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Novo empreendimento imobiliário para adeptos de um estilo de vida minimalista e sustentável.
Novo empreendimento imobiliário para adeptos de um estilo de vida minimalista e sustentável.| Foto: Lucas Quaresma/Unsplash

Muito do dito progresso não passa de uma decisão das elites imposta ao povo. O melhor exemplo disso é a arquitetura: as preferências do povo são irrelevantes quando as faculdades de arquitetura determinaram que os prédios devem ser caixotes feios, deprimentes, incômodos e disfuncionais. Quem souber inglês e se interessar pelo assunto poderá assistir a este documentário no Youtube sobre a bem-sucedida rebelião dos nórdicos perante a arquitetura modernista. Como a arquitetura de caixotes é uma só e os climas variam, um exemplo tropical seria o seguinte: se o apartamento com pé direito baixo é quente, você é que tem que se adaptar comprando um ar-condicionado. A incorporadora economiza em concreto a cada entrega, você gasta com conta de luz pelo resto da vida. Ou, em locais de clima subtropical, a incorporadora entrega pisos de porcelanato em vez de madeira porque sim, e o comprador que use pantufas bem grossas em dias frios. Pelo menos dá para trocar de piso; mudar o pé direito é que não dá.

Não temos controle sobre a paisagem que vamos ver, porque cada proprietário tem o direito de construir prédios feios (salvo em caso de área tombada). Mas deveríamos, em tese, ter o direito de escolher um apartamento cômodo para morar e que não atribuísse ao comprador a tarefa de botar um ar-condicionado.

Já foi assim; e, se tivermos o orçamento folgado, encontraremos apartamentos das décadas de 60 e 70 frescos, com pé direito alto, e espaçosos o bastante para receber visitas e ter uma mesa de jantar (em vez das apertadas “cozinhas americanas”). A razão disto, creio eu, é que os empreiteiros faziam prédios para pessoas que cresceram em casas e estavam acostumadas a um padrão de moradia muito melhor do que o atual. Para se ter uma ideia da mudança por que passaram as metrópoles brasileiras, vale a pena assistir a Redenção, de Roberto Pires. O primeiro longa-metragem baiano foi gravado entre 1956 e 1958. A trama suspense é passada numa erma fazenda de cocos em Itapuã. Quando os fazendeiros querem ir ao centro de Salvador, dizem “vou à cidade” e põem o carro na estrada, fazendo uma longa viagem até chegar a uma área urbana sem prédios altos, só com casas e sobrados comerciais. Salvador está irreconhecível no filme. E Itapuã, que aparece como uma zona rural perdida no fim do mundo, menos de 20 anos depois era um bairro urbano habitado e cantado por Vinícius de Moraes.

Não parece que seria possível as metrópoles crescerem tanto sem verticalizar as moradias. Assim, podemos dizer que, por maior que fosse o saudosismo, a construção de prédios de apartamentos foi uma escolha da sociedade: gradualmente, as pessoas vendiam bem os seus terrenos para os empreiteiros, e estes faziam apartamentos confortáveis, que mais pareciam casas postas uma em cima da outra, faltando só quintal para serem casas perfeitas. De todo modo, recalcitrantes ainda podiam fincar os pés no solo dos subúrbios das metrópoles, onde ainda não havia tanta demanda por residências e a vida era mais pacata.

Segundo a vulgata liberal (antes tínhamos vulgata marxista, agora temos vulgata liberal), o consumidor tem o direito de escolher o que lhe apraz por meio da livre concorrência. Ora, construir casas é muito mais fácil do que construir prédios. Num caso, o comprador nem precisa se restringir às casas que o mercado oferece, pois ele pode comprar um terreno e fazer a casa conforme ao seu gosto. A situação muda de figura com os prédios, no qual só é possível comprar apartamentos prontos. Ninguém mais diz “Vou construir um prédio”. Foi-se o tempo em que um fazendeiro construía um prédio na cidade para tirar renda de aluguel. Hoje tudo é condomínio – e tudo é construído por meia dúzia.

Concentração econômica no setor implica que meia dúzia decide como serão os apartamentos, e que você vai ter que engolir.

Sogra só vai caber em apartamento de luxo

À medida que os apartamentos da classe média foram encolhendo, um punhado de apartamentos espaçosos foram construídos, agora com o rótulo de “padrão de alto luxo” e preço correspondente. Ainda por cima, graças ao financiamento adoidado que os governos dão, o preço dos imóveis cresce vertiginosamente, afetando todo o mercado imobiliário das grandes cidades. O cidadão passa décadas endividado para pagar o muquifo. As empresas lucram mais e correm menos riscos, ao mesmo tempo em que entregam apartamentos piores. E se o governo, que financia as compras, falasse em regulamentar a salubridade dos apartamentos entregues, a vulgata liberal diria que o governo quer estrangular o setor.

Mas piora: há alguns anos tenta-se emplacar a ideia de “microapartamento” como algo muito bacana e, pasme, sustentável. Este mês rodou a internet uma matéria do Uol com uma felizarda que paga 2.300,00 por mês para morar num “microapartamento” de 16 metros quadrados. Dando uma pesquisada, vê-se que as matérias que tentam convencer de que microapartamentos são uma maravilha remontam a 2017 (aliás, gostei do título de uma: "Apartamentos com menos de 20m² exigem novo estilo de vida"). Esta recente, do Uol, diz que o fenômeno vem de 2016: “Embora seja comum em outras capitais pelo mundo, em São Paulo, o boom dos apartamentos de até 30 m² é mais recente: entre 2016 e 2022, a oferta saltou de 461 unidades para 16.261, o que representa 21% do total, segundo o Secovi-SP, sindicato de empresas do setor imobiliário do estado.” Se é 21% do total e a tendência é de crescimento, imagine-se o quanto dinheiro não será necessário para comprar um apartamento no qual caiba a sogra. Sogra só vai caber em apartamento de luxo.

A matéria diz que o público-alvo desse mercado é de “jovens” solteiros de até 39 anos. Se esse tipo de apartamento expressa um modelo de vida “livre”, então é de se esperar que vá compreendendo “jovens” cada vez mais velhos, pois eles vão envelhecer em vez de mudar de ideia. Mas eu creio que boa parte do sucesso imobiliário desse projeto se deva a especulação e a AirBNB. Como os prédios são (por enquanto) em metros quadrados muito valorizados, um apartamento no AirBNB teria vantagem sobre os hotéis da mesma região. Daí o povo compra pra especular, porque se não arranjar um bom inquilino ou comprador, bota no AirBNB, que é receita certa. (Aliás, vale ler esta matéria sobre como o AirBNB inflaciona os aluguéis.) Mas não dá para saber por quanto tempo isso é economicamente sustentável, pois esses aplicativos do Vale do Silício em geral operam em déficit para quebrar a concorrência e depois subir os preços. Se der problema com esses aplicativos, vai ter um monte de concreto inútil em São Paulo, e o setor de hotelaria, que terá sofrido à toa, terá de se recompor.

Não é isso o que se vende, porém. A matéria é a propaganda de um estilo de vida, e um estilo de vida melhor do que o seu, porque é “mais sustentável” (além de "mais livre"). Daí a lhe obrigar a evoluir é um pulo, com a ajuda do mercado dirigido ou controlado por gente como Klaus Schwab.

E a alegação de sustentabilidade é ridícula. Por exemplo: não foram poucos os internautas que perguntaram que tal é passar um bife junto da cama. Na matéria, a felizarda diz que só tem uma frigideira em casa, e as fotos mostram que o seu IMC não é dos mais saudáveis. Eu aposto que ela não cozinha e compra comida pronta, sejam pacotes industrializados ou coisas de iFood (que aliás, como mostrou esta Gazeta, é bem predatório com os restaurantes). Quanto material não-degradável não é usado em embalagens? Nos anos 90, os ambientalistas reclamavam da quantidade de lixo que o McDonald’s produzia; hoje, querem brigar só com o canudinho plástico, e talher tá liberado. Mesmo que a felizarda tivesse uma panela de pressão em casa: o tempo de cozimento de feijão não varia segundo a quantidade de feijão; logo, mais feijão na panela implica economia de gás. Se ela comesse o feijão que a mãe dela cozinha, ou se cozinhasse para um marido, economizaria gás para "o planeta". Aliás, poucas coisas são mais ecológicas que uma mãe de família cozinhando para todos e lavando muitas roupas de uma vez numa máquina cheia.

Podemos dizer então que há uma coação sobre nós que não é uma ditadura nos moldes tradicionais, pois tem um ar de anonimato. Não há nenhum agente político brasileiro decretando: “Vocês vão ter que pegar um financiamento de 30 anos para morar na casinha de cachorro e salvar o planeta”; não obstante, é isso que nos está sendo imposto e propagandeado. É propagandeado pela imprensa tradicional sob o disfarce de notícia, e é imposto por incorporadoras mancomunadas com o governo, e sabe-se lá mais com o quê.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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