Ouça este conteúdo
Com a aparente iminência da prisão política de Bolsonaro, muita gente, entre detratores e apoiadores do ex-presidente, tem pensado que a sua tendência é repetir Lula: ir à cadeia e, após reviravoltas jurídicas, voltar à presidência nos braços do povo. Deixando de lado o aspecto criminal, a questão da suposta “ABIN paralela” desencadearia uma espécie de Lava Jato contra Bolsonaro; ou seja, a grande mídia atuaria em conjunto com o Judiciário, o MP e a PF para pôr na cadeia um líder popular com chances reais de ganhar a eleição presidencial.
Eu concordo em parte. De fato, parece-me que a PF está à procura de pelo em ovo para botar Bolsonaro na cadeia; e, se não encontrar nem um cabelinhozinho, a grande mídia terá quem apareça com um de manhã, nem que seja para desmentir de noite (vide Daniela Lima com a história do computador da ABIN na mão de Carlos Bolsonaro). Tenho minhas dúvidas, porém, se se trata de uma investida dirigida somente à família Bolsonaro; creio tratar-se de uma investida contra a ABIN. Assim como a Lava Jato culminou não só na derrota (temporária) do petismo, mas na ascensão do STF ao topo do poder nacional (impedindo Dilma de nomear ministro, por exemplo), a celeuma da suposta “ABIN paralela” pode culminar na anulação dessa agência tradicionalmente ligada a militares e na sua substituição pela PF, que é very democratic.
Lula até voltou, mas o STF ficou. Há quem prefira enfatizar a volta de Lula; eu, não. O poder de Lula 1 e de Lula 2 é incomparavelmente maior do que o poder de Lula 3; não porque Lula mudou, mas porque a chefia do Poder Executivo diminuiu, independentemente de quem seja o chefe. É provável que o próximo chefe do Executivo (quem quer que seja ele ou ela) tenha de lidar com um Supremo Todo-Poderoso dando ordens a uma PF tão sinistra quanto o FBI, cheia dos programas de espionagem importados.
Mas Lula voltou, e é sobre isso que a maioria das pessoas joga os holofotes – inclusive os apoiadores de Bolsonaro, que se enchem de esperanças de o seu político predileto fazer o mesmo. E é dessa parte que discordo. Lula e Bolsonaro são políticos bem diferentes de um ponto de vista institucional.
O poder de Lula 1 e de Lula 2 é incomparavelmente maior do que o poder de Lula 3; não porque Lula mudou, mas porque a chefia do Poder Executivo diminuiu
Para começo de conversa, Lula tem um partido. Ele participou da criação do PT, que existe formalmente desde 1982, e nunca mudou de partido. O PT nunca foi um partido sem dissidência interna, e há uma porção de partidos que surgiram (e existem até hoje) de dissidências internas do PT após romperem com o petismo. O PT sempre se uniu em torno da figura de Lula; os incomodados se mudaram. Hoje, é verdade, o PT tem um problema para renovar os quadros. Haddad se parece mais com um tucano do que com um petista e seu charme uspiano só encanta a Faria Lima. Não comove as combalidas bases do PT, nem chega aos pés de Lula numa eleição federal majoritária.
Bolsonaro não tem partido, e não tem partido porque não quer. Com certeza, ao longo de sua carreira parlamentar, teria sido difícil criar um partido. No entanto, ao se consolidar como um líder de massas popular (mais popular que Lula, diga-se), seria-lhe-ia a coisa mais fácil do mundo coletar assinaturas para criar um partido. Em 2019, tentou-se fazer o óbvio e criar o partido Aliança Pelo Brasil. Eu achei que Bolsonaro tinha alguma proposta muito boa dos seus aliados para dispensar a criação de um partido. Qual não foi, então, a minha decepção ao ler a matéria “Elogios do presidente do PL a Lula reacendem discussão sobre novo partido de direita”, desta Gazeta, onde aprendemos simplesmente que os bolsonaristas não tiveram competência para coletar 492 mil assinaturas, quando tanto se gabavam da audiência de lives: “Em 2019, os responsáveis por recolher as assinaturas foram lentos em coordenar a distribuição das fichas. Com o início da pandemia da Covid-19, a demora em obter as assinaturas se agravou [...]. O processo de coleta de assinaturas [...] foi marcado por conflitos e desgaste entre os principais responsáveis, além da própria desordem interna – o que inclui, por exemplo, falta de pessoal, quantidade insuficiente de fichas impressas e a ausência de uma conta bancária com recursos financeiros centralizados para a criação do partido.” O bolsonarismo, em suma, é um galinheiro. Todo o mundo quer fazer live e lacrar na internet, mas ninguém quer trabalhar duro.
Olavo de Carvalho costumava alertar para a necessidade de operar uma espécie de contrarrevolução cultural antimarxista e de “ocupar espaços” nas instituições. Como seria essa contrarrevolução? Por meio da arte? Ora, o único artista sério olavete que conheço é o cineasta Josias Teófilo, que não pode fazer um tuíte ou texto em defesa da liberalíssima Lei Rouanet sem que apareça uma turba virtual acusando-o de querer mamar nas tetas do Estado ou de não ter "espírito empreendedor" (leia-se: por não viver mendigando pix). A turba não está disposta a ouvir nenhuma explicação sobre os custos de uma orquestra; e, no que depender deles, a batalha cultural será ganha por meio ou de um milionário que banque todo o mundo como mecenas, ou de artistas de baixo orçamento como o finado MC Reaça. Olavo disse que “por trás de todo liberal há um ** aberto implorando por uma **** comunista”; no entanto, para a maioria daqueles que reconhecem a sua autoridade intelectual, precisa liberalizar mais ainda, porque até a Rouanet é Estado demais.
O que sobra, no âmbito da cultura? Não vemos projetos olavetes ou direitistas de longo prazo voltados a criar, digamos, violoncelistas ou pintores. Tudo o que vemos no âmbito artístico da chamada “alta cultura” é… venda de "curso" e mendicância de pix.
O bolsonarismo, em suma, é um galinheiro. Todo o mundo quer fazer live e lacrar na internet, mas ninguém quer trabalhar duro
Fora do âmbito artístico está a única coisa de longo ou médio prazo que vingou: as editoras voltadas para as humanidades. Creio, porém, que ninguém se atreverá a atribuir a existência do petismo a editoras de esquerda. Ainda assim, mesmo que se aponte para a importância delas, a própria comparação entre as antigas editoras de esquerda e as novas editoras de direita mostrará que as de direita publicam, comparativamente, muita tradução e pouca obra de quadros locais. Quando publicam, é livrinho de influencer, como aquele selo "O Mínimo", e não de alguém com sólidas atividades intelectuais.
O próprio Olavo, que é “o” autor da nova direita brasileira, é um crítico cultural, sem propostas concretas para um modelo social a ser implementado. Olavo sabia apontar muito bem o que deveria ser destruído na sociedade, mas não o que deve ser construído no espaço público. Por isso, não é de admirar que uma grande parcela daqueles que reconhecem Olavo como autoridade intelectual se limitem a xingar muito nas redes sociais, às vezes (quando Xandão deixa) conseguindo viver de monetização de Youtube.
Qual seria o outro veículo para influenciar a cultura? Prestar concursos e entrar, de preferência, numa universidade? Não, porque o que vemos é uma demonização do servidor público e do Estado, quando não da formação universitária em si mesma (um monte de gente me xinga em rede social por eu ter um doutorado). Se não se pode ser servidor público (e há dúvidas de que essa gente tão afobada consiga sentar e estudar para passar num concurso), o jeito legítimo de ir para o Estado, ao que parece, é ser político. Assim, já que o trajeto mais comum do neodireitista brasileiro é virar influencer para vender curso, o caminho pensado por mais de uma corrente da nova direita foi juntar as coisas e oferecer curso para aspirantes a deputags (i. e., o deputado que se elege pelas redes sociais e fica só levantando hashtag durante o mandato).
