Li O mínimo sobre conservadorismo (O mínimo, 2023), de Bruno Gaschagen. A obra consolida a tendência semeada no Brasil por Olavo de Carvalho de considerar que todo conservadorismo é um liberalismo, por mais que Garschagen afirme o contrário.
O opúsculo é dotado de uma apresentação no começo, um apêndice no final, e divide o seu recheio nos quatro capítulos seguintes: "O que não é conservadorismo", "O conservadorismo como disposição e como posição política", "Conservadorismo no Brasil" e "O que há para conservar?".
Capítulo 1
O primeiro capítulo expressa talvez a maior preocupação do livro, que parece ser a de tirar a mácula de vulgaridade que o modismo e o bolsonarismo teriam imposto ao rótulo "conservadorismo". À página 27, Garschagen dá uma indireta-direta nos bolsonaristas: "Se um político visto como conservador porque usa termos de uma agenda política que um conservador defenderia (família, por exemplo) fala e age de forma imoderada, imprudente, destemperada, radical, se revela uma posição anticonservadora porque é contrária à prudência aristotélica e ao ceticismo político, por exemplo, ele é um falso conservador e leva muitos a se tornarem também falsos conservadores que acham que são conservadores." Nesse trecho já vemos o que me parece ser um grande defeito da análise de Gaschagen: transformar o conservadorismo em etiqueta e bons modos, apelando para um vago conceito de prudência. Quem vai negar que é prudente? Imprudente é sempre o outro, nunca eu.
Ora, por mais problemas que eu tenha com os fiéis da Igreja Bolsonarista dos Últimos Dias, sua eventual falta de educação é uma coisa chata, não uma doutrina. Além disso, muitos dos brasileiros que apoiaram o ex-presidente aderiram ao rótulo de "conservador" pelas questões mais singelas do mundo. Se, por exemplo, estivesse em voga uma nova antropologia segundo a qual o homem não é um animal bípede, pois se situa num amplo espectro de membros, seria normal identificarmos a corrente "bipedista" com o conservadorismo, pois conserva o entendimento mais banal e tradicional da forma humana. A oposição conservadora à "comunidade membrodiversa" poderia variar desde a mais acadêmica à mais exaltada. O conservador pode notar que o filho tem muitos amigos convencidos de que são o Saci Pererê; pode ser um médico e ver seus colegas serrando pernas por dinheiro; pode ser um jornalista que estude as cifras movimentadas pela nova indústria de amputações. Coisas infames geram todo tipo de emoção, e usar o critério dos bons modos ("prudência") para decidir quem é conservador me parece uma colossal frivolidade.
No mais, registro que já no capítulo 1, à página 22, ele chama liberalismo de conservadorismo, dizendo que para o conservador o Estado só deve servir para coibir más ações, condenando como ideológica e revolucionária toda tentativa de usar o Estado para promover ativamente o bem: "Para o conservador, o uso do Estado para criação artificial de um determinado modelo de sociedade [... atribui] às instituições o direito de modelá-la (e piorá-la) de acordo com os interesses do grupo que estiver no poder. Um conservador entende que uma coisa é usar a lei e as instituições [...] para, por exemplo, desincentivar ou punir condutas violentas/criminosas, e até mesmo para proteger aqueles elementos materiais e imateriais que são caros aos conservadores; outra posição, que é revolucionária, é fazer das instituições [...] instrumento de imposição autoritária de projeto de poder político". Assim, se a sociedade decidir usar o Estado para, mais que preservar, promover um bem, Garschagen dirá que ela é revolucionária, ideológica, autoritária.
Capítulo 2
Tendo visto no capítulo 1 que o conservadorismo não é bolsonarismo, passemos ao capítulo 2. Nele, Garschagen faz um breve e interessante percurso histórico do conservadorismo inglês e do termo "conservadorismo".
Ele considera (e creio que isso seja o consenso possível) que o conservadorismo, enquanto corrente política específica que se opõe a outras correntes políticas dentro de uma sociedade, surge na Inglaterra. No entanto, para a minha surpresa, ele não liga diretamente esse surgimento às Reflexões sobre a Revolução Francesa (1790), do whig irlandês Edmund Burke. Penso que um manifesto político em defesa da tradição e contra a endeusadíssima Revolução Francesa (endeusada inclusive na Inglaterra, vide Thomas Paine) poderia servir de ponto pacífico. Porém, Garschagen considera que "o nascimento de uma política conservadora está diretamente relacionado à experiência histórica da monarquia inglesa e do sistema parlamentar adotado nesse país. Diferentemente do que ocorreu nas monarquias ibéricas, nas quais os reis foram vistos como libertadores por conta da luta contra o domínio muçulmano, no contexto britânico havia um elevado grau de desconfiança em relação ao monarca, o que, em parte, foi um dos fatores para a emergência do liberalismo. Restaurada a monarquia em 1660, após a fracassada aventura da república autoritária de Oliver Cromwell que durou de 1652 a 1659, ocorreu no parlamento britânico a divisão inicial entre as facções liberal whig e conservadora tory" (p. 35, grifo meu). Mais uma vez, ele escolhe realçar um traço liberal para marcar a identidade do conservadorismo, que é essa reação ao poder do Rei. Ora, ele passa em brancas nuvens sobre a dramática questão dos Cercamentos, que desencadeou tanto a Revolução Industrial quanto o caos social. O Parlamento ficou ao lado dos nobres que expulsavam os camponeses das terras que seus ancestrais ocupavam desde a aurora dos tempos; o Rei, ao lado dos camponeses... Até a monarquia ser extinta e voltar domesticada pelo Parlamento. No começo do século XX, Chesterton apontava para a peculiaridade inglesa — ruim, ao seu ver — de o país não ter camponeses, grupo humano mais propenso a manter um estilo de vida tradicional, preservar a liberdade e a se opor à engenharia social dos progressistas, que nem sempre precisavam do Estado para impor sua ideologia.
Para complicar ainda mais, após apostar na aversão liberal ao poder central, Garschagen escolhe a criação do Partido Conservador, a partir do torismo, como raiz do conservadorismo. Além de ser tributário da derrubada do Rei, o conservadorismo, em sua terra natal, passa a coincidir com a experiência histórica do Partido Conservador inglês criado em 1834.
Já o termo "conservadorismo", segundo documenta Garschagen, surgiu na França napoleônica, e foi criado por entusiastas da crítica burkiana da Revolução Francesa. No entanto, como lembra o próprio Garschagen, eles não se limitavam ao pensamento britânico; cultivavam ainda a memória de pensadores como o Conde Joseph de Maistre, que de liberal não tinha nem o mindinho. Mas, como o autor resolveu atrelar o conservadorismo ao Partido Consevador, acaba listando (à página 40) Margaret Thatcher como conservadora. Ora, Margaret Thatcher era uma notória neoliberal (ou liberal, se preferirem); no campo dos costumes, defendia o aborto e os gays.
Ainda nesse capítulo, Garschagen lista os "elementos essenciais" do conservadorismo: tradicionalismo, organicismo e ceticismo político. O tradicionalismo seria o apego à tradição e às instituições políticas herdadas. Por isso "os verdadeiros conservadores rejeitam o democratismo, o nacionalismo, o socialismo, o comunismo e o populismo, pois todas essas concepções ideológicas são revoltas ideológicas contra as bases tradicionais que alicerçam a sociedade" (p. 44). O liberalismo, não; o conservador não rejeita. O conservadorismo católico não raro se aproxima do nacionalismo; mas, por alguma razão o nacionalismo é ideológico e o liberalismo, que acabou com a vida camponesa tradicional na Inglaterra, não consta nessa lista de ideologia contrária aos alicerces da sociedade.
Quanto a organicismo, vamos à explicação de Garschagen: "O conservador entende que a sociedade, diferentemente das noções liberais, não é composta de indivíduos abstratos [...], mas de seres sociais, relacionados entre si dentro de uma textura de costumes e de instituições herdados que os dotam de sua natureza social específica. Desse modo, ao defender o Estado de Direito, a economia de mercado (e não o liberalismo econômico) ou o sistema representativo, o conservador não propõe modelos absolutos" (p. 49). De fato, o aspecto social é algo que afasta o conservadorismo do liberalismo. Por isso mesmo, é incompreensível que Garschagen tenha classificado Margaret Thatcher como conservadora, haja vista que, como todos sabem, para ela não existe sociedade, mas sim indivíduos: nada mais liberal, nada menos conservador. Porém, Garschagen parece ter criado uma distinção que só existe na cabeça dele entre a economia de mercado defendida por Thatcher e o liberalismo econômico.
Quanto ao ceticismo político, pode ser resumido como uma descrença frente a utopias. Listados os "elementos essenciais", Garschagen passa então a discorrer sobre "o valor da ordem", "a relevância da autoridade" (com a qual eu concordo, mas fica difícil entendê-la se ele remete o surgimento do conservadorismo à desobediência ao Rei), à "política da imperfeição de da prudência" (onde ele reduz outra vez o conservadorismo a bons modos) e last, but not least, discorre sobre "conservador nos costumes, liberal na economia", coisa que, segundo ele, não existe.
Ele afirma que "o conservador não é liberal na economia; o conservador é a favor da economia de mercado. Isso significa que o conservador defende uma economia privada e a mais livre possível dentro de um determinado contexto e situação, não sendo essa uma posição dogmática que não pode ser alterada em razão de circunstâncias específicas" (p. 69, grifo meu). Qual será o mais livre possível dentro de um contexto e situação? Não sabemos; é vago. Ele poderia dar um princípio balizador, mas não dá. Uma economia altamente regulada é considerada uma "economia de mercado"? Parece que sim, já que ele argumenta assim: "o termo 'economia de livre mercado' é falso porque, em qualquer país ocidental, inclusive nos mais livres segundo o índice da Heritage Foundation, há leis, regras e, portanto, intervenção estatal. Não existe, portanto, nenhum país com economia totalmente livre que permita o uso da expressão 'economia de livre mercado' sem cair numa contradição". Então na tábua de Garschagen só há três possibilidades conceituais de organização econômica: comunismo, economia de mercado e anarcocapitalismo. O que ele chama de liberalismo é anarcocapitalismo, e o que ele chama de economia de mercado é o neoliberalismo de Reagan e Thatcher.
Por aí se vê que ele, embora seja um conservador católico, nunca passou as vistas num compêndio de Doutrina Social da Igreja, que usa a expressão "livre mercado" (diz que "é uma instituição socialmente importante pela sua capacidade de garantir resultados eficientes na produção de bens e serviços") ao tempo que exorta do Estado a orientá-lo e dirigi-lo ("o livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico"). Alguém precisa avisar ao Vaticano que a Doutrina Social da Igreja usa conceitos falsos e é revolucionária, porque Garschagen diz. Certas coisas do "conservadorismo" egresso do olavismo impressionam; ainda mais no Brasil, um país cuja formação obriga qualquer conservador, independente do credo, a ter algum conhecimento das instituições católicas.
Quanto à segunda parte do mote, "conservador nos costumes", Garschagen também rechaça, porque "como o conservador olha para o passado como um sábio conselheiro, vai defender um determinado costume que é correto e virtuoso assim como rejeitar o costume que é errado e vicioso" (p. 72). Como discernir o tipo de costume? Parece que o tempo ajuda, pois há "posições circunstanciais adotadas no passado, num dado momento histórico, cultural, social específico, mas que são, atualmente, inaceitáveis". Já que conservadorismo é bons modos, é possível concluir que um conservador deve aceitar algo como a membrodiversidade, desde que converse com um Saci Pererê educado. É mais ou menos o ethos do Partido Republicano nos EUA; e se você for além do Partido Republicano, é um extremista mal-educado.
Capítulo 3
Voltando para o Brasil, vamos ao capítulo 3, que trata do conservadorismo no Brasil. Embora alegue não transplantar estrangeirismos para analisar a realidade brasileira, é exatamente isso que ele faz. Garschagen decalca na História do Brasil os mesmos contornos que ele traçara na História da Inglaterra. Cá como lá, ele faz coincidirem conservadorismo com Partido Conservador. Aqui, explica ele, tal partido "era uma das duas grandes forças políticas do país durante o Segundo Império (ou Segundo Reinado, como se convencionou chamar)" (p. 80). A outra grande força era o Partido Liberal, e o Imperador, pelo jeito, não é computado como grande força, fazendo as vezes de (literalmente) Rainha da Inglaterra.
Assim, tal como o conservadorismo inglês seria (segundo Garschagen) um fenômeno parlamentarista numa monarquia limitada, o conservadorismo brasileiro idem, limitando-se a sua existência histórica ao Segundo Reinado. Luzias e saquaremas são transpostos para a realidade dos whigs e tories.
O resumo que ele faz do período se baseia quase que exclusivamente na obra Os construtores do Império, do historiador monarquista João Camilo de Oliveira Torres (1915 - 1973). Os monarquistas brasileiros costumam execrar a Proclamação da República como um abominável golpe militar, e Garschagen faz o mesmo. Mas para ele isso é ainda mais pesado, porque acabou o Partido Conservador, que foi a nossa "luminosa constelação política". Depois de 1889, só trevas. Aprendemos que "no Brasil de hoje [...] existe um regime revolucionário anticonservador e impossível de ser reformado", de modo que "o conservador será agente ativo da mudança de regime, optando, preferencialmente, pelo modelo que já vigorou no país no século XIX e fazendo as devidas adaptações", a fim de "criar incentivos positivos para debelar crises [...] sem a demora e o trauma de um processo de impeachment presidencial" (p. 113-114). Ou seja, depois de fazer a Lilia Schwarcz e ficar chorando as pitangas do "autoritarismo brasileiro", temos que virar parlamentaristas para ficar derrubando presidente com facilidade, porque isso é muito conservador e respeitador da autoridade.
Pois bem, em meio às pinceladas históricas do capítulo, uma coisa que fica de fora são as políticas centralizadoras dos gabinetes conservadores do Segundo Reinado. Oliveira Vianna, conservador e ideólogo do Estado Novo, é todo elogios ao Partido Conservador do Segundo Reinado por causa do seu antiliberalismo e centralismo. O próprio Pedro II, que fazia e desfazia gabinetes ao seu bel prazer, também não tinha lá muito jeito de Rainha da Inglaterra não. A História do Conservadorismo Brasileiro segundo Garschagen é uma versão ficcional, e liberal, do Segundo Reinado. E só.
Capítulo 4
Se vivemos num vale de lágrimas desde 1889, o título do capítulo 4 é sintomático: "O que há para conservar?". A resposta? A língua portuguesa! Ele cita o português "como exemplo óbvio" à página 120. Muito bem, procuro os exemplos não óbvios... Para encontrar assuntos de revista de viagens: "história, idioma, sotaques regionais, gastronomia, música, literatura, as várias influências e legados de povos distintos" (p. 121-122). E pronto.
O conservadorismo de Garschagen é a versão de direita da Anti-História do Brasil. Para os progressistas, a História do Brasil é um vale de lágrimas desde 1500, com a "invasão" portuguesa. Para Garschagen, é um vale de lágrimas desde 1889. (Entre as calamidades que nos ocorreram, Garschagen lista à página 118 o "intervencionismo na economia" de Vargas e o "desenvolvimentismo" dos militares de 64 -- por aí vemos, mais uma vez, que é um thatcherista.) Mas se os woke vislumbram um final feliz da História nas políticas identitária de Lula, Garschagen já descartou o bolsonarismo e até a nova direita surgida em 2013, que estaria, para variar, "na linha do florianismo, do varguismo, do autoritarismo dos governos militares e do populismo da Nova República" (p. 119). Isso é "parte", claro. A parte boa da nova direita, ao que parece, se resume a Garschagen e só a ele, o único conservador do Brasil.
Por essas e outras, prefiro dizer logo que sou reacionária.
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