Senhoras e senhores, eu ia começar este texto falando mal de bolsonaristas neocons que deixam a filha criança usar o chinês TikTok e dos esquerdistas contra o Tio Sam que usam Apple ou, no mínimo, não se dão ao trabalho de aprender GNU/Linux para escapar do Windows. Mas bateram à porta: era o entregador da Amazon com Tyranny, Inc. (Forum Books, 2023), o lançamento do pensador pós-liberal Sohrab Ahmari. A minha preocupação com controle e privacidade me leva a jamais comprar versão para Kindle de coisa alguma, nem assinar o Amazon Prime – mas o estado de coisas torna praticamente impossível um boicote à Amazon para alguém com minha profissão.
Pois muito bem, largo o texto e sento-me para ler o livro de papel. O livro começa com um discursinho enlatado de Open Society (as democracias estão morrendo, Orbán é mau etc) e passa a contar histórias horripilantes de vigilância invasiva passadas na China e no Irã. “Ora”, penso eu, já irritada, “essas coisas poderiam perfeitamente acontecer nos EUA. Richard Stallman alerta para os riscos da vigilância em massa há décadas!” A brabeza logo some quando Ahmari explica que o começo do livro era um trote e todas essas histórias horripilantes se passaram nos EUA; e, em vez do Partido Comunista Chinês, de Pútin ou do Aiatolá, quem protagonizara tais casos de vigilância, espionagem íntima e reeducação ideológica eram as empresas privadas – Amazon inclusa. Ufa! Comprei o tipo de livro que eu esperava, só que o autor é um escritor mais habilidoso do que eu imaginava.
Se é assim, penso eu, será que ele cita Stallman? O livro tem índice onomástico e pude encontrar uma porção de nomes próprios lá, mas nada de Stallman ou Torvalds. Pelo que só posso constatar que a revolução descrita no meu último texto, protagonizada pela dupla, é conhecida somente pelos interessados em software livre e código aberto. Hoje, quanto mais se usa internet, menos se entende de informática; idosos e bebês sabem mexer com um computador de bolso e as pessoas lidam com a internet como se fosse um fato da natureza.
Devo apresentar aos leitores, então, o conceito de backdoor: um código de informatica com uma falha de segurança que pode ser invadido. Todo o mundo pode cometer erros; mas todo o mundo pode, também, deixar uma brecha de segurança proposital e dar acesso a um terceiro a essa falha. Trocando em miúdos, o programador pode sabotar um produto colocando uma “porta dos fundos” (em inglês, backdoor) secreta e entregando a chave para o governo. Quando os códigos dos programadores são segredos comerciais protegidos por patentes e direitos autorais, fazer isso é a coisa mais fácil do mundo. Se não fossem as pessoas de Richard Stallman e de Linus Torvalds, não teríamos opções para fugir dessa espionagem. Linus Torvalds, mais jovem e flexível, é um defensor do código aberto, que todos podem ler e estudar. Essa ideia vingou, e hoje os produtos do Google são criados com código aberto. Richard Stallman, mais velho e intransigente, defende o software livre, que é o código aberto com preocupações éticas que não cabe explorarmos aqui.
Enquanto Stallman é um verdadeiro evangelista do software livre, Linus Torvalds é muitíssimo discreto. Por isso, só por meio do seu pai, Nils Torvalds, o mundo obteve em 2013 a confirmação de que a NSA (a Agência de Segurança Nacional dos EUA) abordou Linus Torvalds pedindo para colocar uma backdoor na sua invenção, o núcleo Linux. Pode parecer coisa pouca para leigos em informática, mas informo que, se o seu celular é Android, você usa Linux e nem sabe. O Linux é um pedaço – o núcleo – de sistemas operacionais. O Android do meu celular e o Debian do meu notebook são sistemas operacionais com núcleo (ou kernel) Linux. Assim, a crermos em Nils Torvalds, deputado finlandês do Parlamento Europeu falando em plenário, o Windows é cheio de backdoors, e o criador do Linux, seu filho Linus, foi abordado pela NSA para que pusesse backdoors também. Nenhum desmentido veio à tona. Ao contrário: o Parlamento Europeu estava assim, preocupado com o ataque à privacidade, por causa das revelações do Wikileaks concernentes à NSA e ao projeto norte-americano de criar uma vigilância de massa.