A live de Bolsonaro em Angra dos Reis com os filhos teve por finalidade não anunciar um plano político, não discutir os rumos do PL, mas sim o curso dado por Carlos e Eduardo Bolsonaro que pretende ensinar a “ser eleito em 2024, mesmo sem recursos financeiros”; “atingir sucesso nas redes socais e impactar pessoas”; “trabalhar nos bastidores”; “ser uma liderança local e influenciar pessoas”; “aprender a desfazer as mentiras da esquerda”; “abrir os olhos das pessoas a sua volta”, tudo isso por quase 300 mangos divididos em até doze vezes sem juros. Os curiosos podem clicar em https://acaoconservadora.com.br/ e ver com os próprios olhos.
Isto foi no começo desta semana. No final da semana passada, em sua coluna aqui na Gazeta, o deputado Nikolas Ferreira tinha acabado de anunciar um curso grátis, a ser lançado neste dia 31, intitulado “Operação Limpeza”, no qual ensinará outros direitistas a se elegerem usando as redes sociais. Uma coisa que me chamou a atenção no texto foi a argumentação que visava a explicar que a sua iniciativa era abnegada: “Se tenho a capacidade de repassar aquilo que sei para os outros, mesmo que isso ajude a impulsionar alguém que futuramente venha a ocupar a minha cadeira, que assim seja. Não sou daqueles que querem ver os outros crescerem só até chegar ao limite em que não me ultrapassem em algum quesito. Quanto mais pessoas boas, comprometidas e alcançando altos patamares, melhor. Não deve haver espaço para ego inflado, ainda mais em tempos onde a perseguição avança a passos cada vez mais largos.” Concordo com o conteúdo da fala, mas ela é muito estranha para um político por causa da lógica concorrencial. Formar quadros não significa dar aos aliados a mesma capacidade individual de se eleger que você; formar quadros inclui ter uma estrutura partidária organizada que irá definir quem se candidata a quê e onde. Por que não recrutar jovens para o partido e dar a eles as tais aulas?
A coisa mais parecida com um partido que emergiu da nova direita é o MBL, que agora, no décimo ano de sua existência, finalmente se organiza para criar um partido. Eles também têm, desde 2021, uma plataforma que vende cursos e promete ensinar a virar político, a Academia MBL. Em seu primeiro ano, a inscrição custava mais de mil reais; assim, é de se perguntar se o propósito do grupo é formar quadros ou ganhar dinheiro. Por aí entendemos também por que é que o MBL tem tanta racha: os jovens entram acreditando que vão virar assessores bem-remunerados, não conseguem ganhos financeiros (com a Academia MBL, começam no prejuízo) e depois saem jogando os podres do grupo no ventilador (como o da suposta armação para o Pe. Júlio Lancellotti).
À época da criação do curso, o MBL já tinha traído o bolsonarismo e enfrentava uma crise de popularidade. Para se ter uma ideia, em 2018, Kim Kataguiri se elegeu deputado federal com 465 mil votos, e em 2022 foi reeleito com a votação de 295 mil. Perdeu mais de um terço do seu eleitorado.
Talvez seja o caso de supormos que algo amiúde dito dos coaches (a saber: depois de fracassarem na vida, vão dar aulas ensinando a dar certo na vida) se aplique também aos políticos. Porque petista se elege e não vende curso ensinando.
A Lava Jato pegou um ambicioso esquema do PT para capturar o poder e jamais entregá-lo. Bolsonaro jamais teve um plano assim. Para ele, ficar só pedindo pix e gastando com harmonização facial está bom.
VEJA TAMBÉM:
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima