Um dos aprendizados do século XX, se não o principal, se traduz numa espécie de fé na sociedade. A sabedoria está difusa por todo o tecido social; e, em vez de delegarmos a um gênio da economia a determinação do preço do ovo, mais vale confiar no bom-senso do analfabeto que dirige uma kombi velha cheia de ovos. Aquilo que vale para a economia, porém, parece bem distante da estética.
Viralizou nas redes sociais o gracioso e arejado casarão paulistano onde funcionava um bar tradicional, que foi “reformado”. A reforma consistiu em transformá-lo num caixote cinzento coberto de azulejos, com o janelão principal transformado em parede e os demais convertidos em quadradinhos miúdos. Diante disso, ouvia-se a pergunta: “Mas como esse casarão não era tombado?” Aos meus botões, eu perguntava o que vai na cabeça de uma pessoa que não só achou uma boa ideia a transformação como gastou dinheiro com aquilo. Onde vive? O que come?
Que tombar ajuda, ajuda
Depois de ver as escabrosas imagens do ex-casarão, saio com um sorriso de orelha a orelha. A caminho da padaria, passo por uma porção de casinhas e casarões para comprar pão. A própria padaria fica num casarão no estilo do que foi destruído em São Paulo: com pé direito altíssimo e mais um andar em cima. Desde o Brasil colonial, era costume dos comerciantes morar em cima da loja. Além disso, descobri nesta cidade (Cachoeira) que casarões podem renascer das cinzas. Aquilo que era ruína, ao ser comprado, logo passa por uma reforma que o reintegra à paisagem.
Seriam os cachoeiranos especialmente dotados de senso estético e índole de preservação? Talvez até sejam, mas a razão de esta cidade ser assim, bem preservada, é ser toda ela tombada. Os moradores têm uma relação de amor e ódio com o “Patrimônio” (que é como chamam o IPHAN). Quem ouvir as queixas sem saber do que se trata achará que esse tal de Patrimônio é um senhor bipolar, que cada hora diz uma coisa e volta e meia dá uma de maluco. Por outro lado, a comparação com as vizinhas Santo Amaro e São Félix faz os nativos se gabarem do tombamento da cidade. Às vezes, eles reclamam que o Patrimônio é leniente demais ao permitir tal coisa. Ouvi o mesmo lamento de um fotógrafo e de um eletricista: a substituição do calçamento de cabeça-de-nego pelo de paralelepípedos.
Cabeça-de-nego é o calçamento do Pelourinho, composto por pedras desiguais de formatos aleatórios, com o tamanho médio menor que uma mão humana. Mas foi o eletricista, bairrista empedernido, que me fez enfim compreender a sensação de aridez em Santo Amaro: asfalto. “Em Santo Amaro eles são evoluídos, botaram asfalto”, diz com desdém. “Aqui a cidade é conservadora”. Que um eletricista e um fotógrafo tenham uma estética da mesma índole mostra que há muito fatores além da educação formal em jogo.
De fato, as cidades vizinhas não-tombadas são bem menos bonitas do que a cidade tombada. E mais: o fato de a cidade ser tombada implica que os casarões são mais bem conservados do que os de Salvador, que costumam tombar no chão depois de serem tombados. Como o local fica livre para qualquer construção normal depois da queda do imóvel, há incentivo para deixá-lo cair. Quando a cidade é tombada, não se pode construir nada que a descaracterize, então é factível comprar um imóvel em ruínas e restaurá-lo.
De fato, o tombamento significa uma considerável redução de liberdade. O que, no frigir dos ovos, significa que o aumento de liberdade tem, na arquitetura, um efeito oposto ao da economia.
A arquitetura e economia são de naturezas opostas: uma é composta por partes duradouras e estáveis, outra é composta por partes efêmeras e voláteis. Se o analfabeto na kombi resolvesse vender trinta ovos por mil reais, ou por cinquenta centavos, seu negócio desapareceria num pulo e seus concorrentes manteriam a sua cidade bem abastecida de ovos. Todo agente, no mercado, pode desaparecer a qualquer momento; sua existência é ainda mais efêmera do que a vida humana.
Por outro lado, uma edificação é uma edificação e estará lá de pé por gerações humanas, a menos que alguém arque com os custos de derrubá-la. Feiura não causa queda de prédio, beleza não o torna mais resistente. A beleza do casarão era indiferente à opinião e aos olhos dos vizinhos, assim como é agora a sua feiura. O bem e o mal, em arquitetura, são muito mais duradouros.
O modernismo é antiutilitário
Naturalmente, o IPHAN é mais novo do que Cachoeira, e é de se presumir que, se tivesse sido criado em 2020, não haveria muito mais beleza na cidade do que em Santo Amaro. Cachoeira foi tombada em 1971, e é de se presumir que Santo Amaro fosse quase tão bonita quanto, à época. (Ter um rio grande e piscoso embeleza a paisagem, coisa que Santo Amaro não tem). Logo, o processo de enfeiamento surgiu na região depois dessa data.
