Na noite de domingo, os baianos interessados por cultura fomos dormir com a sensação de ter sofrido um atentado terrorista. Apareceu uma notinha curta do A Tarde dizendo que o prédio do Arquivo Público, mesmo tombado pelo IPHAN, ia ser leiloado no dia seguinte, na segunda-feira, para pagar dívidas da Bahiatursa. Trata-se da antiga estatal baiana de turismo criada no período militar e convertida, por Rui Costa, em superintendência estadual sujeita à Secretaria do Turismo.
Além de abrigar o segundo maior Arquivo do Brasil, o prédio não é qualquer coisinha. Conhecido como Quinta do Tanque ou Quinta dos Padres, o prédio foi construído no século XVI para ser moradia dos jesuítas, em terreno doado já pelo próprio Thomé de Souza, fundador da Cidade do Salvador.
Quem morou lá foi Antonio Vieira. Vieira chegou à Bahia com apenas oito anos de idade e estudou no Colégio dos Jesuítas (que hoje abriga a antiga Faculdade de Medicina da UFBA). Lá ele teria se tornado inteligente após rezar para a Nossa Senhora das Maravilhas pedindo para deixar de ser burro. Teve então o seu famoso “estalo” e passou a compreender todas as matérias. (Pessoas com problemas intelectuais podem ir ao Museu de Arte Sacra, bem cuidado pela UFBA, e pedir ao guia para mostrar a própria Nossa Senhora das Maravilhas, que ganhou uma roupinha de prata no século XVIII.)
Depois de se formar e de viajar pelo mundo em sua vida rocambolesca, aquieta-se na Quinta do Tanque para coligir e editar os seus monumentais Sermões. Como a imprensa era proibida no Brasil ibérico (no holandês, não), os manuscritos redigidos na Quinta do Tanque iam para Portugal de barco a fim de alcançarem a arte de Gutemberg. Ainda bem que o barco não naufragou.
O valor histórico do prédio é inestimável. Assim, mesmo que porventura seja concebível uma privatização bem feita, com um Estado fiscalizando o prédio tombado e cobrando da iniciativa privada que o mantenha nos trinques e aberto ao público, essa história de leilão súbito é preocupante, para lá de mal contada. Aliás, e o Arquivo Público lá abrigado, que fim levaria? Nem uma palavra sobre!
História cabeluda
A notícia-bomba do A Tarde fora ao ar uma e meia da tarde. Quase uma hora depois o Correio noticia que o lance mínimo seria de 5 milhões, sendo que o imóvel estava avaliado em 12 milhões. O leilão ia ser da segunda até as 10h de terça-feira, 9 de novembro. Os lances seriam dados on-line na Cravo Leilões, que, segundo o site, fica em Salvador e foi fundada por um tal Viriato Cravo. Será da família Cravo, sediada lá em Cravolândia? Descendentes do escultor Mario Cravo Jr. estavam tentando arrancar uma bolada da prefeitura para deixar refazer a escultura inflamável que pegou fogo na Cidade Baixa.
Quanto ao destino do Arquivo Público, é um mistério completo: o Correio informa que os próprios funcionários foram pegos de surpresa. O Arquivo funciona lá desde 1980 e tinha passado por uma boa reforma em 2020.
No mais, segundo o Correio, ainda no domingo, a “notícia do leilão logo provocou uma enxurrada de notas de repúdio emitidas por entidades de arquitetos e arquivistas ligados ao patrimônio e à Universidade Federal da Bahia”. As entidades que se manifestaram foram a Faculdade de Arquitetura da UFBA, a Associação dos Arquivistas da Bahia e a Seção Bahia da Associação Nacional de História. Chama a atenção, porém, a ausência de entidades e pessoas muito rápidas em emitir notas de repúdio e textões de rede social. A UFBA e sua Reitoria não falaram nada até o presente momento. Seu puxadinho, a Academia de Letras da Bahia, nem tchum. Wilson Gomes, muitíssimo ativo nas redes sociais, neca.
Que eu tenha visto, manifestaram-se nas redes sociais a dramaturga Aninha Franco e o jornalista sem diplomas James Martins. Aninha disse que ia recorrer ao Ministério Público. James, que esse sim era o caso de fazer “ocupação”, pegar em armas e o diabo, fazer aquela papagaiada toda que uma turminha faz quando o mandatário não é do PT. James acha que a reforma do Arquivo tinha a venda em vista, e, dado o descaso manifesto pelo leilão, é difícil discordar dele. E lembrou que Vieira era mulato.
Mais escuro que Marighella?
Pois é: como conta o historiador Ronaldo Vainfas em “Vieira” (Companhia das Letras, 2012), são sabidas as origens étnicas de Vieira graças ao tribunal da Inquisição. O homem era mais escuro do que seus conterrâneos lisboetas, mesmo que muitos descendessem de mouros, e se empenhava muito em ocultar a identidade dos avós. A mãe era uma pobre alfabetizada, coisa frequente apenas entre cristãos-novos. E seu pai, Cristóvão Ravasco, era mulato, filho de um mulher escura proveniente da Índia ou da África, segundo as testemunhas arroladas pela Inquisição.
Os sangues feios de se ter na Inquisição eram então o sangue pagão dos negros da África e, sobretudo, dos judeus. Portugal começou a importar escravos no século XV, ainda antes de descobrir o Brasil. Lisboa medieval bem poderia ser cenário histórico da Netflix, já que os negros não eram raros, e, no século XVI, até escravo japonês se podia achar por lá.
