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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Herói é Julian Assange

Histeria: a degeneração da liberdade de expressão

Julian Assange em 2006, no começo do Wikileaks. (Foto: Julian Assange & Martina Harris/Domínio público)

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No século XIX, os boêmios difundiram o slogan “l’art pour l’art”, arte pela arte. Em tempos de “art engagée”, pensar a arte como algo dotado de valor intrínseco pode ser libertador. Mas certamente não era o caso dos boêmios que inventaram o slogan. Eles se opunham à ideia clássica, vigente à época, de que a arte é paideia (em latim, cultura) e portanto integra a formação do caráter dos cidadãos e da politeia (em latim, res publica). Tendo tão nobre posição, deve contribuir para a virtude pública. O advento da “arte pela arte” deu-se nesse contexto. E no século seguinte, após o seu longo reinado de pedantismo vazio, pareceu uma boa ideia inventar a “arte engajada”, a arte cujas finalidades político-partidárias a confundem com mera propaganda. E uma vez que esta também nos tenha saturado (até porque começou com a qualidade de Chico Buarque e terminou com a do Mano Brown), ficamos aí tratando entretenimento como cultura só porque não nos enfia propaganda goela abaixo de modo ostensivo. Junto da Barbie combatendo o patriarcado, Top Gun vira o pináculo da sétima arte e não miramos em nada mais elevado.

L’art pour l’art é má coisa, é coisa de niilista e, no longo prazo, mata a arte, reduzindo-a a mera fonte de prazer momentâneo. Esse prazer pode inclusive ser só do artista, como podemos ver nas inúmeras exposições de arte contemporânea, que tratam do ego do autor. Esvaziada, a arte virou narcisismo e, na melhor das hipóteses, passa-tempo do público.

Fenômeno semelhante acontece hoje com a liberdade de expressão. Defende-se a expressão pela expressão, como se a expressão – coisa feita para atingir uma outra pessoa – pudesse ser solipsista e estritamente individual. O mais bizarro é que isso tenha chegado à política! A política é outra coisa que, por sua própria essência, não pode ser estritamente individual. Os anarcocapitalistas até querem, mas uma sociedade não é, nem pode ser, um aglomerado de indivíduos solipsistas, cada qual com seus códigos de ética únicos.

No Brasil, temos há muito tempo lei contra racismo limitando a liberdade de expressão. Nos EUA, os milionários donos dos meios de comunicação tolhem a liberdade de propagar um verdadeiro discurso antirracista, ao mesmo tempo em que promovem movimentos de ódio racial como o BLM.

O autor mais invocado pelos liberais para defender a liberdade de expressão é John Stuart Mill. Ele tinha uma visão utilitarista da liberdade de expressão, e, por menos que eu goste do utilitarismo, este pensamento não é cego para a dimensão social desse direito. Ao contrário: a liberdade de expressão deve ser defendida, para Mill, porque só com o dissenso uma sociedade pode aprimorar o seu conhecimento. A adoção de verdades oficiais é prejudicial aos avanços científicos (como aprenderam amargamente as universidades da Contra-Reforma e, mais amargamente ainda, os agrônomos da União Soviética).

Apesar de influente entre as elites liberais, o argumento utilitarista de Mill está saindo de moda. Creio que a causa disso seja a conjunção entre a ascensão do bolsonarismo e a perseguição judiciária por ele sofrida.

O bolsonarismo herdou do olavismo a americanofilia. A perseguição arbitrária do comunicador Allan dos Santos, seguida pelo exílio nos Estados Unidos, reforçou a imagem do país como terra da liberdade de expressão – e, no ato, Allan dos Santos se tornou um exemplo de comunicador protegido por esse direito. Mas, por todos os elementos que me estão disponíveis, penso que ele se destaca exclusivamente pela condição de vítima, sem ter qualquer serviço prestado ao país. Como qualquer apreciadora da liberdade de expressão, encarei cada canetada como um estímulo para apreciar a sua obra… sem encontrar nada. Era um exaltado como Pavinatto, mas sem a eloquência deste.

É fato que, nos EUA, ele tem hoje liberdade para criar todo tipo de conteúdo político para brasileiros. Até racismo ele poderia defender, segundo a jurisprudência relativa à Primeira Emenda. Xandão poderia fechar mil coisas, mas vocês sabem como é a internet: os mais empenhados usariam VPN para assistir aos programas e o público geral receberia uma porção de excertos por aplicativos de mensagem. O próprio público de brasileiros no estrangeiro, que não seriam afetados por decisões da internet brasileira, poderia sair distribuindo vídeos pelo WhatsApp. O Brasil está bem longe de dispor de um mecanismo de censura e vigilância virtuais que cheguem aos pés do chinês, e nem a China segura a internet.

Os bolsonaristas nos pedem que creiamos, portanto, que os EUA são o país da liberdade de expressão porque lá Allan dos Santos pode fazer suas performances à vontade. E aí morreu Neves. Não importa o fato de que as falas de Allan dos Santos têm 0 impacto sobre a sociedade brasileira e não passavam de um passa-tempo para bolsonaristas (que já gostam de ter catarse assistindo a piti). O xis da questão da liberdade de expressão é ter liberdade para tagarelar e dar piti. Pix e piti são tudo o que os bolsonaristas sabem fazer agora.

Assim como Mill, eu já acho que a liberdade de expressão tem um fim social. Por isso mesmo, os EUA não me entusiasmam nem um pouco: o mesmo país que abriga um americanófilo inócuo promove uma caçada mundial contra Julian Assange, que deveria ser um herói para qualquer defensor da liberdade de expressão sensato. Sem cometer nenhum crime, ele criou um espaço virtual, chamado Wikileaks, para que whistleblowers contactassem jornalistas interessados em suas revelações. A repercussão do seu invento foi global e duradoura: o mundo descobriu, por exemplo, que a presidência de Obama estava criando um sistema de espionagem em massa, e que grampeava chefes de Estado teoricamente amigos. Para perseguir Assange, só usando as leis feministas dos países nórdicos.

Comparar Assange a Allan dos Santos é pôr um são-bernardo ao lado de um mini-pinscher. O trabalho de um revolucionou a geopolítica; o de outro entreteve bolsonaristas que não têm nada de edificante com que se distrair.

O quadro geral dos EUA desanima. Alguém como Matt Walsh só pôde ter alcance graças ao arbítrio individual do multimilionário Elon Musk. Sem ele, Walsh sofreria com a censura privada largamente exercida pelos oligopólios. Como apontei noutra ocasião, a jurisprudência que coloca a Primeira Emenda como quase absoluta se consolidou com a chegada da mídia de massa. Isso significou que, graças ao STF de lá, o povo dos EUA – originalmente, bem mais sujeito a tabus sexuais que o nosso – ficou de mãos atadas diante da propaganda de novos valores morais feitas pelos donos dos meios de comunicação. O aborto passou de tabu a direito; os peitões das musas pop se tornaram ubíquos.

Enquanto a mídia de massa reinou absoluta num país continental como os EUA, a liberdade de expressão do dono de um jornalzinho local se tornou tão inócua quanto os pitis de Allan dos Santos. No que depender dos big sharks das Big Techs (excetuado Elon Musk), só tem direito a se expressar quem não viola as “regras da comunidade”, isto é, deles próprios, que não foram eleitos por ninguém. É anarcocapitalismo. O próprio presidente Trump, ainda em exercício do mandato, teve a sua liberdade de expressão limitada por gente mais poderosa que ele – os donos das Big Techs. Começou com o Twitter, depois foi pelo Zuckerberg (dono do Facebook e Instagram) e até pelo Youtube (do Google). Uma tentativa de criar uma rede nova foi abortada porque o servidores e os serviços de aplicativos, que também são privados, a indisponibilizaram pouco depois do banimento de Trump das grandes redes.

No Brasil, temos há muito tempo lei contra racismo limitando a liberdade de expressão; nos EUA, o racismo é liberado pelo STF lá deles, e os milionários donos dos meios de comunicação tolhem a liberdade de propagar um verdadeiro discurso antirracista, ao mesmo tempo em que promovem movimentos de ódio racial como o BLM. Senhoras e senhores, o ordenamento jurídico do Brasil é muito superior ao dos EUA. É uma lástima que tenha sido corrompido pelo ativismo judicial – que, aliás, é uma doença vinda da América do Norte, e não de um regime comunista.

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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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