Todo mundo que não tem diploma de arquitetura acha o modernismo feio. Até este fim de semana, eu achava que era efeito de uma mudança dos cursos de arquitetura. Mas assisti a Elomar falando de arquitetura e ele acha Brasília uma coisa linda, embora a reprove ao máximo. Elomar é um músico que cria bodes no sertão, tem mais de oitenta anos, é formado em arquitetura pela UFBa e exerceu a profissão. Segundo conta, a arquitetura ensinada então era vitruviana, pautada por firmitas, utilitas e venusta, ou seja, a parte da engenharia (firmeza), a utilidade ou conforto, e, por último, a beleza. Seus professores criticavam em uníssono Brasília por violar esse princípio, sacrificando a utilitas à venusta. Brasília foi muito custosa, esbanjou muito dinheiro e demandou material de construção enviado de avião. Aquela imensidão de gramados verdes é bela – mas sem funcionalidade alguma. Se ele morasse lá, levava os bodes para o gramado.
Como eu não sou arquiteta, eu acho aquelas parafernálias de concreto, aço e vidro feias. Mas algo que nunca tinha me ocorrido é que elas são supérfluas e, a despeito de o modernista jurar que a forma está sempre pautada pela função, o que vemos é o contrário: Lúcio Costa e Niemeyer fizeram um croqui simbólico da atividade política, em que uma cumbuca virada para cima (a Câmara) recebia as demandas do povo e outra, voltada para baixo (o Senado), as retinha para ponderar. Uma vez feito esse croqui idealista, o engenheiro que desses seus pulos para fazer algo que ficasse de pé. E a comodidade? Duvido que algum arquiteto queira morar ou trabalhar num prédio sem janela, e agora fiquei curiosa de pesquisar como aquele negócio era ventilado nos anos 1950.
Repetição irrefletida
Como os prédios de hoje não são todos projetados por figurões da arquitetura, nem são eles que fazem as reformas desastradas, suponhamos então que a arquitetura moderna deseducou a sociedade ao fazê-la achar que prédio se constrói ou reforma segundo a moda, sem se aventar mais qualquer coisa relativa ao conforto.
O exemplo mais evidente disso, pra mim, é a moda de rebaixar teto. Em algum lugar frio da Europa, arquitetos acharam que teto baixo é bonito. Então os arquitetos frívolos (e as madames igualmente frívolas que os contratam) resolveram sair rebaixando teto em cidades tropicais brasileiras. Enquanto isso, os prédios do Brasil colonial ou imperial não poupam material para fazer um teto bem lá no alto, porque antigamente era bem óbvio para todos que teto alto significa menos calor.
Na mesma UFBa em que Elomar estudou, prédios da década de 1970, feitos por arquitetos já modernistas, são bastante confortáveis e arejados (embora feios). Usavam e abusavam de cobogós, uma invenção pernambucana de cerca de 100 anos que concilia sombra e ventilação. Se você abrir uma janela para ventilar, o sol entrará para cozinhar. Se você tapar a parede, ela ficará sombreada, mas sem vento. O cobogó é um tijolo vazado que permite a entrada de ar, quebra a luz e, em tempos de alta criminalidade, tem a vantagem extra de não poder ser arrombado.
Pois bem: estudei em prédios com cobogó e dei aula em prédios com vidro. Por alguma razão, os arquitetos decidiram que cobogó era demodé e vidro era o máximo, então, nas reformas trocaram cobogós por placas de vidro e basculantes. Uma sala ficou inutilizável num período da manhã, porque o sol ia direto na minha cara. Fui chorar as pitangas com o vigia, que também tinha seus motivos para lastimar: agora o basculante é fonte de preocupação, porque dá para o mato e eles temem que um ladrão entre para roubar o projetor.
Essas coisas que fazem os prédios mais quentes são remediadas com aparelhos de ar-condicionado. Criar uma caixinha claustrofóbica de concreto pode ser, em áreas frias da Europa, uma solução econômica para pobres. Gasta-se pouco com material e ocupa-se pouco espaço. Se alguém pode ser feliz num ambiente assim, são outros quinhentos. Mas é de admirar que as classes média e alta brasileiras comprem o mesmo tipo de habitação e ainda tomem o ar-condicionado como índice de chiqueza, em vez de incompetência arquitetônica.
No fim das contas, o que importa é vender prédio. Comprar um apartamento pode ser como cair num golpe. Por alguma razão, as pessoas deram pra achar que a “área comum” (piscina e academia) valoriza o prédio, mesmo que não usem nunca. Como isso encarece o condomínio, as construtoras fazem um verdadeiro pombal humano de concreto (com o espaço planejado do ar-condicionado) para maximizar os pagantes de condomínio e diminuir o seu valor. O comprador, imprudente, termina gastando com ar-condicionado o tempo inteiro, deprimido dentro de um caixote, com umas áreas de lazer xexelentas que ele agora sequer pode visitar porque o síndico fechou na pandemia.
Prédio é duradouro. Como ninguém vai derrubar um troço desse, resta anunciar e torcer para que algum comprador caia no golpe e tome a sua sina. À medida que construções golpistas vão dando certo, as construtoras vão repetindo e as cidades vão ficando cada vez mais áridas e feias.
Deixe sua opinião