"Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima."
Chico Buarque, "Construção"
Depois de intermináveis 44 horas, um Bolsonaro severo e taciturno se dirigiu à nação que formalmente ainda governa. Em pouco mais de dois minutos, foi meticulosamente ambíguo, lendo um discurso construído em cada detalhe por algum "master of puppets" que entende tudo do riscado. Cada palavra do pronunciamento importa e vale alguma atenção na exegese.
Bolsonaro começa com um agradecimento aos seus 58 milhões de eleitores, o que não deixa de ser um reconhecimento do resultado do pleito fornecido pelas urnas eletrônicas. Na sequência, emenda uma frase que é um primor de dissimulação: "os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral".
Como "indignação" e "sentimento de injustiça" são emoções, ele não legitima as teses dos manifestantes, apenas reconhece seu estado de espírito, fruto de problemas reais ou imaginários (no caso, imaginários). Ele se conecta com as emoções dos seus apoiadores mais uma vez sem concordar explicitamente com suas bandeiras. Jogada de mestre.
Em pleno feriado de Finados, o país está fervilhando em protestos, alguns pacíficos, ecoando o niilismo político de junho de 2013, e outros com "métodos de esquerda", nas palavras do próprio Bolsonaro
No trecho seguinte, aplaude "manifestações pacíficas" mas condena a arruaça com o pior xingamento para um bolsonarista: esquerdista. Foi o trecho mais claro do pronunciamento, em que claramente condenou qualquer tipo de ação que prejudique a população. Não há como discordar e este, de uma perspectiva moral, foi o ponto alto da sua fala.
Logo depois, diz que o que entende por direita "surgiu de verdade em nosso país", justificando com a grande votação obtida por seus candidatos. Verdade inapelável, mas ele não diz a verdade quando define direita com o slogan integralista "Deus, Pátria e Família". A direita não é isso, muito menos o conjunto de seus eleitores antipetistas, e a tentativa de se apropriar de metade do país não deve prosperar.
O espólio político do atual governo já está sendo ferozmente disputado, o que tem tudo para se acirrar nos próximos meses. Bolsonaro tem toda condição de liderar uma franja radical do eleitorado, mas esse segmento não passa de 10 a 15% da população, se tanto. Os outros eleitores antipetistas não se encaixam no perfil "PSTU de sinal trocado". Esse eleitorado, que o natimorto PTB de Roberto Jefferson flertou, é o que não deu vacinas para os filhos, acredita que a Rússia é conservadora e que seu líder foi vítima do "algoritmo do TSE".
"Mesmo enfrentando todo o sistema, superamos uma pandemia e as consequências de uma guerra", repetiu um Bolsonaro que sabe que será eternamente cobrado pelas suas escolhas na maior crise sanitária da história do país. Mesmo num discurso curto como o de ontem, ele nunca deixaria de, mais uma vez, tentar se justificar. Há quem acredite que um político do centrão, que governou com o centrão, que entregou o orçamento da União para o grupo mais fisiológico da política brasileira, era "contra o sistema".
Por último, diz que continuará respeitando as leis "como presidente" e "como cidadão", o que não é mais que sua obrigação mas, nos tempos atuais, não deixa de ser um alívio. Ao final, bate novamente na tecla de que seu governo, insuficientemente investigado para dizer o mínimo, é "honesto". O fim dos sigilos centenários, que deverá ser promulgado no início do ano que vem, pode representar o desafio final desta narrativa.
Enquanto escrevo este artigo, em pleno feriado de Finados, o país está fervilhando em protestos, alguns pacíficos, ecoando o niilismo político de junho de 2013, e outros com "métodos de esquerda", nas palavras do próprio Bolsonaro. As estradas começam a ser desbloqueadas e temos motivos para acreditar que, em breve, voltaremos à normalidade.
Há uma direita que veio para ficar. Existe um sentimento antipetista, sempre subestimado, que está mais vivo do que nunca. Mesmo o bolsonarismo mais radical tem representatividade e foi autorizado nas urnas. Encostado num cargo oferecido pelo PL e pouco afeito ao trabalho duro, é possível que o futuro ex-presidente vá perdendo seu poder de atração, mas as ideias que ajudou a legitimar estão apenas começando a mostrar os dentes. E é delas que devemos nos ocupar a partir de agora.
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