Mês passado, Stallman estava em Lisboa dando conferência, e afirmou que hoje há mais vigilância do que a URSS poderia imaginar. Ele costuma também se referir aos smartphones como “o sonho de Stálin”, pois são dispositivos de vigilância que as pessoas carregam voluntariamente consigo. Em português, recomendo esta entrevista dele ao El País sobre o assunto. Recomendo também que vão ao site pessoal de Stallman (stallman.org) e passe à seção “What’s bad about” (“o que há de mau no/na”). O layout é bem feio, o site pessoal tem opiniões sobre absolutamente tudo (tem até trocadilhos em português), mas essa seção está lá há anos. Clicando nos nomes em ordem alfabética (AirBNB, Amazon etc.), que cada qual tem lá as suas capivaras levantadas por Stallman. (Você pode usar o Google Tradutor se não souber inglês; algumas coisas vão ficar esquisitas porque Stallman faz muito trocadilho.) Se fôssemos seguir as mesmas normas de Stallman, muitos seríamos limados pelo mercado de trabalho. Ainda assim, é bom saber os riscos que corremos ao usarmos uma série de itens do mundo digital. Por exemplo: alguém que acompanhasse Stallman, mas, mesmo assim, escolhesse virar motorista de aplicativo, entraria consciente de que a empresa poderia bani-lo de maneira arbitrária. Um caso assim ganhou notoriedade com o atropelamento do global Kayky (sic) Brito: o motorista não tinha culpa, teve um grande prejuízo, foi banido do aplicativo e fez uma vaquinha virtual. E também não sejamos pegos de surpresa caso sejamos banidos dos aplicativos na condição de usuários. Banimento arbitrário, inclusive no dinheiro digital, é um tópico no qual Stallman insiste há muitos anos.
Que fazer para não ser vigiado passivamente? Como as necessidades técnicas e a capacidade de aprender variam de indivíduo para indivíduo, vou dar uma rascunhada geral.
Mudanças no celular
A coisa mais elementar a ser feita, ao meu ver, é ir conferir a sua Conta Google. Para começar, você abre o seu GMail, bota o dedo na sua carinha lá no canto superior direito e aparece isso:
Aí você aperta “Gerenciar sua Conta do Google”, depois “Dados e privacidade” e mandar parar de registrar os seus históricos de navegação, de localização e do Youtube. Além de apagar os registros já feitos, claro.
Os servidores do Google não vão mais manter o seu histórico de navegação e de lugares aonde você esteve com o seu consentimento. (Se vão manter sem o seu consentimento, é outra história.) Uma pessoa visada como Snowden recomenda um sistema operacional chamado GrapheneOS, baseado no Android e feito para um celular do Google difícil de encontrar no Brasil. Assim, eu particularmente desconheço uma solução livre ou aberta para os celulares mais encontradiços no mercado brasileiro.
Na internet, volta e meia alguém reclama de ter comentado algo e aparecer anúncio desse algo. Bom, as coisas que são acionadas por comando de voz precisam escutar você o tempo inteiro para reagirem ao comando. (Sinceramente, não entendo como alguém põe um Alexa dentro de casa. Ao contrário do smartphone, a Alexa está longe de ser uma necessidade.) Nada impede, portanto, que algum programa instalado esteja captando a voz para usar na publicidade dirigida. Assim, o recomendável é ir nas configurações do celular, verificar os aplicativos que estão com permissão para acessar o microfone e tirar essa permissão. A menos que você tenha sérias debilitações motoras, desista dos comandos de voz. Essa modalidade implica permitir que o software de uma Big Tech lhe ouça o dia inteiro e armazene suas conversas nos servidores dela.
