No último texto, vimos que definir um judeu é uma tarefa nada trivial, e o próprio Herzl, o pai do sionismo, não demonstrava lá muita habilidade nisso. Ao contrário da tradição judaica, que atrela a condição de judeu à matrilinearidade, ser judeu, para Herzl, era uma determinação imposta de fora, pelo antissemitismo. Nem cheguei a mencionar que seu único filho homem (aquele que nem foi circuncidado pelo pai) se suicidara após se converter a uma porção de religiões diferentes, e deixara um bilhete lastimando a impossibilidade de deixar de ser um judeu. No mais, Herzl, tinha duas filhas mulheres: uma morreu de overdose pouco antes do irmão, e outra morreu num campo de extermínio nazista. Nenhum filho de Herzl deixou descendência.
Mas hoje vamos aos seus planos para construir o Estado Judeu descrito em Der Judenstaat (1895). Em primeiro lugar, não era necessário que fosse na Palestina (sim, Herzl chama de Palestina). No opúsculo, Herzl aventa duas possibilidades: a Palestina ou a Argentina. O prefaciador da tradução em inglês da Dover, Ami Isserroff, menciona as tentativas de Herzl de criar um Estado Judeu em Uganda. Ela e a Palestina tinham em comum o fato de estarem sob colonização inglesa e não serem, portanto, Estados nacionais. A Argentina é um país de clima ameno, pouco povoado no miolo, e tinha uma qualidade de vida superior à europeia quando Herzl escrevia. Mas o argumento levantado por ele é que a República Argentina poderia se beneficiar economicamente cedendo terras para os judeus. O método supostamente adotado até então, chamado por Herzl de “infiltração de judeus” (sic: “Infiltration von Juden”), estaria fadado a acabar mal, porque em algum momento o antissemitismo iria despontar, com os argentinos se sentindo ameaçados pelos judeus.
Quanto a Uganda, Ami Isseroff informa que já no começo do século XX Herzl negociara a possibilidade com o governo inglês e fora comunicá-la aos judeus russos, então vítimas de pogrom, da possibilidade de emigrarem para lá. Ficaram ofendidos com a proposta e pouco depois Herzl morre do coração precocemente. Assim, não corresponde à verdade histórica a ideia de que o sionismo é a ideia de que os judeus têm o direito de “voltar” para a sua terra originária. O sionismo é a ideia de que os judeus (uma categoria equívoca que inclui um monte de ateu, e certamente uma maioria de não praticantes do judaísmo) devem ter um Estado nacional. Daí ser tão esquisito libertários e anarcocapitalistas endossarem o sionismo…
Outra coisa que pode surpreender os entusiastas cristãos do sionismo é que Herzl usava a Suíça como exemplo de país onde várias línguas conviviam, mesmo sem inteligência mútua. Embora fizesse um grande e ousado plano de construir um Estado do nada, ele julgava utópica a pretensão de os judeus reaprenderem hebraico a ponto de poderem comprar uma passagem de metrô nessa língua. Quando não aprendiam desde o berço a língua nacional, como Herzl, os judeus europeus falavam dialetos de origem europeia: os sefarditas falavam ladino, que parece espanhol, e os asquenazitas falavam iídiche, que parecia alemão. Quando os russos pretenderam criar um oblast judaico lá nos cafundós da União Soviética, perto do Japão, a língua prevista era o iídiche. E Primo Levi conta que em Auschwitz havia muita gíria em “espanhol” por causa dos judeus de Tessalônica. Expulsos da Espanha na Idade Média, eles migraram para essa cidade grega, tornaram-se muito numerosos (quiçá majoritários) e não houve como se esconder quando os nazistas apareceram. Então foram levados aos montes para Auschwitz, e lá deixaram marcas vocabulares.
Herzl pensou na bandeira do país: um fundo branco com sete estrelas douradas, que representariam sete horas de trabalho. Para minha grande surpresa, o Estado Judeu foi pensado, ao menos em sua fase inicial, como um grande campo de trabalho para judeus pobres, que não seriam remunerados em dinheiro, a menos que trabalhassem mais do que as sete horas diárias. Surpreende, também, que o sionismo tenha encantado comunistas, já que o plano de Herzl divide cuidadosamente os judeus em classes sociais.
