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Bruna Frascolla

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Liderança

O bispo do Cazaquistão, o Mito e o que o homem comum quer – no Brasil e na Igreja

Católicos participando de uma missa em Huelva, província da Espanha
Católicos participando de uma missa em Huelva, província da Espanha (Foto: EFE/Julián Pérez)

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No final de semana passado, teve ocasião no Rio de Janeiro o encontro da Liga Cristo Rei, vinculada ao Centro Dom Bosco. Ambas são organizações católicas conservadoras, o que as coloca em contraposição à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Não à toa, portanto, esse evento de católicos não contou com nenhum bispo brasileiro. Por outro lado, a grande estrela eclesiástica do evento era Dom Athanasius Schneider, o Bispo Auxiliar de Astana, Cazaquistão. Ele é natural de uma localidade da União Soviética que hoje é parte do Quirguistão, um país espremido entre o Cazaquistão e o noroeste da China. O que traz esse bispo tão remoto ao Brasil é a sua destacada oposição às políticas do Papa Francisco, seu alinhamento com Bento XVI, sua obra teológica e seu anticomunismo.

A Igreja tem uma hierarquia rígida. No topo está o papa; na base, os leigos. Assim, uma coisa digna de nota é que o Centro Dom Bosco e a Liga Cristo Rei são entidades leigas. Essa parcela ativa da base da Igreja está conflagrada contra os seus superiores brasileiros e foi capaz de encontrar no Cazaquistão um superior que lhe dê amparo. Não se trata de romper com a instituição papal, nem de nenhuma heresia; afinal, a mesma instituição que deu autoridade ao bispo do Cazaquistão deu-a aos bispos do Brasil. Formulando-se em termos estritamente abstratos, tem-se a situação estranha em que os leigos brasileiros reconhecem uma autoridade intermediária do Cazaquistão enquanto rechaçam as equivalentes brasileiras. Mas, formulando-se em termos políticos, a situação não é nada estranha: todo o mundo sabe que a CNBB é vermelha, que a Teologia da Libertação causou uma debandada do catolicismo, e que os religiosos de países ex-soviéticos são anticomunistas ferrenhos.

Os cristãos praticantes, conservadores, que não debandaram do catolicismo, ficaram órfãos de liderança. Por outro lado, os cardeais se empenham em agradar ateus progressistas. Um caso recente ilustra bem isso: em Salvador, o novo Arcebispo Primaz do Brasil resolveu rezar uma missa pelas vítimas da homofobia. Luiz Mott protestou contra a omissão das vítimas da transfobia, e o homem, obediente, rezou mais uma missa para se consertar. Qual o sentido de agradar a Mott, abertamente ateu, em vez do fiel médio, que nunca nem ouviu a palavra “transfobia”? É algum absurdo supor uma sabotagem vermelha por dentro da Igreja no Brasil?

Pauta da família

Pelo olhômetro, o perfil do público era leigo de classe média e com filhos. Filhos, no plural. Se havia um casal com um filho só, o filho era um bebê, potencial irmão mais velho. Se havia um casal abraçadinho, exalando romantismo, as alianças estavam nas mãos direitas. Fiz essa observação do perfil natalista à mulher do amigo que me chamou. Comentei que, num ambiente de beautiful people, há poucas crianças, e quase sempre filhas únicas. Especulei que a classe média seja antinatalista por temer a queda no padrão de vida. Ela, que tomava conta do segundo filho, observou que de fato as mães de classe média que têm mais filhos do que ela aprendem a fazer pizza, porque qualquer ida à pizzaria sai centenas de reais. Tampouco conseguem pagar escolas de dois mil reais para os filhos, de modo que têm que pensar em alternativas. O homeschooling, pelo jeito, também é uma demanda econômica do nicho natalista da classe média de direita. Inclusive é bem questionável se a mulher em casa, numa família numerosa de classe média, não sai mais em conta do que uma mulher trabalhando fora. Porque eu sozinha já sinto se multiplicar o gasto com refeição quando como na rua em restaurante a quilo em vez de cozinhar em casa. (Com 20 e poucos reais, como um prato; com 30 reais, compro um quilo de camarão bom em Cachoeira.) Imagine-se essa diferença numa família, somando-se alimentação, mensalidades escolares e diária da faxineira. Dá um salário de mãe de família?

O item “família”, no slogan "Deus, pátria e famíla", não é uma palavra vazia. Eles de fato a levam a sério e optam por um estilo de vida natalista e familiar. Se uma Simone Tebet entrasse naquele ambiente e problematizasse as "desigualdades salariais de gênero", ficaria claro o autoritarismo da proposta: implica tirar das mulheres o tempo passado em casa sem remuneração, com o fito de aumentar a remuneração. Duvideodó que as mulheres ali trabalhem e ganhem tanto quanto os maridos. O que importa é perguntar se elas queriam trabalhar e ganhar o mesmo que eles; do contrário, é a imposição de um estilo de vida contrário ao que escolheram. E se os maridos passassem a remunerar o trabalho doméstico, teriam uma empregada em vez de uma esposa.

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Pauta da pátria

Quanto à pátria, o presidente do Centro, Pedro Affonseca, se refere ao Brasil como a Terra de Santa Cruz, um local especial do catolicismo no mundo. Em discurso bastante inflamado, referia-se à Igreja católica como a verdadeira Igreja Universal (o público local com certeza sabia que “católico” quer dizer “universal” em grego). A Terra de Santa Cruz teria que ser livrada do comunismo e da heresia (leia-se: o protestantismo). Os vários nichos católicos politizados da direita teriam que parar de brigar entre si e focar em evangelizar. Ele tinha muita razão ao dizer que os católicos, outrora religião oficial, se contentavam com a tolerância da parte da República e agora nem isso têm mais. Eu mesma, que sou uma descrente desde que me entendo por gente, volta e meia sou xingada de "religiosa" ao defender alguma coisa. É digno de nota que "religiosa" seja um xingamento num país de maioria religiosa. Por acaso a cidadania está condicionada a alguma ortodoxia ateia?

