Muita tinta já correu para mostrar que, a despeito de ser muito defendida da boca pra fora, a liberdade de expressão tem muito poucos adeptos sinceros. De fato, muita gente diz "eu sou a favor da liberdade de expressão, mas", para acrescentar algo que anula por completo a oração anterior à adversativa. Outro exemplo é o bordão "liberdade de expressão não é liberdade de opressão", proferido por criaturas mimadas que se declaram oprimidas por opiniões diferentes, ou até por etimologias falsas, como a de "criado mudo". Aí, está claro que a "liberdade de expressão" defendida é uma farsa, um termo vazio.
Mas, porém, contudo, todavia, até mesmo os ditos absolutistas da liberdade de expressão defendem algum tipo de limitação. Uma boa fonte para se inteirar desse debate é Contra toda censura (Avis Rara, 2022), do diplomata Gustavo Maultasch. O livro é informativo, bem documentado (com fontes históricas do debate jurídico dos EUA) e razoavelmente argumentado. Disso não se segue, é claro, que eu concorde com ele: já o critiquei aqui e aqui.
Em resumo, se vocês procurarem uma boa fonte (como o livro de Maultasch), vocês vão ver que os limites admitidos pelos absolutistas costumam se embasar no princípio do dano, o mesmo usado pelos justiceiros sociais para censurar todo o mundo. A diferença é que os liberais fiéis a Mill só aceitam o dano iminente e objetivo para censurar, tendo como exemplo clássico a proibição de gritar "fogo" à toa num teatro lotado. É muito mais fácil crermos que esse grito causaria mortes por pisoteio do que levarmos a sério que alguém vá ficar traumatizado por ler "criado mudo". O princípio do dano traz muitas incertezas, e é bem diferente da proibição de certas ideias, como o racismo. O mundo cristão esteve por vários séculos acostumado à proibição de heresias, que são teses específicas que podemos identificar de modo objetivo; assim, não foi difícil criminalizar certas teses e seitas políticas.
O caso do racismo é justamente o divisor de águas entre a censura clássica, advinda da Inquisição, e a censura nova, lastreada no princípio do dano dos utilitaristas. Os liberais fiéis a Mill resolveram que censurar ideias é mais danoso do que refutá-las em público, de modo que o nazismo e o racismo não devem ser criminalizados.
De fato, muita gente diz "eu sou a favor da liberdade de expressão, mas", para acrescentar algo que anula por completo a oração anterior à adversativa
Assim, houve um caso emblemático nos EUA que consolidou esse entendimento milliano da Suprema Corte. Uma pequena vila chamada Skokie tinha muitos imigrantes judeus europeus que conseguiram escapar de Hitler. Por isso mesmo, neonazistas resolveram fazer uma parada lá. Daí a vila quis proibir, mas a ACLU, uma ONG que defende a liberdade de expressão radical, resolveu defender pro bono os neonazistas, contra a vontade popular (que deveria legitimar a democracia). Os EUA são a terra das ONGs, que a seu turno são de bilionários. Só por isso, já daria para uma ONG defender neonazista pro bono sem virar pária.
No entanto, a ACLU fez uso do lugar de fala de um dos seus advogados, que era judeu, defendeu os neonazistas e venceu, obrigando a vila de Skokie a aceitar a livre expressão de neonazistas. A história é de 1977. Surgiu aí, creio, a melhor peça publicitária em defesa da liberdade de expressão "absoluta" como valor civilizacional, capaz de unir judeus "esclarecidos" e neonazistas (deixando de fora, porém, os judeus de Skokie).
Por aí se entende por que Monark "defendeu o nazismo": ele na verdade defendeu a liberdade de os nazistas se organizarem em partidos, ainda que ele mesmo não seja nazista e esteja longe disso. O que ele defendeu é literalmente a normalidade política dos Estados Unidos, e não uma extravagância pessoal de Monark.
Mas Monark foi cancelado. Uma possível conclusão é que o "lugar de fala" é bem importante para se adotar esse tipo de postura. A ACLU se blindou colocando um advogado judeu à frente; Glenn Greenwald, judeu, antes de virar jornalista com o Wikileaks, era o advogado ativista em prol da liberdade de expressão que defendia neonazistas pro bono; e Gustavo Maultasch, entre nós, defendeu a ACLU, divulgou o caso Skokie e também frisou ser um judeu cuja avó sobreviveu ao Holocausto. Ao cabo, a defesa libertária ou liberal dos direitos de neonazistas parece ter se tornado uma prerrogativa de judeus.
Veja-se agora o caso de Breno Altman. Nas condições normais de temperatura e pressão, um jornalista investigado (sic) pela PF por causa de tuítes seria uma óbvia vítima a ser defendida pelos campeões da liberdade de expressão. Se eles defendem neonazistas, por que não defender Breno Altman? Que eu saiba, ele não defendeu neonazista nenhum (pelo contrário). Ainda por cima, é judeu de origem polonesa que também perdeu parentes para o Holocausto. Não bastasse isso, um grupo de WhatsApp de centenas de pessoas revoltadas com seus tuítes discutiu a possibilidade de fazê-lo mudar de ideia arrancando-lhe os dentes ou cortando-lhe os dedos. Especulavam que, se um parente seu morresse, ele não escreveria essas coisas.
