twitter?
Meus colegas no Programa C2i - Certificação para Conselheiros de Inovação, provocaram: “who watch the watchers?”, indagou Marco Poli. Já Ricardo Amorim escreveu: “como julgar, em escala global, o que é violência e o que é reação à violência imposta por um sistema totalitário em países de regimes ditatoriais?”.

3. “Armaduras digitais”

No virtual, com ou sem anonimato, as pessoas se excedem. Escrevi sobre isso neste artigo recente. Mas vale acrescentar aqui que o Capitólio escancarou uma outra face: a das pessoas marchando e cometendo crimes instagramáveis para alimentar seus ativos digitais de conteúdo e influência. Não é exagero dizer que os insurgentes são verdadeiros exércitos treinados nas bolhas hiperpolarizadas.

4. Dos micropoderes aos Great Firewalls

Esse poder digital está na nuvem, uma nuvem de moveholders, onde cada participante pode gerar seus próprios levantes derivados, criar novos movimentos dentro do próprio movimento e, aleatoriamente, ultrapassar limites do que se previa inicialmente.
Esses micropoderes, baseados em dados - que, afinal de contas, são considerados o “novo petróleo” -, podem dar origem a grandes poderes. Das lojas de aplicativos da Amazon, Google e Apple, que também entraram no jogo e resolveram suspender o Parler, rede social alternativa que começava a ser utilizada pelos seguidores de Trump, até a China, principal case desse poder digital.
Desde 2003 o país opera o Projeto Escudo Dourado, conhecido popularmente como Great (Grande) Firewall, alusão à Grande Muralha do país. Trata-se de uma combinação entre ações tecnológicas e legislativas por parte do governo para regular a internet na China, bloqueando o acesso a diversos sites estrangeiros, como o Google, entre outras ações. Com cerca de 20% da população mundial, a China possui, portanto, a maior reserva de mercado do mundo em relação a dados. Talvez não haja maior exemplo de poder digital atrelado ao controle que esse.

5. Comandos e controles caóticos

Aqui, quase nada da governança como conhecemos se aplica. Vivi isso na prática e no fogo do movimento #StartupsVsCovid19 quando, depois de 3 milhões de impactos nas redes sociais, encontramos dificuldades de alinhamento. Mas isso é apenas o começo. Projete esses movimentos para daqui um par de anos: vamos mobilizar não só pessoas mas objetos e coisas. Depois do 5G, a conectividade não será mais um problema (como hoje não temos mais os problemas que já tivemos relacionados ao armazenamento ou ao processamento de dados).
Isso oferece possibilidades nunca antes pensadas, não só de guiar pessoas e ideias infladas, mas de coisas, objetos, máquinas e algoritmos artificialmente inteligentes para objetivos não necessariamente nobres. O novo poder prega que um movimento só é um movimento se ele se move sem você. Esse mantra, somado aos poderes tecnológicos, está prestes a nos colocar em paradoxos e situações que antes pareciam inimagináveis.

6. Ciclos de poder mais curtos

Tenho dito que os ciclos empresariais e profissionais estão mais curtos. A passagem meteórica e truculenta de Trump pelo comando dos EUA é um marco de que os ciclos de poder também estão mais curtos. As mesmas ferramentas que o levaram ao poder - no caso de Trump, as redes sociais, em especial o Twitter - fizeram, em menor tempo do que as correntes políticas historicamente percorriam, deixá-lo de ser vitrine para ser vidraça.

7. Diferentes limites morais e éticos

Um consenso ético-moral sobre situações como as que temos testemunhado recentemente parece estar longe de ser alcançado. Foi justamente por isso que criamos a Gonew.co: por acreditarmos que não será por meio de regulação ou do mero avanço tecnológico, isolados, que encontraremos o equilíbrio e o bom senso, mas sim por meio de uma sociedade preparada e capacitada para tomar melhores decisões digitais.

8. Restrição da livre mobilização e autonomia

Dias antes do episódio do Capitólio, lancei em meu perfil no LinkedIn uma pesquisa exatamente relacionada a esse assunto. Sabemos que a democracia e as novas formas de poder se passam no ambiente digital, mas qual seria a maior virtude da democracia nesse ambiente hiperconectado?
As opções apresentadas foram:
  • 1) disputar o poder/atenção;
  • 2) publicar qualquer opinião;
  • 3) judicializar atos;
  • 4) a livre mobilização e autonomia.
A quarta opção conquistou a maioria esmagadora das respostas, com 89%. A primeira (disputar o poder/atenção), teve 2%, assim como a terceira (judicializar atos). A opção “publicar qualquer opinião” recebeu 7% dos votos.
Ocorre que independente de certas ou erradas, as ações das redes sociais neste episódio geram um marco onde elas assumem o ônus da moderação. E isso, convenhamos, não é exatamente livre mobilização e a autonomia, muito diferente das expectativas dos respondentes na pesquisa.

9. Ideologias não são imunes a cancelamentos

O poder digital expande, mas parece também retirar liberdades. O ministro da economia da França, Bruno Le Maire, chamou o caso envolvendo Trump de “oligarquia digital”. Mas nessa oligarquia as pessoas se movem de um cancelamento para outro sem muitas reservas.
Então, antes de atacarmos as plataformas, há o prisma do indivíduo expresso no “efeito de rede”. Filiamo-nos a muito mais causas e nos conectamos a qualquer novo movimento (ou cancelamento) que nos pareça levemente interessante. Na maioria das vezes, sem uma análise mais profunda sobre a causa; vemo-nos envolvidos simplesmente porque somos sensibilizados por alguém próximo. E normalmente com o fígado... É o liver get liver?

10. Eclosão do quinto poder

Por fim, todas essas lições indicam a necessidade de uma releitura da afirmação de que as mídias são o quarto poder e que isso estava sendo alterado pelas mídias sociais. Todas as emissoras de televisão, veículos impressos e, mais tarde, veículos digitais, de certa forma, já fazem há décadas o que as redes sociais vêm fazendo - embora elas não estivessem admitindo.
Aliás, nas recentes eleições norte-americanas, vários canais de TV interromperam a transmissão de um pronunciamento de Trump. A imprensa tem seus vieses, a tal ponto que mesmo no Brasil já estamos nos habituando a acessar sites de correntes diversas para entender o contraditório e ouvir diferentes vozes.
Se a imprensa e a mídia são o quarto poder (os anteriores são os tradicionais executivo, legislativo e judiciário), o poder digital, que tem nas redes sociais sua principal forma de representação, é o quinto poder. Ele não substitui o quarto poder, pois em um mundo tão complexo e de poder de comunicação distribuído, há uma sobrevida de fontes confiáveis. Assim, o quinto poder convive com os demais, mas o problema é que ele parece ser mais forte e indomável do que os outros. E mais: está entranhado em todos os outros.

Há saída?

Essas são as 10 percepções que tivemos até o momento, mas os apontamentos são certamente imperfeitos e incompletos. Você pode fazer parte deste estudo com suas habilidades e percepções neste documento aberto pela Gonew. Insira seus comentários sobre os tópicos abordados neste texto. Una suas habilidades para construirmos saberes de forma coletiva. Essa talvez seja uma saída em uma era permeada pelas contradições de conectar o mundo. #SpeedAndSomeControl.

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