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O presidente Lula vai fazer um ato pela democracia neste 8 de janeiro, no Palácio do Planalto. Dois dias depois, a embaixadora que representa o chefe de Estado brasileiro vai dar seu testemunho à posse de Nicolás Maduro em Caracas. Todo mundo sabe que Maduro perdeu a eleição. Mas vai tomar posse porque decidiu que não perdeu. Mandou parar a contagem quando já haviam sido apurados 83,5% dos votos e Maduro tinha 30%, enquanto o opositor, embaixador Edmundo González, tinha 67%. A oposição tinha fiscais em todas as seções, que iam registrando as atas da apuração. O resultado desfavorável a Maduro foi atestado pelo Carter Center, insuspeito porque foi quem referendou a aprovação de Hugo Chavez no referendo de 2004.
Para reconhecer o resultado de 51,2% alegado pela contagem oficial, Lula pediu as atas, que nunca foram apresentadas, o que confirma o resultado aceito pelo Carter Center, ONU e União Europeia, entre outros. A associação dos países latino-americanos e caribenhos promoveu um acordo prévio em Barbados, assinado pela Venezuela, se comprometendo com eleições limpas. O Itamaraty chegou a manifestar que Maduro não cumpria o acordo. Celso Amorim e Lula foram xingados por prepostos de Maduro. E ainda assim o Brasil, que festeja a democracia num dia, 48 horas depois participa de uma posse ilegal, fingindo nada saber sobre a eleição venezuelana.
O vencedor, Edmundo González, foi recebido em triunfo na Casa Rosada e na Praça de Maio, em Buenos Aires; depois, pelo presidente do Uruguai; em seguida pelo presidente Joe Biden, em Washington. O presidente dos Estados Unidos se refere a González como “presidente eleito da Venezuela”. Pelo Brasil, passou ao largo. Deve ter sondado e soube que não seria recebido por Lula. Oportunidade perdida pelo governo brasileiro, para exigir democracia na vizinhança e confirmar convicções democráticas.
A propósito, se o ato deste 8 de janeiro será pela democracia, deverá ser também pelo estrito cumprimento da Constituição. Afinal, as autoridades convidadas juraram cumprir e defender a Lei Maior. É a Constituição que estabelece os fundamentos do devido processo legal, o juiz natural, o amplo direito de defesa; é a Constituição que veda todo e qualquer tipo de censura, que garante a livre manifestação do pensamento, sem anonimato; que garante a todos o acesso à informação, a livre locomoção e o direito de reunião sem armas; que torna deputados e senadores invioláveis por quaisquer palavras; que estabelece a competência privativa do presidente da República de conceder indulto, e a competência privativa do Ministério Público na ação penal pública. Seria a grande oportunidade, neste 8 de janeiro, de exigir o “retorno aos quadros constitucionais vigentes” – para repetir a palavra de ordem que resolveu a crise institucional de 1955, com a posse de JK.
Parece que a oportunidade será perdida. A intenção é fazer um evento de propaganda política – e não agir com sinceridade pelos princípios democráticos que os constituintes de 88 inscreveram nas cláusulas pétreas da Lei Maior, que já foram relativizadas. Aí a democracia também fica tão relativa quanto a venezuelana, a que se referiu Lula. Se a Constituição deixa de ser a dura lex, tudo mais é insegurança jurídica, vale dizer insegurança social e pessoal. Democracia não é um rótulo de face. Ela é o próprio conteúdo, o cerne da vida de uma nação. Uma democracia não pode ter censura, arbítrio. Democracia é liberdade de expressão, devido processo legal, segurança jurídica. É quando a Constituição fica acima de todos. E ninguém acima dela.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos