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Com os movimentos que pregavam o isolamento social durante a pandemia, espaços tradicionais de convívio, como as praças, viraram desertos de gente e ideias.
Com os movimentos que pregavam o isolamento social durante a pandemia, espaços tradicionais de convívio, como as praças, viraram desertos de gente e ideias.| Foto: Bigstock

Com o advento do fiquincasa, tornou-se bastante visível o efeito de bolha a que se submetem alguns grupos sociais. O aspecto político eu creio que tenha sido notado por qualquer um que não seja progressista, pois todo mundo de classe média tem um conhecido que pirou na batatinha e acha que o Brasil é a mesma coisa que o Twitter. Que o mundo se divide entre negacionistas obscurantistas e iluminados científicos etc. Que todos os que não concordam com os progressistas são maus como pica-paus, ou então ingênuos à espera de conversão.

Mas o que me saltou às vistas também foi a falta de contato dessa bolha letrada com outras classes sociais. Afinal, o fiquincasa não só expulsou as domésticas (agora vistas como vetor de doença, tal qual um aedes aegypti) como trouxe os aplicativos. A relação entre patroa e doméstica dificilmente era impessoal: uma conhecia mais ou menos as opiniões das outras, e até tinham uma tímida curiosidade mútua em época de eleição. (Com o devido cuidado para não deixar a mera curiosidade resvalar para uma discussão política). Os aplicativos, bem ao contrário, são impessoais – e ainda convidam o cliente a deixar a sua avaliação anônima, impessoal e irresponsável.

Antes, era possível um freguês ter uma relação cordial com o taxista. Essa cordialidade amiúde incluía, sobretudo entre homens, a conversa sobre política – só mesmo feminista que nunca pôs um pé num bar pé sujo para achar que mulheres gostam tanto de discutir política quanto homens. Nos botecos, os homens adoram discutir futebol, política e feitos sexuais. Desconheço boteco onde todos torçam para o mesmo time ou onde todos tenham as mesmas opiniões políticas – e, se assim fosse, creio que ficariam entediados ou teriam que inflacionar mais ainda os próprios feitos.

Mas, por alguma razão, taxistas falam de política com todo mundo e está para nascer taxista de esquerda. Assim, entrar no táxi e ouvir opiniões direitistas era uma coisa banal. Ninguém achava que o taxista era Hitler encarnado e que o fato de ele ter um pensamento o tornava um homem perigoso, muito mais perigoso do que as “vítimas da sociedade”.

Hoje, porém, vemos nas redes sociais os progressistas se gabando de dar uma estrela para o motorista que falou isso ou aquilo. Na certa os pobres que trabalham em aplicativo já estão todos ressabiados; terão aprendido que é melhor ficar de bico fechado para não ofender gente chique.

Assim, o progressista fica em casa sozinho, interagindo pela Internet com gente selecionada para a sua bolha. A essa altura, ele já brigou com todos os amigos e familiares “negacionistas” ou “radicais de extrema direita”. Seu contato com gente de classes inferiores se resume a encontros fortuitos e impessoais intermediados por aplicativos que estimulam denúncias anônimas contra os empregados.

Shoppings, praias e praças

Tenho a impressão de que o fiquincasa aprofundou uma tendência de existência prévia nas grandes metrópoles. Senão, vejamos: qual é o espaço compartilhado por gente de favela e de apartamento? São os shoppings, a praia e as praças. Todos, porém, são espaços amplos, onde o anonimato pode ser preservado. Com anonimato, há parcas chances de gente de classes diferentes desenvolverem relacionamentos cordiais nesses espaços.

Na verdade, até há shoppings e praias frequentados só por pobres ou só por endinheirados, e os shoppings de várias classes sociais costumam ter uma divisão espacial que separa o perfil socioeconômico do consumidor. Desse trio – shopping, praia, praça –, somente as praças costumam ser classificadas por critérios alheios à renda. Não há praça de rico e praça de pobre, nem praça com área VIP. Em vez disso, há somente as praças boas de levar criança e as praças perigosas, tomadas por cracudos.

Além de crianças, o primeiro tipo de praça atrai corredores, velhos e pequeno comércio ambulante. Como essas praças costumam ficar em bairros nobres, as crianças de apartamento iam com a babá em qualquer dia da semana e as da favela iam apenas nos finais de semana, com a família. Os corredores são moradores das cercanias e os velhos vêm de todos os cantos da cidade jogar dominó, conversar e admirar as passantes. À exceção do corredor, que pode dar voltas sem nem tirar os fones do ouvido, toda essa gente de classes sociais distintas terminam por desenvolver relações cordiais entre si e com o pequeno comércio. Na praça, onde o ambulante é dono do próprio negócio, as relações são bem diferentes das do shopping, onde os funcionários são voláteis. Digamos então que, dos espaços amplos e frequentados por todas as classes sociais, a praça é a resistência da cordialidade. E é justo a mais atacada pela pandemia.

E que essa separação de classes seja uma tendência prévia à pandemia, basta perguntarmos se há alguma grande capital onde haja mais gente em shoppings do que em praças no final de semana.

O comércio de rua e as calçadas

Fora dos shoppings, o comércio das grandes cidades é dito “de rua”. Na maioria das cidades pequenas brasileiras, se um comerciante resolver abrir negócio voltado apenas a consumidores ricos, dificilmente terá sucesso. A explicação é demográfica: não havendo uma quantidade relevante de ricos, não há clientela para manter o negócio.

Assim, só em metrópoles é razoável esperar que exista um leque de espaços comerciais a serem frequentados exclusivamente por gente rica, sem que o cliente divida o espaço nem uma vezinha com um favelado. Por outro lado, dentro de uma cidadezinha, o magnata que resolvesse almoçar fora fatalmente iria para um restaurante onde moradores de favela põem os pés (nem que seja só em almoço de domingo). Afinal, um restaurante exclusivo para ricos nessas cidades é inviável economicamente.

Comércio de rua, em metrópole, permite que a gente de apartamento viva somente com gente de apartamento, em bolha. Se tiver relação cordial com alguém de classe diferente, será com funcionários.

Vamos por fim à rua comum. Seja por temer assaltos ou por causa do status do carro, a gente de apartamento em geral faz o possível para não pôr o pé na rua. Em bairros endinheirados, há uma profusão de mendigos nem sempre amigáveis na cola do pedestre. Se estiver escuro, muita mulher fica com medo. E quando se demonstra medo, já era – mendigos agressivos e trombadinhas fazem a festa, deixando de lado a regra básica de não roubar morador.

Daí resulta que carro se torna uma “necessidade” para andar daqui para ali desacompanhada. Uma vez transformado em necessidade, carro vira hábito e a gente de apartamento entra nessa espécie de cápsula que priva do contato com a rua e despeja dentro de um local conhecido. Com os aplicativos, até jovens pé rapados mantêm a pose e andam de carro para lá e para cá, com um cartão providenciado pelos pais.

Aos poucos, as pessoas se dão menos a chance de conhecer mais a vizinhança, o dono da banca de revista, o verdureiro. Se for comprar um pão tête-à-tête com o padeiro, sem usar o aplicativo de entrega, poderá enfiar a cara no smartphone e prestar o mínimo de atenção possível à realidade à volta.

No fim, essa gente vai ficando cada vez mais alienada e, com isso, cada vez menos capaz de cordialidade. Afinal, como ser cordial com o taxista, se antes mesmo de olhar para a cara dele você já aprendeu na Internet que quem tem tais opiniões é genocida?

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