Mas foquemos no lado judaico, que era o mais importante, e conexo com o fato de Vieira ter sido levado à Inquisição: uma heresia dos cristãos-novos que se espalhou pelo Brasil chamada Sebastianismo. Nasceu por volta de 1.500 o cristão-novo Gonçalo Bandarra, numa aldeia de cristãos-novos, e compôs as Trovas do Bandarra, uma obra de profetismo que falava da volta d’O Esperado, d’O Desejado. A interpretação mais corrente da profecia era que D. Sebastião haveria de voltar. Com seu desaparecimento em Alcácer-Quibir, a Coroa de Portugal terminaria açambarcada pela de Espanha, senhora de uma Inquisição ferocíssima com os judeus e cristãos-novos.
Excêntrico, Vieira seguiu a tradição do profetismo e chegou até a escrever uma História do Futuro onde previa o advento do Quinto Império, com um Portugal mercantil, global, cristão, levando sua fé junto com suas mercadorias à maneira dos judeus e dos apóstolos. (Ele traçava uma continuidade entre judaísmo e cristianismo nada usual para a época.) Caíra na mão da Inquisição por ter escrito uma carta ao Bispo do Japão profetizando a ressurreição de D. João IV, que seria enfim O Esperado e tiraria Portugal do jugo de Espanha.
Filossemita, Vieira se deu muito bem em Amsterdã e fez o máximo para que Portugal tolerasse os judeus de Pernambuco, após a expulsão dos holandeses. Na França, foi o confessor de Cristina da Suécia – mulher privilegiada, já que tivera aulas particulares com Descartes e desempenhou papel importante em sua filosofia, apontando-lhe a necessidade de explicar a interação entre o corpo e alma tão bem separados por sua filosofia.
Figura importante na Europa, viajou à Amazônia em pleno século XVII para converter índios e atuar contra a sua escravidão. Quanto aos negros, tem um sermão alegando que são os filhos prediletos de Maria, uma vez que sofrem na terra como Jesus. Não aviltou os negros em função do pecado de Cam, como faziam tantos; em vez disso, deu-lhes uma dignidade superior no além.
Se o movimento negro fosse sério, se debruçaria sobre esse personagem singular do Brasil colonial que passou o fim da vida na Quinta do Tanque editando os Sermões que lhe valeriam, no século XX, o epíteto de Imperador da Língua Portuguesa. Mas o movimento negro e seus bajuladores brancos não deram um pio e preferem ficar fantasiando um Marighella negão em guerra racial.
Em que deu?
Aqui, outra vez a história fica mal contada. Primeiro apareceu no Bahia Notícias que, “após anúncio do leilão […], a Secretaria de Comunicação da Bahia (Secom) divulgou uma nota da Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE-BA) para esclarecer o imbróglio judicial que teve início nos anos 1990, na de Nilo Coelho (PMDB). Diante do impasse, o governador Rui Costa garante que ‘adotará todas as medidas para que o imóvel, de inestimável valor histórico e cultural, retorne ao patrimônio público em propriedade plena, sem ônus algum’.” Então a Quinta do Tanque foi a leilão por cinco milhões sem que ninguém soubesse de nada?
Embora jogue o imbróglio da Bahiatursa no colo de Nilo Coelho, senhor de terras em Guanambi que assumiu o governo baiano após a renúncia de Waldir Pires, segundo o que depreendemos da matéria, quem teve a brilhante ideia de botar a Quinta do Tanque em penhora foi o carlista Paulo Souto, já que isso ocorreu em 2005. (“Carlista” é como todo baiano chama os aliados de ACM, que nem sempre eram do PFL. Um ex-carlista hoje famoso no cenário nacional é Otto Alencar.)
Essa sinalização de Rui Costa foi noticiada segunda. Nesta terça-feira, a Metrópole noticiou a suspensão do leilão por intervenção do Ministério Público. Não se informa quem acionou o MP-BA. De todo modo, o MP obriga a Fundação Pedro Calmon, que é do Governo do Estado e gere o Arquivo, a explicar dentro de 60 dias onde ela planeja botar o diabo do arquivo, que é o segundo maior do país.
Mobilização apartidária da sociedade baiana
Vale ressaltar que o leilão foi suspenso, e não cancelado, de modo que é necessário manter o alerta. Ainda assim, há que se comemorar a rápida mobilização da sociedade baiana, seja na figura de pessoas particulares (entre as quais me incluo), seja de entidades e associações de classe. Tais entidades costumam ser de esquerda e até cheias de petistas, mas ainda assim alçaram as vozes contra esse descalabro da gestão estadual petista. Por ora, o Prêmio Cupim da Cultura vai para o PSOL, que fez arder o Museu Nacional. No plano federal, o PT fez bem a Salvador com o PAC Cidades Históricas, responsável, dentre outras coisas, pelo restauro e reabertura da Catedral dos Jesuítas, frequentada pelo nosso Vieira.
Embora a sociedade baiana tenha até aqui dado conta do problema, convém destacar a importância histórica da Quinta e do Arquivo para o Brasil. Entre os que não deram um pio sobre o assunto está o ex-capitão da PM-BA que ora ocupa, em Brasília, a Secretaria de Cultura. Há muita lacração no Twitter, há uma dinheirama despejada na lei Aldir Blanc (mesmo que ele e seu chefe se gabem muito de não dar dinheiro para vagabundo), mas preocupação com a cultura baiana e brasileira não é o que se vê.
Deixe sua opinião