Essas são apenas algumas ideias chocantes, que surgiram após um dos membros assegurar que já tem gente se empenhando em calá-lo. A notícia é de outubro do ano passado; desde então, tem havido uma escalada na perseguição judicial e policial a Breno Altman em função de tuítes. A coisa mais comprometedora de que conseguiram acusá-lo até agora foi de racismo com base num tuíte (apagado após decisão judicial) em que ele dizia que, para a resistência palestina, "não importa a cor do gato, desde que cace os ratos", como no provérbio chinês. Essa é uma famosa citação de Deng Xiaoping, aludindo à abertura da China comunista à economia de mercado. Numa evidente forçação de barra, porém, conseguiu-se fazer colar a acusação de racismo, alegando-se que o judeu estava chamando judeus de ratos. O pior: a mesma mídia que até 2 segundos atrás execrava as distorções da grande imprensa contra os bolsonaristas não raro faz as mesmas distorções contra o petista, sem sequer se dar ao trabalho de informar que é judeu. Civilidade é não fazer aquilo que reprovamos. Quanto aos defensores da liberdade de expressão de direita, só contei um apontando para o absurdo: Hugo Freitas, advogado liberal que costuma contribuir com este jornal. Fora da direita, creio que só Glenn Greenwald e o PCO têm mantido a coerência na defesa absoluta da liberdade de expressão e dedicaram atenção ao caso.
O caso Breno Altman, porém, deveria interessar a qualquer brasileiro preocupado com ingerência de países estrangeiros no Estado brasileiro. Como assim estão trabalhando para calar a boca dele? Que terceira pessoa plural é essa, que parece ter poderes sobre o Judiciário e sobre a Polícia Federal? Aliás, como é que a PF vai investigar tuíte? Vai pagar a algum servidor para ficar acompanhando as redes dele, igual a Xandão com Monark? Pode até ser, mas a direita até dois segundos atrás achava isso muito feio e agora acha muito bonito, porque é um "antissemita" malvadão de esquerda.
De todo modo, vale a pena acompanhar as acusações dele contra o CONIB, que, segundo informa, usa até número de Israel em vez de brasileiro, apesar de acusar de antissemitismo quem diz (como Breno) ser uma entidade sionista que representa interesses estrangeiros. De minha parte, acho escandaloso que um grupo estivesse discutindo em privado a perseguição a um jornalista, e esse jornalista -- não os seus algozes conspiradores -- desperte a atenção da polícia por causa do que ele publica para todos lerem, sem segredo algum. Breno Altman chamou um bocado a atenção de Flávio Dino no Twitter, em vão. O fato de o PT ter feito uma notinha de repúdio gerou uma comoção na direita, mas é só isso: notinha de repúdio. As autoridades indicadas pelo Executivo petista não fizeram nada.
Mas voltemos à direita liberal. Sua má vontade poderia ser só por Breno Altman ser petista, mas há um outro fator: a fetichização da identidade judaica por parte da direita americanófila, aquela que se pretende conservadora mas é só tiete de Reagan e Thatcher. O que o negro é para a esquerda identitária, o judeu é para essa direita. Faz-se um drama porque alguém "relativizou" os ataques do Hamas, porque é preciso condenar o Hamas até em festa de boneca (ou coisa pior, como fez Alan Dershowitz, cancelador de Finkelstein e advogado que deve representar Netanyahu, no contexto mais extravagante). Por outro lado, nenhum direitista desses faz drama porque alguém "relativizou" os crimes de guerra israelenses contra a população civil de Gaza. Ao contrário: engole-se muito bem a história de que Israel tem o direito de destruir toda a superfície de Gaza (com seus habitantes de todas as idades) porque o Hamas está a salvo debaixo de Gaza.
Tanto no caso da esquerda identititária como na direita "liberal-conservadora", a idolatria da raça resvala ao mesmo tempo para o baixo nível intelectual e para o supremacismo racial. Nas páginas deste jornal, cheguei a manifestar minha surpresa com o fato de a intelectual petista Djamila Ribeiro ter escrito em seu best seller que Gilberto Braga é racista por ter colocado uma atriz branca para interpretar a escrava Isaura do romance. É um erro crasso, mas ninguém liga para o conteúdo do texto quando o que importa é a cor de ébano da escritora.
Qual não é minha surpresa, então, com a qualidade do texto "O que significa para os judeus serem o povo eleito?", do guia turístico Marcos Susskind, que parece se portar como representante não-eleito dos judeus do mundo. Qualquer pessoa com um mínimo de instrução em humanidades (categoria que sem dúvida inclui uma quantidade proporcionalmente grande de judeus) pensaria duas ou três ou um milhão de vezes antes de escrever que "fomos eleitos [isto é, os judeus] para levar ao mundo uma série de mensagens tais como [...] o conceito de ética e moral; os conceitos de não matar, não roubar, não dar falso testemunho etc." A pessoa que escreve uma barbaridade dessa nunca ouviu falar da República de Platão na vida, para achar que é possível uma sociedade humana se organizar sem princípios morais, ou que só os judeus tiveram a brilhante ideia de não sair matando todo o mundo por aí (aliás, Gaza agradeceria se essa ideia fosse disseminada entre judeus sionistas). No mais, a menos que se inventem distinções idiossincráticas, ética e moral são a mesma coisa, uma de raiz etimológica grega e outra de raiz etimológica latina. Moralis é apenas a forma latina inventada por Cícero para traduzir ἠθική (ethiké) do grego séculos antes de os discípulos de Jesus ganharem Roma. Jesus, porém, é para os judeus religiosos um falso profeta, de modo que não deve contar como moralizador do Ocidente segundo os critérios do articulista.
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