Eu sei e você sabe que a China não está nem aí para os direitos humanos. Só não sabe do trabalho escravo quem vive numa gruta. Ou quem vive assistindo a canais progressistas. A questão dos uigures também é razoavelmente conhecida. Menos conhecida do grande público, porém já suficientemente sabida por gente interessada, é a conduta da China no que concerne a mulheres e negros: ela persegue feministas e é abertamente racista contra negros, inclusive editando imagens de Hollywood para apagá-los. Durante o surto de coronavírus, os negros foram tratados pelas autoridades chinesas como gente pestilenta e infecciosa. Foram expulsos das casas e hotéis, proibidos de entrar em locais e tiveram que dormir na rua.
Se eu sei e você sabe, imagine os executivos das grandes corporações. Assim, não é possível acreditarmos que as mesmas empresas que transformam lacração em política.
Essas empresas são muitas, e é fácil o brasileiro a reconhecer por aqui. Vide o recente caso do Burger King. No mundo anglófono, usa-se a expressão “woke capitalism” para se referir a esse fenômeno do mundo corporativo. Proponho como tradução “capitalismo lacrador”, uma vez que lacrador já é um termo popular e significa em português a mesmíssima coisa que “woke” em inglês.
Mas voltando: se eu sei e você sabe que a China está longe de aderir à ideologia da lacração, é óbvio e ululante que todos os figurões do capitalismo lacrador sabem também. Logo, não é possível que sejam honestos em sua defesa de valores.
Quem lacra lucra?
Boicote é, das duas, uma: ou voltado contra bens supérfluos, ou praticado por gente que nada em dinheiro. Se o Burger King faz uma propaganda com crianças soletrando a sigla “LGBTQIA+”, é factível que tenha um prejuízo grande, já que os religiosos são organizados e capilarizados, e, afinal de contas, ninguém precisa de hambúrguer para viver. Há mais uma coisa importante aí: se as outras duas gigantes do setor – a saber, Mc Donald’s e Bob’s – resolvessem fazer propagandas tão lacradoras quanto, o voraz comedor de hambúrgueres terá sempre a hamburgueria da esquina.
E a hamburgueria da esquina não é besta de tentar doutrinar a clientela ao vender hambúrgueres. Na verdade, é bem provável que o pequeno comerciante tenha uma moral idêntica a da clientela. Em favelas, bairros pobres e cidades do interior há uma porção de pequenos comerciantes que vivem de atender à vizinhança. Assim, podemos dizer que o capitalismo lacrador é coisa típica de grandes corporações.
Grandes corporações andam de mãos dadas com monopólios. É fácil viver sem comer hambúrgueres. Mas não sem usar banco nem telefone. Por isso bancos e operadoras de telefonia podem lacrar à vontade, que não vão deixar de lucrar. Você não tem um vizinho banqueiro, nem um vizinho dono de telefonia. Lacra quem pode.
Mas por que lacra? Por convicção ideológica é que não é; do contrário, estariam contra a China.
Reserva de mercado
Nesse cenário, um eletrodoméstico não é um hambúrguer nem um banco. No interior, eu vou a uma loja cujo dono eu conheço e, como o frete é grátis, sai em conta comprar a geladeira ali. Mas nas grandes cidades os cidadãos irão enumerar uma pequena quantidade de redes varejeiras, dentre as quais está o Magazine Luiza. Trata-se de uma empresa lacradora que faz lobby em Brasília desde pelo menos 2017 para passar leis de cotas. (Veja aqui Luiza Trajano no Senado, mancomunada com o PCdoB, querendo criar cota para mulheres em cargos de chefia em empresas públicas e privadas) No ano passado, a mesma empresa lacradora pisoteou nossas já esculhambadas leis e os já esculhambados direitos humanos para criar cotas raciais no seu programa de estágio.
Eu sei e você sabe que dá trabalho preencher cotas em cargo de chefia. Se nós sabemos, quanto mais os donos de empresa. Se Luiza Trajano tivesse conseguido passar sua lei de cotas para mulheres em cargos de chefia já em 2017, será que o Magazine Luiza não teria uma vantagem natural perante a Ricardo Eletro e as Casas Bahia? Uma proposta de lei dessas é tudo menos desinteressada. É feita para limar a concorrência e transformar-se em monopólio.
Agora desçamos para o nível das hamburguerias outra vez. Peguemos um país como os Estados Unidos, que é majoritariamente branco, cheio de pequenos comércios e com uma tradição de capitalismo formal. Digo formal por oposição ao nosso, informal, escondido das leis e do fisco. Nunca vai passar pela cabeça do dono de hambúrgueres da favela botar a hamburgueria dele na Bolsa de Valores.
Mas digamos que para cada Zé informal pardo no Brasil haja um Joe formal branco nos EUA. Zé e Joe têm uma hamburgueria familiar, na qual cada membro da família tem um papel. Pergunta: se a Bolsa decidir que só empresas com uma mulher, um negro e um LGBTQUIABO podem vender ações, qual o resultado?
A imprensa comum — ela própria monopolista — vai dizer que o mundo vai ficar menos machista, racista etc., mas a verdade é que o negócio de Joe estará excluído da bolsa, porque não é qualquer um que pode bancar a contratação de funcionários extras com a finalidade exclusiva de preencher cotas.
E no Brasil, embora tenhamos muitos pardos, lembremos que não basta ser pardo para ser considerado pardo: é preciso passar por um tribunal racial composto por militantes. Assim, garante-se uma reserva de mercado para militantes, já que somente alguns não-brancos são negros oficiais. Ou seja: mesmo que você tenha dinheiro sobrando para contratar um negro só para preencher cota, não bastaria catar pelo braço o mais retinto que você achasse na rua; precisaria ser um negro reconhecido como negro por um tribunal racial de lacradores.
#EuAvisei
Modéstia à parte, eu escrevi um artigo para esta Gazeta explicando o que eu achava que a esquerda queria com o Magazine Luiza, e eu acertei em cheio. O exemplo supracitado, da bolsa, já é realidade nos Estados Unidos: o governo Biden liberou a Nasdaq para exigir das empresas que pelo menos dois de seus diretores sejam de categorias oprimidas. Tem que ter uma diretora mulher e um que seja não-branco ou não-hétero. Na prática, é uma óbvia reserva de mercado dos grandes contra os pequenos. Para ficarmos com o exemplo do Burger King, é como se o capitalismo lacrador se empenhasse em fechar todas as hamburguerias de favela para obrigar a clientela a comprar hambúrgueres na mão das empresas ideologicamente aprovadas.
Capitalismo que une cartéis empresariais e Estado tem nome: fascismo. Parece que neste século XXI vivemos uma ameaça neofascista invertida: se no século XX o Estado criava paraestatais e nelas mandava, hoje grandes empresas sequestraram o Estado para reprimir cidadãos e transformar os países em imensas reservas de mercado. A ideologia de hoje é tão racista e irracionalista quanto a do século XX. Os intelectuais de hoje são tão burros e tão seduzidos hoje quanto no século XX. A novidade é os Estados Unidos terem descuidado de sua lei antitruste e permitido que o país fosse tomado.
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