O esquema seria assim: judeus pobres da Rússia imperial e da Romênia seriam levados pela Jewish Company (o nome é em inglês mesmo) ao local no qual seria construído o novo Estado para trabalhar na sua construção. Nós brasileiros podemos pensar nos candangos de Brasília; Herzl, porém, tinha em mente o modelo das chartered companies e do colonialismo inglês. Cito: “A Jewish Company segue, em parte, o modelo e uma empresa de aquisição de grandes porções de terra: uma chartered company judaica, por assim dizer. Só que sem uso de soberania; e, além disso, ela não tem só propósitos coloniais. A Jewish Company será fundada como uma sociedade de ações sujeita à jurisdição inglesa, sob as leis e a proteção da Inglaterra. A sede é em Londres. (Em alemão: Die Jewish Company ist zum Theil nach dem Vorbilde der grossen Landnahmegesellschaften gedacht – eine jüdische Chartered Company, wenn man will. Nur steht ihr nicht die Ausübung von Hoheitsrechten zu, und sie hat nicht allein coloniale Aufgaben. Die Jewish Company wird als eine Actiengesellschaft gegründet, mit der englischen Rechtssubjectivität, nach den Gesetzen und unter dem Schutze Englands. Der Hauptsitz ist London. )
Já expliquei noutro artigo o que é uma chartered company – e como o modelo foi responsável por genocídios no Congo e no Peru. E grifei uma parte da citação para mostrar que a natureza colonial (de modelo inglês) do projeto sionista não pode ser negada por quem se atenha aos fatos históricos.
Bom, as chartered companies não eram exatamente respeitadoras dos direitos humanos. O esquema descrito por Herzl seria, nos moldes de hoje, entendido como escravidão moderna: os colonos recrutados entre os judeus pobres iriam trabalhar de graça, recebendo como “pagamento” os meios físicos de garantir a própria subsistência. Nos primeiros anos, não haveria salários. E como garantir que os judeus pobres trabalhariam 7 horas por dia? “A organização será toda militarista” – paulada neles!
Mas calma, pois piora. Quando o colono for recrutado, ele se desfará de suas roupas antigas e receberá a da Jewish Company. Desfazer-se da roupa é importante para que o judeu não se sinta como quem recebe uma esmola, e porque a roupa nova simbolizará uma vida nova. Ele não menciona como seria esse uniforme, mas não seria ousado da nossa parte imaginar que tivesse uma estrela de Davi.
No entanto, em algum momento os pagamentos começariam a aparecer. Seria apenas para quem trabalhasse mais do que as sete horas, e traria um benefício financeiro à sociedade, pois o “instinto de poupança” (Spartrieb) do povo judeu deveria ser incentivado pela Jewish Company a fim de que, no futuro, houvesse muito capital para empréstimos no país.
À medida que o Estado Judeu fosse sendo construído, iriam chegando as classes sociais superiores. Em vez de serem recrutadas, as classes médias judaicas seriam convencidas a deixar seus lares natais e postos de trabalho com a garantia de que no novo país não sofreriam com antissemitismo. A migração, segundo Herzl, deveria ser voluntária -- e é estranho escrever isso, já que parecia difícil, na Europa do século XIX, obrigar um cidadão francês ou austro-húngaro de origem judaica a deixar sua terra natal e ir para um país recém fundado. Seja como for, ele sabia apontar o impulso para as massas de classe média de origem judaica: o antissemitismo. “Um grande esforço para incitar o movimento mal será necessário. Os antissemitas o providenciarão rápido para nós.” (Ein mühsames Anfachen der Bewegung wird wohl kaum nöthig sein. Die Antisemiten besorgen das schon für uns.)
A classe média seria composta por profissionais liberais e técnicos, o chamado trabalhador qualificado. Curiosamente, o pequeno e médio comércio estava banido. O trabalho do mascate ou caixeiro viajante era considerado degradante por Hezl (mas ser obrigado a trabalhar sete horas por comida, não!), e no futuro país haveria muitas lojas de departamento. Isso tem nome: concentração do poder financeiro.
Lá no topo, há os judeus ricos, os pequenos e grandes banqueiros (na época, Rothschild era o maior de todos na Europa). A Society of Jews, uma sociedade acionária sediada em Londres, botaria o dinheiro nessa empreitada. Em tese, os acionistas judeus da Society of Jews não poderá buscar o lucro – mas aí, só com instituições políticas muito bem desenhadas para impedir o exercício do poder descontrolado pelos donos do dinheiro, que são, formalmente, os donos da sociedade.
A própria caracterização do Estado Judeu como uma chartered company que é propriedade dos acionistas, majoritariamente banqueiros, já torna duvidosa, ao meu ver, a sua própria caracterização como Estado. Um Estado não pode ser algo formalmente vendável, e deve ter por finalidade o bem comum aos seus cidadãos.
Bom, que dizer dos aspectos formais desse pseudo-Estado proposto por Herzl? Como vimos no último texto, Herzl disse que esse seria um Estado Modelo. Seria, especificamente, um estado moderno e baseado na ciência. Não dá pra negar o parentesco com o sansimonismo, portanto. Mas se os sansimonianos erigiam o culto a Newton em religião oficial, Herzl deixa um vácuo. O Estado Judeu seria laico; não seria uma teocracia. Os judeus apenas teriam liberdade para ter sinagogas, mas não haveria nenhum incentivo à valorização de uma filosofia religiosa na esfera pública. A conclusão forçosa é que “judeu”, para Herzl, tinha um significado racial, como explicado no último texto.