Por isso mesmo, é inequívoco o caráter político do movimento. Uma atração especial foi a possível presença do "Mito", que não se sabia se era boato ou não.

Estava eu assistindo aos minutos finais da apresentação de um acadêmico contrário ao “panteísmo” de Chardin e ao otimismo de Maritain cujo fim sempre era adiado quando enfim houve uma interrupção súbita. O Mito entraria numa videochamada pelo telão. O auditório ficou eufórico. Levantou-se, para aplaudir de pé, e eu acabei tendo que me levantar também, porque ninguém mais se sentou até a videochamada acabar, e não daria para enxergar o telão sentada. Na fala de Bolsonaro, nada fora do esperado. Registro apenas que ele se emocionou quando Pedro Affonseca identificou a pessoa de Bolsonaro, católico rejeitado e destratado pelo Bispo de Aparecida, com a deles próprios. Garantiu a Bolsonaro que ele não estava sozinho e eles, também católicos, estavam ao seu lado. A videochamada terminou com vivas ao Cristo Rei.

A Igreja, espelho do Brasil

O quadro político-cultural da Igreja é um retrato claro e retardatário do Brasil, pois há um evidente descompasso entre a cúpula do poder e a base da comunidade. Tanto no Brasil como na parte brasileira da Igreja, o poder foi capturado por cima, sem que a base mantivesse intacto o seu senso de pertencimento. O homem comum passou a ser um pária dentro de casa, seja ela o Brasil ou a Igreja, em função dos seus valores. A reação contra essas cúpulas vem da base, é calcada em valores morais e, em ambos os casos, encontra identificação com a pessoa do católico-pária e político do baixo clero Jair Bolsonaro. Os últimos serão os primeiros?

A classe média é sem dúvida mais politizada, por isso articula com mais clareza os seus descontentamentos em termos políticos e filosóficos. No entanto, os primeiros a reagir à elite foram os pobres. Foram eles que deflagraram, sem alarde, a debandada do catolicismo rumo às seitas pentecostais quando a Teologia da Libertação tomou a Igreja. Como não ousavam ter o poder de mexer com bispos indicados por Roma, fizeram o que estava ao seu alcance: juntar suas coisinhas e se mudar para quem lhes desse o que a Igreja parou de lhes dar.

Porque o neopentecostalismo brasileiro não deixa de ser uma imitação vulgar do catolicismo medieval, feita por quem já não encontrava o artigo original. Quando Lutero teve a brilhante ideia de que um homem sozinho deveria usar sua razão para entender os assuntos divinos lendo a Bíblia (ninguém acha razoável dar um manual de neurociência a um porteiro para que ele decifre, mas os protestantes acham muito sensato dar a Revelação), a Igreja era pintada como um antro de corrupção onde os homens de Deus vendiam indulgências. O racionalismo dos protestantes viria, ainda, a perseguir qualquer manifestação de origem sabidamente pagã (como o São João) e eliminar a magia do quotidiano.

Aqui no Brasil, os homens que se afastaram da Igreja buscaram justamente o que o protestantismo reprimiu na Europa: objetos mágicos como as relíquias dos santos ou lascas da cruz medievais (vide as bugigangas da Universal e os icônicos feijõezinhos de Valdemiro); a cristianização de ritos pagãos ancestrais (muita tinta já correu sobre as semelhanças entre candomblé, umbanda e neopentecostalismo); a utilidade ostensiva do dinheiro nas relações com Deus (vide as “ofertas”); bem como a magia presente no quotidiano. (Foi o caráter sincrético do neopentecostalismo brasileiro, tão típico do catolicismo medieval, que fez as religiões brasileiras crescerem na África como nenhuma outra.) Além de tudo isso, se a corrupção fosse uma preocupação constante do evangélico brasileiro médio, as grandes igrejas neopentecostais não teriam tantos fiéis. Edir Macedo dá a um fiel da Universal tanta orientação em matéria de política e cultura – dizendo sem hesitações o que ler ou em quem votar – quanto um bispo católico d’antanho, quando havia uma hegemonia cultural católica.

A criação do neopentecostalismo brasileiro foi, ao meu ver, uma nova Contra-Reforma feita nas coxas. Talvez os seus templos costumem ser tão feios, com umas estruturas tão improvisadas, por se saberem provisórias.

Investimento em cultura

O Centro Dom Bosco agora se empenha em concorrer com a Brasil Paralelo em produção de conteúdo. Foi apresentado com entusiasmo o trailer do filme Cimbres, que só não fica pronto, segundo o apresentador, por causa do capeta. O filme conta a história daquilo que esses católicos veem como uma prorrogação do milagre de Fátima no Brasil: Nossa Senhora teria vindo ao Brasil em Cimbres, Pernambuco, em 1936 para alertar quanto aos perigos do comunismo. A Igreja não confirma nem nega o milagre.

Há também uma editora voltada à publicação de conservadores e anticomunistas católicos, como o próprio D. Athanasius. De minha parte, comprei Comunismo: A inevitável consequência do livre exame protestante, de Jordán Bruno Genta (1909 – 1974). Trata-se de um nacionalista argentino assassinado por comunistas. Havia mais de um livro do autor à venda publicado pela editora.

Vejamos no que vai dar esse movimento cultural católico de base. O Brasil é um país criado pela Contra-Reforma, cujo povo tem, ao meu ver, uma índole contrarreformista, a despeito de nominalmente o protestantismo crescer por aqui.

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