WhatsApp e navegadores
Creio que não adiante muito escolher um aplicativo de mensagem maravilhoso, já que a decisão de qual mensageiro usar não pode ser individual. Mas também no WhatsApp dá para melhorar a própria privacidade. Pessoalmente, acho absurda a ideia de salvar as minhas conversas nos servidores do Google ou da Apple. (Nuvem é um fenômeno metereológico; as suas conversas na “nuvem” estão salvas num grande computador chamado “servidor”.) Foi isso, aliás, que pôs Bolsonaro em desgraça: Mauro Cid, que usava um iPhone, salvava as conversas em “nuvens”.
Como eu sempre achei absurda a ideia de salvar as minhas conversas em “nuvem” (isto é, no computador alheio), nunca dei autorização ao WhatsApp para fazer isso. Antes o aplicativo toda hora notificava dizendo que minhas conversas não estão salvas na nuvem; hoje ele não faz mais isso. Assim, recomendo ir às “Configurações” do WhatsApp, depois em “Conversas” e deixar assim:
Mas, como o caso Mauro Cid bem mostrou, pouco adianta você proteger as suas conversas se o seu interlocutor não fizer o mesmo. É prudente pegar os celulares dos familiares próximos e instruí-los quanto às configurações do WhatsApp.
Por outro lado, uma coisa que você pode escolher sozinho é o navegador. Existe uma porção de navegadores prometendo privacidade. No software livre, volta e meia surgem acusações de parceria com a Amazon ou com o governo dos EUA, ou de praticar censura woke. Um que tem escapado às acusações é o Brave Browser, que é parente do Chrome e pode ser usado tanto no computador de mesa quanto no de bolso. Por ser parente do Chrome, pode ser usado com tanta facilidade quanto ele. (O Google usa código aberto para desenvolver seus softwares, e o navegador Chromium é a versão aberta – e de testes – do Chrome. Programadores podem usar o mesmo Chromium para criar outros navegadores. O Brave é fruto disso, por isso digo que é parente do Chrome: ambos vêm do Chromium.)
Computadores de mesa
Penso que a proteção dos computadores de mesa é mais importante para governos e organizações do que para indivíduos. A China provavelmente pensa o mesmo, já que fez um GNU/Linux para substituir o Windows e o MacOS no país. Penso que o Brasil deveria ter feito o mesmo há muito tempo, e que o finado GNU/Linux Kurumin (mencionado em meu último artigo) deveria ter sido abraçado pelo Estado.
De todo modo, ter controle sobre o meu próprio computador é bom e eu gosto. Eu me mudei para o GNU/Linux durante a transição do Windows 7 para o 8. Começa que a Microsoft pôs uma atualização automática que inutilizou (temporariamente) computadores velhos, que era o meu caso. Depois ela ajustou remotamente o problema, mas aí a confiança já havia ido para as cucuias. Além disso, o Windows 8 veio num estilo muito diferente dos precedentes e repeliu usuários – tanto que depois lançou o 8.1 logo depois. Aparentemente, o Windows a ser lançado no ano que vem também será disruptivo, e é possível que os usuários atuais se sintam confortáveis num GNU/Linux amigável ao usuário, com interface gráfica KDE ou aparentada.
No mais, é possível também usar software livre em computadores da Microsoft para se livrar de aporrinhações como as licenças vencidas do Word. Basta baixar o LibreOffice e ser feliz.
Lembro que quando eu comecei a usar GNU/Linux os vídeos do canal Diolinux no Youtube me foram úteis (usuário inexperiente precisa ver as coisas na tela); e depois, quando problemas pontuais apareciam na intalação de programas, o blogue de Edivaldo Brito costumava ter uma solução. No mais, uma coisa muito útil é a “comunidade de usuários” de um mesmo sistema operacional, que estão onde menos se espera. Só na caixa de comentários apareceram dois usuários de Debian, que não é lá muito popular em computadores pessoais (é mais usado em servidores). No software livre, vale o ditado “quem não chora, não mama”: ao se deparar com um problema, primeiro você pesquisa se alguém já reclamou dele; se não encontrar nada, chore você mesmo as pitangas, que algum outro usuário vai saber dar uma luz. E, à medida que o seu conhecimento vá se acumulando, você mesmo vai poder ser esse usuário que vai ajudar o outro.
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