Ele não esboça nenhum mecanismo para limitar o poder dos banqueiros. De certa forma, faz bem o contrário: propõe que se tenha uma “monarquia democrática” ou uma “república aristocrática”, porque essas formas de governo contraditórias dividiriam o poder. Ou seja, as instâncias da representação política estariam atravancadas, ao passo que a influência dos banqueiros dominaria.
Vou terminar este texto elencando algumas dúvidas. A primeira, que deve estar na ponta da língua do leitor, é: “Então você está querendo dizer que os sionistas tiveram alguma coisa a ver com o Holocausto?” O que eu quis dizer, eu disse. Quanto às relações entre sionistas e nazistas, o que é sabido é o Acordo de Haavara. Em 1933, os sionistas furaram os embargos econômicos impostos aos nazistas para comprar “judeus” alemães (isto é, cidadãos alemães de origem judaica, praticantes ou não da religião) com seu próprio dinheiro. As companhias sionistas venderiam a fuga aos “judeus”, e o dinheiro das companhias seria usado para importar produtos alemães para a Palestina. Ou seja, não foi só a União Soviética, com o Molotov-Ribbentrop (1939), que subsidiou o III Reich durante as sanções; o embrião de Israel também o fez, e fez mais cedo. O cenário da II Guerra é todo muito nebuloso. Por exemplo: em 1988, a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro publicou documentos secretos no Itamaraty que comprovavam que Oswaldo Aranha, um artífice do acordo político na ONU responsável por criar Israel, era um antissemita que fez de tudo para impedir que os cidadãos europeus de origem judaica (“judeus”) entrassem no Brasil durante o governo de Hitler. Ora, esse tipo de coisa forçaria os “judeus” a desembolsarem o dinheiro necessário para se mudar para a Palestina.
De minha parte, penso que o pseudo-Estado Judeu de fato é um pseudo-Estado Modelo, que vem substituindo os Estados nacionais Ocidente afora. A impressão de dívidas públicas fez com que os Estados Nacionais passassem a ter donos de facto, como se fossem sociedades acionárias, e esses donos são os banqueiros, judeus e não-judeus. Esses mesmos banqueiros, judeus e não-judeus, são os que financiam a ideologia woke, cujo antissemitismo, então, não pode mais surpreender, já que o antissemitismo é, desde o princípio, entendido como uma força favorável ao sionismo. E essa mesma ideologia é favorável à concentração de renda, fazendo o possível e o impossível para que as empresas de menor porte, que não podem pagar por aspones escolhidos segundo critérios identitários, sejam deixadas de fora. Quero frisar que não se trata de um problema de judeus, mas sim de um problema amplo de banqueiros, de gigantes monopolistas (como Bill Gates) e de militantes identitários (categoria na qual incluo os sionistas).
Por fim, outra coisa que o leitor poderá pensar é: “O Estado de Israel começou mal, mas isso não macula todo o projeto. Depois da II Guerra, eles devem ter aprendido a lição e deixado de lado a ideia de raça. Israel não resgatou os judeus etíopes, que não descendem dos antigos hebreus?” A resposta para isso é que, decididamente, eles não largaram a ideia de raça após o Holocausto. Com certeza a humanidade é livre e pode ser capaz de construir a harmonia entre os descendentes dos colonos e os da população indígena no Oriente Médio. é possível; se é provável, é outra história. Após o Holocausto, o pai da sociologia israelense e fundador de Tel-Aviv, Arthur Ruppin, continuava crendo em raças -- e a crença em raças foi, hoje, substituída pela crença em gene pool, que coloca os judeus asquenazitas como os reis do QI. (Sobre a volta da raça pelo QI, recomendo muito este texto em inglês.) No entanto, o caso dos judeus etíopes serve bem para mostrar como as coisas são complexas: após demorarem muito para serem aceitos como judeus por Israel, o Estado fez operações para resgatá-los da fome na Etiópia nos anos 90. Em 2010, porém, emergiu uma denúncia de que o Estado discriminava os etíopes, dando às mulheres um contraceptivo de longa duração (Depo Provera) como única opção.
Eu aposto que existiram bons israelenses em posição de poder que tiveram a ideia de ajudar seus irmãos de fé e história na Etiópia. E eu aposto também que não faltam, em Israel, eugenistas em posição de poder. Num mundo complexo, cabe não julgar as pessoas em função de credo, genética ou nacionalidade. E cabe, sobretudo, não se sentir na obrigação de “tomar um lado” sem saber da missa a metade.
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