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Numa guerra por território, os conquistadores destroem as casas dos moradores, os seus meios de subsistência, e os expulsam de lá. A Amazônia brasileira está passando por isso. Mas, como os tempos são outros, não temos mais um exército estrangeiro matando brasileiros. Em vez disso, a própria Força Nacional dos brasileiros foi usada para obedecer a uma série de decisões que passaram pelo Supremo Tribunal Federal e que, neste governo, contam com o apoio de alguns ministros do Executivo – mas, se o governo fosse outro, as molas institucionais caminhariam no mesmo sentido, ainda que com mais vagar.
A CPI das ONGs, abafada pela maioria da imprensa porém bem coberta nesta Gazeta, tem feito um importante trabalho para investigar e denunciar as ingerências estrangeiras na Amazônia. Assisti às seis horas do aguardado depoimento de Marina Silva, e uma única coisa saltou aos olhos o tempo inteiro: a impotência das autoridades eleitas na Amazônia diante de um muro impermeável à pressão popular. Para piorar, a existência desse muro é negada pelos tijolos que o compõem. Não, não há perseguição alguma ao pequeno proprietário rural na Amazônia. Tudo é muito técnico, os laudos ambientais e antropológicos que embasam a perseguição a brasileiros não têm nem um pingo de ideologia, Marina não tem nenhuma relação especial com as ONGs, nem há nada de mais em privilegiar os ongueiros para colocá-los em cargos do governo. O Ibama é técnico, a Funai é técnica, até os ongueiros ambientalistas são técnicos. Os senadores e deputados estão loucos, os cidadãos comuns que gravaram vídeos foram manipulados por traficantes para dizer que as ONGs são ruins. E não pode chamar as ONGs de caixa preta, que é racismo.
Pois foram seis horas disso. O senador Plínio Valério mostrou uma série de filmagens que mostravam coisas como: casas de brasileiros sendo destruídas na “desintrusão”; uma merendeira que trabalhava em área ianomâmi cozinhando para os garimpeiros, e que decidiu, por conta própria, cozinhar para os indiozinhos que comiam minhoca porque passavam fome sob os cuidados das ONGs indigenistas; um morador se queixando de que alguém em nome do Estado destruiu uma ponte de madeira de lei e falou que, se puser outra, derrubam de novo; uma mãe com uma criança doente reclamando que não há infraestrutura para levar a criança à escola, e que o Ibama não a deixa ter uma vaca que lhe dê leite; um índio dizendo conhecer o seu próprio povo melhor do que qualquer antropólogo e declarando-se farto de receber ordens de estrangeiros; ribeirinhos mostrando um monte de peixes mortos no rio, poluído por diesel durante a “desintrusão” (e eles vivem da pesca…). Em suma, um rosário de desgraças que poderiam facilmente ser expostos não num Senado nacional, mas num tribunal internacional que julgasse crimes de guerra e limpeza étnica.
A língua portuguesa como fator de coesão nacional
Porque não se enganem: o que essas desintrusões promovem no território nacional é limpeza étnica, feita para expulsar do território nacional os brasileiros que não são reconhecidos como índios. Com parcimônia, podemos considerar o brasileiro comum uma vaga etnia brasileira, digamos assim, definida pela língua portuguesa como primeira língua. O índio que vive em aldeia aprende o português como segunda língua; o "colono" do Sul e seus descendentes, intuitivamente, se referem aos “brasileiros” na terceira pessoa, ainda que eles próprios sejam cidadãos brasileiros (e amiúde cidadãos unicamente brasileiros), porque reconhecem uma unidade linguística e cultural que vai da Amazônia ao Pampa, passando pela costa do Atlântico. No Sudeste e no Nordeste, a língua importa muito pouco para marcar identidade porque não temos fronteiras. Já no Rio Grande do Sul e nos estados da Amazônia, falar português em vez de espanhol marca a identidade nacional.
Quanto aos índios, em tempos coloniais variava conforme a coroa à qual a ordem religiosa que cuidava deles se submetia. Os jesuítas do Paraguai não necessariamente eram espanhóis, mas estavam lá sob a sujeição da Coroa espanhola. O Pe. Anchieta nasceu na Espanha, mas veio para o Brasil atuar sob a Coroa portuguesa. No mais, quanto às questões linguísticas, vale lembrar que São Paulo só se consolidou como uma área de língua portuguesa, após a expulsão dos jesuítas.
De todo modo, como já mostrei em detalhe aqui, o uti possidetis marca a diplomacia lusófona desde o Tratado de Madri em 1750, costurado pelo santista Alexandre de Gusmão. Segundo o uti possidetis, a terra é de quem a ocupa. Isso serviu, mais adiante, para o Brasil reivindicar o Acre – e impedir assim mais um genocídio das chartered companies, que aprontaram no Congo e no Putumayo (peruano) com o capital inglês e estadunidense, bem como apoio estatal oficial.
Assim, limpar a Amazônia de nativos lusófonos é, também, um jeito de enfraquecer a soberania do Brasil sobre o território, já que as reservas indígenas não seriam territórios possuídos ou ocupados por nativos lusófonos.
Quem é índio?
Um jeito simples e honesto de determinar quem é índio usaria a língua nativa. Caso se usasse a biologia, seria necessário pegar o DNA de cada manauara para determinar a sua origem – que, no mais das vezes, provavelmente seria mestiça. Por outro lado, nada impede que um índio nascido e criado numa tribo, que fale português como segunda língua, tenha ancestrais europeus ou negros também (já que é frequente, em nossa História, a figura do homem que se embrenha na selva e casa com índias – na verdade, o Brasil começou assim). Como vemos a torto e a direito na questão do identitarismo negro, a mestiçagem é um problema para esses ongueiros, e há um empenho para acabar com a figura do mestiço, se não fisicamente, ao menos na oficialidade.
Isso é algo denunciado por Plínio Valério. Os brasileiros mais politizados do Nordeste, Sudeste e Sul estão mais acostumados a ver a confusão causada pelos militantes do movimento negro com cotas em processos seletivos públicos. A manobra manjada é o IBGE considerar que negro é preto + pardo (fazendo com que o Amazonas fosse mais “negro” que a Bahia, por causa dos pardos descendentes de índio), e em seguida, na hora de distribuir as benesses, criar tribunais raciais que só aceitem como “negros” os pretos retintos e os militantes da causa.
Pois bem, na Amazônia a confusão é ainda maior, porque os mestiços, quando não são ativamente classificados como “negros” pelo IBGE, sofrem pressão para se autodeclararem índios, conforme denunciou Plínio Valério, de modo que ele tem amigos de infância que viraram formalmente índios e ele não. Inflando o número de índios, cria-se a demanda para inventar reserva indígena. E a gestão delas é entregue às ONGs, que fazem com os índios reais a mesma coisa que as chartered companies fazem com os nativos das áreas exploradas. Aldo Rebelo já mencionou em mais de uma ocasião que as ONGs não deixam militar entrar em área brasileira; e Lorenzo Carrasco, aqui nesta Gazeta, já explicou que essa dinâmica de tutela privada de territórios nacionais tem um nefasto precedente na África, onde os bichos, em vez dos índios, servem de pretexto para criar parques geridos em PPPs.
Na verdade, a reivindicação à tutela de índios como meio de reivindicar território remonta, no Brasil, ao século XIX, quando os ingleses tomaram um pedaço do território brasileiro que hoje está na Guiana. Os britânicos inventaram “tribos independentes” na área do Pirara, então incontestavelmente brasileira, o Império do Brasil reconheceu, e logo em seguida as “tribos independentes” viraram Guiana. E já que as pendências britânicas na Guiana estão no noticiário agora, recomendo aos interessados que leiam sobre a “Ilha das Guianas” no clássico Máfia Verde (Capax Dei), de Lorenzo Carrasco, Geraldo Lino e Silvia Palacios. O centro dessa “ilha” cercada por rios e mar é Roraima, que tanto sofreu com a “desintrusão” de arrozeiros para a criação da Raposa Serra do Sol.
Como isso foi possível?
Tudo isso só foi possível porque não há mais democracia no século XXI. Acabou, zé fini, morreu. De um lado, há a ameaça das ONGs, que são um jeito de tirar a face pública do Estado da colonização e terceirizá-la; e, de outro, há a ameaça das agências técnicas. Isso é um problema interno dos EUA que tem uma origem filosófica: como Patrick Deneen explicou em "Uma história da afinidade das ciências sociais com o fascismo" as ciências sociais, na primeira metade do século XX, eram abertamente contrárias à democracia e pretendiam se inspirar nos regimes políticos europeus para aprimorar os EUA. Por outro lado, teóricos sociais filiados ao neotomismo e ao aristotelismo os acusavam de ser relativistas morais autoritários. Passada a II Guerra, as ciências sociais fazem de conta que elas não tinham nada a ver com isso e a acusar os teóricos religiosos, sobretudo os católicos, de serem fascistas e autoritários. Em breve sai a continuação do texto, com o título “A redefinição do conceito de democracia”.
Em resumo, a democracia foi substituída pela “ciência” – e a consequência óbvia foi a corrupção da ciência. Tudo o que Marina Silva faz ou aprova é alegando seguir os órgãos técnicos. Jair Bolsonaro, que não saiu das "quatro linhas", não conseguiu levar adiante a infraestrutura na Amazônia por causa dos pareceres “técnicos” do Ibama – e se você for contra o Ibama, é contra a “democracia”. Governo nenhum, de nível nenhum, consegue ligar o Amazonas ao resto do Brasil por rodovia porque a “democracia” não deixa.
A “democracia”, hoje, é frequentemente referida como “as instituições”. As instituições são mais relevantes do que os votos. Do STF ao Ibama, tudo o que há são pareceres “técnicos” que nos dizem que as ONGs são técnicas, e que a coisa “técnica” a ser feita é expulsar os nativos lusófonos da Amazônia, e deixar os índios morrerem de fome.
E quem está promovendo as “instituições democráticas”, defendendo urna eletrônica às vésperas da eleição e estendendo tapete pra Sônia Guajajara e Marina Silva não é a Rússia, nem a China.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima